O XIX Congresso do PS parece que correu bem. Eu, que sou do clube mas me mantenho em geral distante das operações, continuo a pensar que falta qualquer coisa. Aliás, penso isso há muitos anos. Um texto que subscrevi em 2004, para o XIV congresso da agremiação, é capaz de dar a entender o que me parece que falta:
1. Numa democracia representativa moderna não é possível governar com visão de futuro sem uma maioria sólida. Não podemos voltar a cometer o erro de não perceber isso. Por isso, o PS deve repensar a forma de assumir o seu lugar e as suas responsabilidades políticas na democracia portuguesa. Cabe hoje ao PS responder aos desafios da modernização solidária do país com uma conjugação inovadora dos papéis de partido moderado e de partido de esquerda.
2. O PS é um partido moderado pela sua vocação para construir consensos sólidos em torno de grandes desígnios nacionais. Como partido moderado, o PS deve apostar em congregar forças para grandes desígnios nacionais que não podem ser prosseguidos apenas nos limites temporais de uma ou duas legislaturas e cuja concretização não deveria ser prejudicada pelo exercício normal da alternância democrática. Exemplos: desafios do envelhecimento demográfico e novas políticas de imigração; reforma democrática do Estado; estratégia de desenvolvimento sustentado; qualificação das pessoas e das instituições; prioridade às áreas sociais essenciais a uma modernização solidária; igualdade entre homens e mulheres.
3. Ser “moderado” não é ser “centrista”: o PS é um partido de esquerda. Cabe-lhe a responsabilidade de fazer funcionar o sistema de alternativas dentro do regime. Não basta garantir a rotatividade, que o eleitorado entende como um fracasso do sistema de partidos em permitir ao povo que possa escolher.
Somos uma esquerda com raízes: nas lutas do passado, no muito que este Partido já fez pelo país, no compromisso com a justiça social. Mas a esquerda necessária é uma esquerda com futuro: capaz de compreender os desafios do momento presente e de encontrar para eles respostas inovadoras, sem se esconder na mera retórica ou em máximas ideológicas. Por isso queremos que o Partido Socialista seja uma esquerda com raízes e com futuro, que desafie o melhor da inteligência criadora, da capacidade de empreender, da coragem de arriscar.
4. Como partido de alternativa, o PS deve definir com clareza o objectivo de alcançar a maioria absoluta dos deputados nas próximas legislativas, para poder ser claramente responsabilizado pela governação e por ela ser julgado.
5. O PS não pode esconder-se atrás da sua pretensão a uma maioria absoluta. Temos de ser capazes de oferecer ao país governos estáveis de legislatura, mesmo que não alcancemos uma maioria absoluta. O PS deve dizer claramente ao país que, para o caso de não ter maioria para governar, procurará construir as condições para fazer as alianças necessárias. À esquerda. Para isso, o PS deve desafiar os outros partidos da esquerda parlamentar para o debate público da governação. Para que as políticas de um futuro governo de esquerda não fiquem reféns de qualquer eleitoralismo ou retórica de facilidades.
O PS não tem medo da “cultura de governo”. A esquerda consequente não teme as responsabilidades da governação. Entre o PS e outros partidos de esquerda há divergências importantes que teriam de ser resolvidas para que uma convergência em termos de políticas governativas fosse possível. O debate da governação à esquerda não será, provavelmente, fácil. Mas é necessário.
Exemplos:
(a) Uma vez que parte da “governação de Portugal” é “governação europeia”, qualquer governo em que participassem outros partidos de esquerda só seria viável na base de uma convergência estratégica a favor do empenhamento europeu de Portugal e no objectivo de melhor fazer valer na UE as orientações políticas que importam à modernização solidária do nosso país.
(b) Aqueles que opõem competitividade e direitos dos trabalhadores prestam um mau serviço ao país. Sem aumento da competitividade, os direitos dos trabalhadores tenderão a esvaziar-se e cada vez menos se traduzirão em bem-estar. Sem respeito pelos direitos dos trabalhadores, os factores de competitividade não serão sustentáveis no exigente espaço europeu em que nos integramos. É preciso encontrar para esta equação soluções políticas que recusem qualquer tipo de imobilismo de raiz ideológica.
(c) A modernização da administração pública é essencial ao reforço dos poderes públicos no cumprimento cabal das suas responsabilidades. A direita, em vez do esforço exigente de criar novas culturas nas organizações, prefere as falsas soluções da facilidade ideológica: enfraquecer, desmantelar, privatizar. Mas a esquerda não pode tornar-se no aliado involuntário dessa direita, ignorando parâmetros importantes do problema. Para promover uma cultura de missão e de aferição pelos resultados, é preciso encontrar respostas à desmotivação e antídotos para a desresponsabilização, sem temer uma avaliação de desempenho que seja justa e tenha consequências.
Cabe ao PS desafiar os outros partidos de esquerda, pelo combate político aberto e franco, para encontrar soluções que optimizem as possibilidades de modernização solidária do país.
6. A democracia nunca está definitivamente garantida. A qualidade da democracia é um trabalho continuado. Este congresso do PS deve aprofundar o nosso empenhamento nesse combate, fazendo sempre cada vez mais do próprio PS um factor de credibilização do sistema político. Por exemplo, face ao crescente facilitismo com que se encara a “livre circulação” entre o Estado e os interesses privados, os socialistas devem assumir um compromisso claro com os portugueses quanto ao entendimento que fazem do que é o exercício honrado dos cargos públicos. Devemos mostrar ao país que a democracia interna é uma força e não uma fraqueza do PS. Que este partido é capaz de acolher novos protagonistas, de lidar abertamente com homens e mulheres com voz própria, com a independência da verdadeira inteligência. Devemos mostrar que o nosso combate é Portugal, a modernização solidária, o desenvolvimento com coesão. A democracia só pode reforçar-se se os portugueses compreenderam que é isso que move a política. Que move os socialistas.
O texto transcrito era uma síntese de uma Moção ao XIV Congresso Nacional do Partido Socialista, intitulada "Uma esquerda com raízes e com futuro", da qual fui primeiro subscritor. Uma batalha sem glória nem resultados, mas que continuo a pensar que dizia coisas que continuam a fazer falta ao PS. Encontra-se o texto completo aqui. Às vezes tem piada verificar até que ponto o que expressamos num dado momento se desactualiza ou se mantém pertinente (do nosso próprio ponto de vista) passados anos (neste caso, passados quase dez anos.)