6.4.13

o Constitucional.


Em quase nada na vida somos verdadeiramente "decisores racionais". A maior parte das vezes, na maior parte das circunstâncias, não temos por onde escolher, não temos realmente opções, somos constrangidos pela falta de meios, pela falta de tempo, pela falta de conhecimentos, pela falta de alternativas. Somos empurrados, ponto final parágrafo. Mas, num certo número de circunstâncias, mobilizamos razões para decidir como fazer isto ou aquilo. Razões podem ser prazeres, necessidades, valores.

Quando pensamos na vida colectiva, especialmente naquelas encruzilhadas da vida colectiva que são particularmente complexas, vemos que as sociedades se dotaram de mecanismos que permitem tentar uma certa racionalidade das decisões. Os tribunais são um desses mecanismos: em vez de se "decidir" na hora, no calor do acontecimento, segundo as primeiras impressões, pressionados por quem mais berra, procede-se à "instalação" de um mecanismo de apreciação, discussão e decisão: estabelece-se explicitamente o que está em causa, pede-se a cada uma das partes que se explique, discute-se longamente, determina-se o que se pode saber quanto aos factos, afastam-se (tanto quanto possível) as inclinações e as emoções pessoais, fica apenas a lei como critério. Às vezes falha? Sim, mas em geral é muito melhor do que qualquer "julgamento popular", muito melhor do que apreciar por olhómetro, do que deixar agir os preconceitos dominantes no momento.

É por isto ser tão importante para a possibilidade de não vivermos na selva, de não estarmos à mercê da turba, que me faz tanta confusão que tão frequentemente as pessoas queiram substituir um julgamento por uma conversa de café, por opiniões soltas e sem contraditório numa roda de amigos. É por temer os justiceiros apressados que verdadeiramente me fazem medo os que ditam sentenças alternativas sem nunca terem lido as peças processuais, sem nunca terem ouvido as testemunhas, sem nunca terem apreciado o contraditório. Quando um arguido, por exemplo, publica centenas ou milhares de documentos sobre o seu caso num sítio da web e pede às pessoas que vão lá ver para perceberem que ele tem razão, isso quer dizer o quê? Que acredita que, em geral, somos capazes de ler milhares de páginas, sem enquadramento, e perceber o que realmente se passou há anos? A dificuldade de ajuizar foge muito à compreensão da maioria das pessoas. É por isso que os tribunais são tão especiais numa ordem pública civilizada.

O Tribunal Constitucional ditou, sobre a lei do orçamento para 2013, um acórdão com umas duzentas páginas. Não o vou ler, não apenas porque não tenho tempo para isso (mas gostava). É mais por outra razão: mesmo que o lesse, não iria tentar uma interpretação do acórdão. Tenho a noção de que os meus quase nulos conhecimentos de direito não me permitem compreender a ossatura de uma tal decisão. Tenho a noção de que é o tipo de documento que um leigo lê, pensa que percebe e, afinal, não percebe, porque lhe escapa um mundo de argumentos antecedentes, um mundo de interpretações acumuladas. Está mal que não compreendamos? Não me parece: numa sociedade complexa como a nossa, não podemos compreender tudo. Há especialistas, aprendemos a respeitar uns (pela sua coerência e razoabilidade, por exemplo) e aprendemos a desconfiar de outros (pela sua inconstância e maximalismo, por exemplo). E tentamos navegar dando o devido valor ao debate entre esses especialistas. Não quero ser especialista: acho que os meus deveres de cidadania só me obrigam a estar atento ao contraditório entre especialistas nas diversas áreas, não me podendo obrigar a ser especialista em tudo. Tenho a noção de que não posso ler um acórdão do TC, como o deste caso, e julgar com sapiência esta ou aquela alínea, como se isso fosse compreender o mundo do constitucionalismo português.

Tudo isto para dizer o seguinte. Começou o exercício de citar esta ou aquela página do acórdão do TC e dizer que isto ou aquilo está errado ou é insane. Lá está: basta ter um blogue ou um perfil no Facebook para nos substituirmos, da noite para o dia, a um tribunal superior, a um colectivo que andou meses a estudar aquele assunto, dando a nossa pequena sentença e topando esta e aquela falha - da noite para o dia, insisto - com uma clarividência e saber que deveria prover o Constitucional de reservas humanas para os próximos 150 anos.

Prefiro pensar de outro modo: tirando os detalhes, o que o TC vem dizendo é que a legalidade não está suspensa e tem de ser respeitada. Não se trata de uma querela direita/esquerda dentro do TC, como se vê pela expressão das votações (e se confirma pelo voto dos últimos chegados ao TC por proposta dos partidos de direita). Precisamos de nos concentrar em fazer frente à crise dentro da legalidade. E, em vez de estarmos sempre a dizer mal da Alemanha, aprendermos alguma coisa com ela - e termino citando Lígia Amâncio, psicóloga social e professora catedrática do ISCTE, que escrevia no Público: «Enquanto a sra. Merkel manifesta, na sua gestão política, um grande respeito pelo Tribunal Constitucional alemão, evitando tomar decisões que possam ir contra as normas constitucionais, por cá faz-se exactamente o contrário, ano após ano, e só falta pedir que se suspenda a Constituição da República Portuguesa e, com ela, a separação de poderes e a democracia.»