Governo vai travar alterações de spread nos contratos à habitação. A ideia é proteger as famílias em situação de sobreendividamento ou com dificuldades de cumprir os encargos bancários decorrentes de situações de desemprego.
Os anarco-liberais do costume defenderem a acção do Pingo Doce no Primeiro de Maio como se estivessem a defender a liberdade dos que foram comprar para aproveitar o desconto. É sempre assim: os anarco-liberais são a tropa de choque dos que mandam no mundo à conta da sua riqueza. Prestam aos poderosos esse serviço da forma mais cínica possível: fazendo de conta que estão a defender a liberdade de todos, ou a liberdade dos que nada têm. Realmente, apenas estão a defender a liberdade de ser explorado. Claro, o próprio Marx achava que havia um avanço histórico em passar-se da servidão tipo feudal à condição de proletário; o proletário é livre de se vender no mercado da força de trabalho, mesmo que isso não o livre da miséria, ou até o afunde ainda mais nela. Coisa diferente é achar que essa "liberdade" é a essência da liberdade.
Os anarco-liberais partem do pressuposto de que quem tem dinheiro pode fazer com ele o que bem entender. Para mim essa idéia é repugnante, na medida em que acredito que a "liberdade económica" não é a única liberdade numa sociedade civilizada, nem pode sobrepor-se a outros valores e a outras liberdades. A ideia segundo a qual não há problema nenhum porque ninguém foi obrigado a nada, enferma de uma concepção puramente abstracta de liberdade - e é uma ideia cúmplice das mesmas ideias acerca da "liberdade dos agentes económicos" que nos trouxeram à presente balbúrdia económica global.
No Facebook, ontem, alguém chamava salazarinhos aos que se escandalizavam com o Primeiro de Maio do Pingo Doce. Claro, quem assim dizia nem sequer falava no Primeiro de Maio: apenas falava de supermercados a fazer descontos brutais e de pessoas a aderir com entusiasmo. Claro, estes anarco-liberais pressupõem que os indivíduos em turba a esmurrar o parceiro para chegar mais depressa à prateleira do arroz são espécimes de indivíduo livre a dar largas ao seu entusiasmo. Nem lhes passa pela cabeça estudar um pouco de psicologia para perceber que género de "liberdade" é esta. Nem lhes passa pela cabeça que pode ser feita uma análise económica da distribuição temporal das preferências daqueles consumidores, que essa análise poderia dar a perceber que o que é melhor neste instante não é necessariamente garantia de que se vai ter o melhor a um prazo um pouco mais longo. E, claro, desconfiar de uma cadeia de supermercados que explora os impulsos das pessoas, ou a sua insegurança, ou a sua necessidade, é algo que parece salazarento a esses anarco-liberais. Bem entendido, os anarco-liberais servem, acima de tudo, para defender a liberdade dos grandes explorarem os pequenos.
Ontem perguntei aqui como seria se o Pingo Doce escolhesse o dia de Natal para fazer aquela provocação. A mim não me interessa muito saber se houve, ou não, dumping naquela promoção. Não que a questão me pareça despicienda: é uma questão interessante para perceber como funciona a máquina de fazer dinheiro. Há outras questões interessantes, tal como saber o que aconteceria aos funcionários do Pingo Doce que tivessem aderido a uma greve convocada para esse dia (questão que toca a outras cadeias de supermercados, também). Mas essas questões importantes têm, em princípio, quem cuide delas: a ASAE, os sindicatos. Mas a questão simbólica de escolher o Primeiro de Maio não é protegida por nenhuma polícia económica, ou sindicato. A questão simbólica, como todas as questões essenciais, não pode ser protegida se nós, todos, não cuidarmos disso. Os anarco-liberais do costume dizem que quem quiser respeitar o simbolismo pode respeitar, mas os outros não têm nada a ver com isso. Também aí os anarco-liberais mostram quão profundamente concebem a sociedade dos humanos como uma selva. Se alguém decidisse fazer uma parada do orgulho gay e lésbico no dia de Natal, ou no dia de Páscoa e misturá-la com o compasso, explicando que cada um dá atenção aos simbolismos que lhe apetece, e só a esses - fácil seria perceber que vai uma distância entre não alinhar com o simbolismo do outro e, coisa diferente, atacar o simbolismo do outro, desprezando-o. É essa demonstração activa de desprezo pelo simbolismo do Primeiro de Maio que, para mim, constitui o principal pecado da "promoção" do Pingo Doce. Pode ser interessante apurar se aquilo, afinal, foi mais publicidade negativa ou positiva - mas nem todas as questões interessantes são, para mim, as questões relevantes.
Os anarco-liberais, que defendem a "liberdade económica" no vácuo da sociedade e das condições concretas, que defendem que quem tem dinheiro pode fazer com ele o que bem entender, deveriam escandalizar-se com a ideia (notícia acima) de limitar as alterações de spread nos contratos à habitação. Afinal, para proteger as famílias em situação de sobreendividamento ou com dificuldades de cumprir os encargos bancários decorrentes de situações de desemprego, vão limitar a liberdade dos bancos fazerem com o seu dinheiro o que bem entenderem. Os anarco-liberais, para serem coerentes, deveriam assumir que estão contra qualquer medida de protecção do consumidor. Mais, que estão contra qualquer medida, contra qualquer instituição. O paraíso de um anarco-liberal é a selva.