21.1.08

O bebé de Anadia e o animal político


Parece, hoje, claro que a morte do bebé de Anadia não teve nada a ver com qualquer reforma do Sistema Nacional de Saúde, apesar da abjecta exploração emocional que alguns fizeram dessa possibilidade.

Alguns pretendem, no entanto, que isso não é o que realmente importa: o que realmente contaria, em termos políticos, seria a ideia criada de que o ministro Correia de Campos toma decisões com implicações negativas directas sobre a saúde e a vida dos portugueses (algo como “a política de Correia de Campos mata”). Marcelo Rebelo de Sousa, com o seu cinismo habitual nas noites de domingo, conta-se neste número.

Ora, parece estarmos aqui perante uma perversão da política como forma específica de gerir a vida colectiva desta espécie animal a que pertencemos. Aristóteles, contrariamente ao que alguns pensam, não escreveu que o humano é um animal social, como são sociais os animais que vivem em grupo para atacar melhor as suas presas e defender-se melhor dos seus predadores. Nesse sentido, os lobos, com as suas alcateias, são animais sociais. O que Aristóteles escreveu é que os humanos são animais políticos, quer dizer, animais que procuram e decidem em conjunto as formas de organizar os seus colectivos, formas essas que lhes não são determinadas biologicamente. Neste sentido, tudo o que seja impor versões erradas dos acontecimentos que interessam ao colectivo, na medida em que podem acarretar erros de interpretação e consequentes decisões erradas no futuro, são formas de boicotar os esforços de boa organização do colectivo humano. São formas de perverter a política, transformando-a na mera arte de deitar abaixo os que estão, apenas para abrir caminho a outros.

Relevar, como de primeira importância, o que o caso de Anadia pareceu ser – sem o ser, reduzindo a mero ruído irrelevante no circo público aquilo que realmente aconteceu – quando isso devia ser o que realmente interessava a um juízo informado e razoável acerca do bem público, tem um nome: irresponsabilidade. Irresponsabilidade face ao colectivo, ao bem público, a uma racionalidade mínima no debate acerca do que deve ficar como está e do que deve mudar.

Defender que, no caso de Anadia, o que mais importa é o que ele pareceu ser – e não o que ele realmente foi, é defender uma sociedade assente na irracionalidade. Uma sociedade entregue ao poder cego dos espelhos deformantes. Com uma assustadora pitada de exploração emocional – que é a pior forma de faltar ao respeito a esse maravilhoso plano que é o das emoções humanas.