Vai a pandemia substituir a globalização pela "economia natural"? Vamos passar a economias nacionais de auto-suficiência?
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O único ponto em que concordo na generalidade das “grandes análises” que tenho visto por aí é o que se relaciona com a globalização: somos, hoje, um mundo de viajantes e a quase totalidade das sociedades em todos os cantos do mundo estão intensamente interligadas por esses viajantes. E, isso sim, esse foi um factor determinante neste acontecimento fulcral nas nossas vidas que foi o desenvolvimento da pandemia. A questão é: vamos acabar com a globalização? Se calhar vamos, mas não estou contente por isso.
Para apreciar essa questão, já várias vezes achei útil olhar para os efeitos da queda do Império Romano. Volto a essa perspectiva, para a ligar a uma opinião que li recentemente e que reportarei daqui a pouco.
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No auge da sua extensão, o Império Romano incluía quase toda a Europa ocidental, largas faixas em redor do Mediterrâneo, bem como regiões mais orientais, desde os Balcãs à Grécia, Egipto, Ásia Menor, chegando à Síria e fazendo a oriente fronteira com a Pérsia e com as regiões caucasianas. A queda do Império a Ocidente, em 476 d.C., deu lugar a um longo período de retrocesso socioeconómico, como escreve Bryan Ward-Perkins, em “A Queda de Roma e o Fim da Civilização”: “o domínio romano, e sobretudo a paz romana, trouxe níveis de conforto e sofisticação para o Ocidente que não tinham sido vistos anteriormente e que não seriam vistos de novo durante muitos séculos”. O que esse autor procura mostrar nessa obra é que a queda do império romano do ocidente representou um retrocesso na vida material da maioria da população. Vejamos alguns dos seus exemplos.
Os romanos produziam bens de uso corrente (não apenas de luxo), de qualidade muito elevada, em enormes quantidades, e depois difundiam-nos largamente, sendo por vezes transportados por muitas centenas de quilómetros para serem consumidos por todos os grupos sociais (não apenas por ricos). A existência de “indústrias” muito desenvolvidas, funcionando com trabalhadores razoavelmente especializados, produzindo em grandes quantidades e vendendo para zonas remotas do império, suportadas em sofisticadas redes de transporte e de comercialização, era possível graças à infra-estrutura de estradas, pontes, carroças, hospedarias, barcos, portos de rio e de mar – e à burocracia imperial, incluindo um exército numeroso, para enquadrar e proteger todo esse fervilhar. Exemplos concretos são como seguem.
A cerâmica, utilizada para o armazenamento, preparação, cozedura e consumo de alimentos, era de alta qualidade, tanto em termos práticos como em termos estéticos. O nível de sofisticação da cerâmica romana usada para preparar e servir alimentos só volta a ser observado alguns 800 anos depois, pelo século XIV. Também as artes da construção de edifícios, que os romanos tinham sofisticado quer para casas luxuosas quer para casas vulgares, em vastas regiões do antigo império perderam-se e deram lugar a povoados construídos quase inteiramente de madeira, onde antes se construía de pedra e tijolo (para já não falar das casas mais sofisticadas com aquecimento por baixo do chão e água canalizada). Já a fundição de chumbo, cobre e prata, que permitia a realização de muitos utensílios sofisticados, também entrou em queda com o desabar do império e só nos séculos XVI e XVII terá voltado a atingir os níveis da época romana.
Enquanto no império as moedas de ouro, prata e cobre eram perfeitamente acessíveis e largamente utilizadas nas trocas económicas, o que veio depois foi o desaparecimento quase total da utilização diária da moeda, a par com o desaparecimento de indústrias inteiras e de redes comerciais. Os produtos de luxo continuaram, em maior ou menor grau, a ser produzidos para os mais ricos, mas os produtos de uso mais geral e de qualidade é que escassearam ou desapareceram. Em certas zonas do antigo império, certos aspectos da economia e do bem-estar material regrediram para níveis da Idade do Bronze. Mesmo muitas economias regionais foram destroçadas pela instabilidade política e militar.
Os benefícios do império também se estenderam à agricultura. Um exemplo curioso: até o tamanho médio do gado aumentou consideravelmente no período romano, graças à disponibilidade de pastos de boa qualidade e de forragem abundante no Inverno. O tamanho do gado regrediu, depois da queda do império, para níveis pré-históricos.
A queda do império romano do ocidente não foi, na realidade, apenas um abalo para as elites políticas, sociais e culturais. Representou um retrocesso no conforto material da esmagadora maioria da população. Já para não falar de que desapareceu assim o instrumento do maior período contínuo de paz (500 anos) vivido na região mediterrânica.
A esta reflexão de Bryan Ward-Perkins juntou-se, numa leitura recente, outra reflexão sobre a dinâmica da desintegração do Império Romano do Ocidente. Num pequeno livro datado de 1946, intitulado “The Decline of the Roman Empire in the West”, F. W. Walbank defende a tese de que a decadência romana teve, na vertente económica, a dinâmica de uma desintegração do outrora grande espaço de trocas económicas numa miríade de pequenos territórios relativamente autárquicos, tendendo para a auto-suficiência, entre os séculos IV e VI. Nessa economia, deu-se uma reversão gradual para o pequeno artesanato virado para o consumo local, em pequena escala, eventualmente satisfazendo secundariamente encomendas específicas nas proximidades, tendo sido abandonada a prática da produção especializada destinada a um comprador desconhecido que podia estar em qualquer ponto do império.
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Quem apresenta esta referência, que eu não conhecia, é Branko Milanovic, num artigo recente na Foreign Affairs, intitulado “The Real Pandemic Danger Is Social Collapse. As the Global Economy Comes Apart, Societies May, Too”. Aí, apresenta uma visão das possíveis consequências desta crise, se ela se prolongar, em termos de organização económica global: o mundo pode passar a uma “economia natural”, no sentido de uma economia que privilegia a auto-suficiência.
O prolongamento desta crise vai, a ocorrer, fazer com que volte a parecer natural a restrição da liberdade de circulação (de pessoas, de bens, de serviços, de capitais), embora essa liberdade de circulação fosse, mesmo antes, bastante descontínua à volta do mundo. Essa restrição da liberdade de circulação, nomeadamente de pessoas, tornou-se mais popular durante a corrente pandemia. Será fácil, no futuro, fazer pressão política para a permanência dessas restrições, mesmo com formas aparentemente suaves, mas efectivas no seu propósito restritivo: por exemplo, exigir um certificado de saúde para entrar num país, além de um passaporte e um visto.
A deriva para a “economia natural”, em que os países prescindem de participar num certo padrão de especialização internacional da economia, seria reforçada pelo receio, que esta pandemia acentuou enormemente, de estarmos dependentes de outros para nos equiparmos devidamente na resistência à doença e para mantermos o abastecimento seguro de bens essenciais à vida da comunidade que partilha o mesmo território dentro de uma fronteira comum. A tendência dos países para a auto-suficiência económica tornar-se-á, se a crise se prolongar e se os egoísmos nacionais se impuserem nesta fase crítica, uma auto-estrada para a tal “economia natural”. Dessa deriva temos uma imagem retrospectiva na decadência do Império Romano do Ocidente.
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A União Europeia vai ter um papel decisivo em irmos ou não por este caminho. Se esta região do mundo for capaz de criar uma dinâmica de cooperação interna que, apesar dos iniciais tiros nos pés e da subsequente tibieza, demonstre utilidade para a preservação da coesão social entre os europeus, esse factor será uma alavanca para a recuperação económica e social e para a consolidação da construção europeia. Se falhar, produzirá mais um conjunto de jangadas à deriva na “economia natural”.
A globalização que temos é económica e socialmente injusta, mas ela não se cura voltando a fechar os territórios sobre si mesmos. Só podemos curar a globalização dos seus piores defeitos agindo no mundo global, inseridos em alianças suficientemente poderosas para contarem para as forças fáticas que por aí andam. Para dar um exemplo: apesar das suas deficiências, a União Europeia consegue fazer frentes a certos aspectos das estratégias corrosivas das grandes multinacionais tecnológicas, coisa que nenhum Estado europeu poderia fazer sozinho, nem Portugal nem a Alemanha. Mas, indo pelo outro caminho da encruzilhada, que é o reino dos egoísmos nacionais, não servirá para nada e desintegrar-se-á.
Culturalmente, a queda do império romano também teve consequências. Por exemplo, a capacidade de ler e escrever, muito difundida no império romano devido às necessidades burocráticas e económicas, não apenas entre as elites mas também nas “classes médias”, regrediu no período pós-romano até ao ponto de mesmo grandes reis ocidentais terem sido analfabetos. (O clero foi, em larga medida, uma excepção importante.) Mas, nesse campo, poderíamos apontar, após a queda do império romano, o florescimento de formas superiores de cultura, por exemplo aquelas que foram protegidas e praticadas nos círculos religiosos. Por exemplo nos mosteiros e nas catedrais. Contudo, para a esmagadora maioria da população, com o recuo para as pequenas unidades políticas e territoriais, vivendo em dinâmicas de auto-suficiência, a vida tornou-se muito pior. É nisso que temos de pensar, outra vez.
Porfírio Silva,3 de Abril de 2020