Cavaco Silva usou o discurso de comemoração do 25 de Abril no Parlamento para se assumir como Presidente dos seus eleitores, do seu partido e do seu governo, acabando com as ilusões de que os Presidentes da República são "presidentes de todos os portugueses". Isto torna Cavaco substancialmente diferente de outros presidentes? Sim e não.
Todos os presidentes estiveram sempre com a mente nos seus eleitores, evitando afrontar a sua base de apoio mais sólida. O ponto é que fizeram isso inteligentemente: não expunham directamente as diferenças com os seus adversários políticos e evitavam alardear os seus passos que teriam mais conotação de facção. E guardavam o exercício das suas preferências para os momentos verdadeiramente decisivos, evitando gastar cartuchos ao virar de cada esquina. A única excepção virtuosa a este modelo terá sido Jorge Sampaio, que apadrinhou a substituição de Durão Barroso por Santana Lopes contra a sua base de apoio política, simplesmente porque achou que colocar um português à cabeça da Comissão Europeia era importante para os interesses nacionais. Portanto, num certo sentido, quando Cavaco Silva se mostra agora como presidente de facção, ele não foge muito à regra. Nesta acepção, só foge à regra por manifesta falta de habilidade.
Noutro sentido, este discurso de Cavaco, alinhando-se quase acriticamente com o governo, é uma novidade quase absoluta no exercício presidencial. O ponto é que Cavaco faz um discurso que deveria ser entendido como um mea culpa. O presidente, depois de ter feito discursos que só poderiam ser entendidos como críticas à política austeritária (deste governo e dos últimos anos de Sócrates) e como censuras claras às responsabilidades da Europa na crise, vem dizer que a única fórmula política de momento é esta – e, pior, que qualquer outra fórmula política poderia mudar as moscas, mas não a matéria. E lança uma censura, despropositada em qualquer democracia, à própria existência de oposição, criticando genericamente os críticos como demagogos e fazendo desde já o programa de qualquer outro governo: fazer basicamente o mesmo. Cavaco, se assim pensa, deveria ter pedido desculpa por ter andado há muito tempo a pronunciar-se contra esta política: muitas das críticas da esquerda já foram feitas, em algum momento, pelo presidente Cavaco Silva.
Qual é, então, a explicação para Cavaco ter partido a loiça desta maneira, fazendo um discurso manifestamente partidário? A meu ver, essa explicação reside no pior dos piores defeitos de Cavaco. Cavaco Silva tem um umbigo demasiado grande. Acima da sua função no Estado, acima do seu partido, acima dos seus eleitores, acima dos seus amigos, está a sua sacrossanta pessoa. Cavaco pensa, antes de mais, em si próprio. Em vez de pensar na melhor maneira de desempenhar a sua função (gerir e criar as pontes possíveis entre diferentes interesses e valores neste momento tão difícil), Cavaco procura afastar de si o cálice da tormenta. Cavaco, que deveria saber manobrar suficientemente bem para ter evitado os piores erros do governo (designadamente, estancando a soberba e arrogância com que PPC sempre tratou o PS e sendo consequente nas críticas à cegueira política de certas opções), falhou aí e agora exige: não mexam nas peças que eu não sei como jogar. Colar-se ao governo neste momento quis apenas dizer uma coisa: eu não sei o que fazer para sairmos daqui, portanto, façam o favor, mantenham-se nos seus lugares com os cintos de segurança apertados. Cavaco, parecendo proteger o governo, afinal entregou-se nas suas mãos: vamos todos fingir de mortos a ver se a coisa passa sem danos de maior. Afinal, o discurso de Cavaco foi, simplesmente, um discurso situacionista. Azar dele: neste momento, é mesmo “a situação” aquilo que ninguém suporta. O discurso de Cavaco é situacionista precisamente porque só quer dizer isto: não faço ideia do que se segue, portanto não me culpem por qualquer tentativa de mudar isto. “Isto” está mal, mas eu não posso responsabilizar-me por nenhuma tentativa de sair daqui. Foi apenas para dizer isto que serviu – a Cavaco – o discurso de Cavaco: não é culpa minha.
Há, contudo, outro aspecto interessante da questão: por que se permite o PR fazer este discurso agora? Até dizem que ele e o SG do PS têm alguma empatia. Mas isso não serviu de nada. Por quê? A meu ver, a resposta é esta: de facto, Cavaco não espera que o PS seja capaz de fazer diferente. O PS aparece demasiado centrado em propor remendos – e é duvidoso que os remendos resolvam o problema. O PS está demasiado distante das outras forças políticas e sociais (partidos, sindicatos e movimentos) que poderiam, em conjunto, criar a base social de apoio para desafiar os deuses dominantes na Europa. O PS tem muitas ideias alternativas, mas, avulsas, um governo PSD/CDS mais competente poderia perfeitamente aceitá-las e integrá-las, sem realmente precisar de mudar de fórmula política. O PS engrossou a voz mas não se tornou mais alternativa por causa disso. Nestes termos, o PS não merece respeito a Cavaco. Culpa de Cavaco, claro, que nunca teve força para evitar a arrogância passista que atirou Seguro para longe da conversa; mas, também, culpa do PS, que a muitos parece condenado a ser uma visão adocicada e mais beata desta política actual.
Entretanto, começa hoje o Congresso do PS. António José Seguro prometeu que o Congresso dará resposta suficiente a Cavaco. Espero bem que sim, porque o PS precisa de constituir uma força suficientemente poderosa para fazer qualquer PR pensar duas vezes antes de dar as bofetadas que Cavaco ontem deu à oposição.