17.4.20

Apps para combater a pandemia, liberdade e segurança



Um dos desafios mais cruciais que a presente pandemia coloca às nossas sociedades diz respeito ao equilíbrio entre liberdade e segurança. Até certo ponto, nada de novo: a tentação de controlar os desviantes, ou os simplesmente diferentes, nunca desaparece de nenhuma sociedade, em qualquer tempo histórico, e qualquer risco, real e/ou publicamente percecionado, acaba sempre por ser aproveitado por alguns para propor formas de domesticar a massa. Em tempo de pandemia, esse debate torna-se mais complicado, porque a preservação da saúde, especialmente quando claramente associada à preservação da vida, é um valor que colocamos lá no alto das nossas prioridades – tanto racional como emocionalmente, porque a sensação de risco de ficarmos doentes ou morrermos é, claramente, perturbadora das condições para que a comunidade possa analisar as decisões a tomar com serenidade. E, entrando a saúde na equação, não será difícil desequilibrar os frágeis consensos democráticos em matéria tão delicada.

Olhando para a experiência chinesa, quer pelo lado das possibilidades de um governo autoritário na gestão da vida social, quer pelo lado do elevado grau de imposição social das ferramentas tecnológicas de gestão da população, notamos que nem tudo o que poderia eventualmente ser útil para um determinado propósito concreto é, só por isso, possível numa democracia decente. Em certas circunstâncias, os regimes totalitários são mais eficazes do que os regimes democráticos. Infelizmente. Certo, certo, é isto: se tantos prescindem da sua privacidade para usar certas ferramentas que por aí andam, e que não servem tantas vezes realmente para nada, fornecendo carregamentos de informação pessoal sem qualquer cuidado, com que facilidade não se disporão a entregar a privacidade em troca da promessa de estarem mais protegidos em caso de contágio com o vírus que colocou o mundo em pandemia?

Esse debate ainda não entrou em força em Portugal por uma razão muito simples: a maioria de nós ainda acredita que isto se resolve em mais algumas semanas. Poucos entenderam ainda que, enquanto não estiver massivamente disponível uma vacina apropriada, vamos conviver com o vírus. Teremos imunidade de grupo (quer dizer, teremos, coletivamente, criado uma significativa barreira ao contágio) quando uns 60% a 70% da população estiver imunizada. Estamos muito longe disso: com o sucesso da estratégia de isolamento social, não deverá haver sequer 2% da população imunizada. E, como não podemos ficar fechados em casa mais um ou dois anos (até a vacina ter permitido criar a tal imunidade de grupo), vamos ter de sair de casa, mas com duas condições: primeiro, com precauções adicionais (uso de máscaras muito mais generalizado, a acrescentar a um elevado grau de distanciamento nas linhas do que já conhecemos); segundo, com capacidade para identificar o mais rapidamente possível novas transmissões, para secar precocemente os caminhos de propagação do vírus. Só assim podemos regressar à vida (e temos de regressar à vida, a menos que esperemos que os marcianos venham produzir tudo o que nós precisamos para sobreviver) com a suficiente segurança de que o número de contaminados não volta a atingir níveis alarmantes e capazes de rebentar com a capacidade do serviço nacional de saúde.

É aqui que entram as apps, na medida em que elas podem ajudar a detetar caminhos e ocasiões de propagação do vírus, para responder rapidamente a novas ameaças. As autoridades chinesas usaram as apps para controlar o acesso dos cidadãos a certas áreas: quem não podia mostrar o sinal verde no telemóvel, não entrava. Aqui entram, e chocam de frente, duas ideias: para uns, se é para nos proteger do vírus, que se faça; para outros, se põe em perigo a nossa privacidade, e podem seguir os nossos passos e identificar-nos como doentes, nem pensar. Provavelmente, vai ser preciso ir um pouco mais fundo neste debate.

O ponto principal é este: pode saber-se muito acerca de fenómenos em curso numa população sem saber nada de relevante sobre esta ou aquela pessoa concreta. É por aí que temos de prosseguir a exploração. Vou, no que segue, deixar algumas notas sobre uma contribuição recente para este debate.

A rede eHealth é uma rede voluntária, criada ao abrigo do artigo 14.º da Diretiva 2011/24/UE, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, funcionando como uma plataforma das autoridades competentes dos Estados-Membros que se ocupam da saúde digital.

Ora, muito recentemente (há dois dias, 15 de abril), a eHealth divulgou um documento sobre as aplicações móveis de apoio à rastreabilidade dos contactos na luta da UE contra a COVID-19, propondo uma “caixa de ferramentas” comum da UE para os Estados-Membros.

Esse documento parte do reconhecimento de que as aplicações móveis têm potencial para reforçar as estratégias de rastreio de contactos que podem ser úteis para conter e inverter a propagação da COVID-19, mas também do reconhecimento de que isso só será viável nas nossas sociedades se se encontrarem soluções que minimizem o tratamento de dados pessoais. A dimensão do desafio é acrescentada pela ideia de que a operação seria muito mais poderosa se houver uma estratégia coordenada comum a todos os territórios da UE, em vez de cada um ter a sua abordagem – podendo, até, facilitar a reabertura segura das fronteiras internas.

O que propõem é que se faça um recurso forte às mais recentes soluções tecnológicas de melhoria da proteção da privacidade permitindo, mesmo assim, contactar indivíduos em risco e, se necessário, testá-los o mais rapidamente possível, independentemente do local onde se encontrem e da aplicação que utilizem. O valor acrescentado destas aplicações, dizem, é poderem registar contactos que uma pessoa pode não notar ou lembrar.

Identificam quatro requisitos essenciais para as aplicações nacionais que entrassem nessa estratégia, nomeadamente o de serem:
- voluntárias;
- aprovados pela autoridade sanitária nacional;
- capazes de preservar a privacidade - os dados pessoais são codificados de forma segura; e
- desmantelados logo que deixem de ser necessárias.

O documento considera que é preciso que toda a ação respeite as boas práticas em duas dimensões: basear-se em orientações epidemiológicas aceites (fazer só aquilo que seja necessário para a prossecução de objetivos de saúde pública) e respeitar as regras em matéria de cibersegurança e acessibilidade. Isto implica, nomeadamente, trabalhar para evitar o aparecimento de aplicações potencialmente nocivas não aprovadas, para que se estabeleçam critérios claros para avaliar o sucesso ou insucesso da ação, e garantir que haja um controlo coletivo da eficácia das aplicações, bem como comunicar adequadamente com as pessoas envolvidas.

A jornalista Elena Sánchez Nicolás, escrevendo no euobserver, resume assim: “Os Estados Membros concordaram que as aplicações móveis Covid-19 não devem processar os dados de localização dos indivíduos, porque não é necessário nem recomendado para efeitos de rastreio de contactos".

O documento da eHealth não propõe uma aplicação única europeia, só propõe uma estratégia coordenada. Já a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados desconfia da viabilidade de garantir a segurança dessa estratégia com um sem número de aplicações a operar, pelo que defendeu a existência de uma aplicação pan-europeia Covid-19, em vez da proliferação de aplicações específicas em diferentes países. Ao mesmo tempo, surgem propostas alternativas para alcançar o mesmo desiderato, como seja usar o bluetooth para rastrear quem esteve em contato com casos de coronavírus, em vez de usar dados de localização.

Há caminhos, temos de os trabalhar: nem desperdiçar nenhuma oportunidade de combater a pandemia, nem entregar as nossas liberdades em troca de segurança – porque essa é sempre, afinal, uma troca ilusória.

(Clicar para ir para o documento da eHealth Network, “Mobile applications to support contact tracing in the EU’s fight against COVID-19. Common EU Toolbox for Member States”.)




Porfírio Silva, 17 de abril de 2020

Print Friendly and PDF