25.1.08

Dai Rees, Carapaces

Memórias, recentes, pois então. E partilha de um aspecto específico de uma visita (29 de Dezembro 2007) ao Museu de Arte Contemporânea de Santiago do Chile. Trata-se de uma instalação do galês Dai Rees, intitulada Carapaces.

A sensação imediata, ao entrar, é que estamos a entrar no mundo de Francis Bacon a três dimensões, como se aspirados para o interior de alguns dos seus quadros. Quase sentimos o frio da câmara frigorífica onde se guardam as vacas esquartejadas, ao mesmo tempo que sentimos o calor de entrar no inferno. Breves espreitadelas a quadros de Bacon, que deixamos aqui abaixo, ilustram o porquê dessa sensação de "Bacon 3D". (Trata-se, por esta ordem, de Painting, 1946; Head Surrounded by Sides of Beef, 1954; Three Studies for a Crucifixion, 2 e 3 , 1962.)








Mas deixemos os nossos fantasmas baconianos e concentremo-nos neste Carapaces de Dai Rees.



O homem é como se fosse um produtor de alta costura. Recorta e borda o couro como quem fabrica refinados vestidos - apesar de os resultados nos sugerirem antes que se tirou a pele a "alguém".



Os "vestidos" são realizados com recurso a uma antiga técnica artesanal florentina. A “Marqueteria” é uma técnica artesanal que existia na Florença do século XVI e que consistia em formar uma superfície decorativa com folheado de recortes de madeira, aos quais se juntavam outros materiais (marfim, tartaruga, madrepérola, estanho, bronze ou outros metais), aplicando-se depois esse material decorativo a uma carcaça estrutural. A base assim formada era depois decorada, por exemplo com inserções de mármore ou de pedras semipreciosas. Dai Rees transfere esta técnica para o couro.



O que aqui vemos, depois de terminado o trabalho do artista (apesar de esse trabalho ter sido parte do espectáculo in situ, mas anteriormente) é como as carapaças deixaram de ser as superfícies de corpos e se tornaram armaduras abstractas, vivendo por si mesmas. Se pode parecer que elas preservam alguma memória de corpos que teriam sido o seu interior, de certos animais que teriam sido extraídos, não parece nada realista que tenham ficado motivos decorativos tão sofisticados no seu interior após um tal passado tão animal.



Mesmo assim, pode sempre perguntar-se: serão de vestir estes vestidos? Poderíamos viver dentro das peças deste costureiro? E, nesse caso, manteríamos a nossa identidade (apenas nos vestindo) ou tornar-nos-íamos na carne interna daquelas carapaças, em animais com aquelas formas?



Não sei por qual razão a pergunta acima há-de parecer tão estranha, quando as nossas cidades estão repletas de seres humanos que se tornaram autênticas feras sem terem sequer necessidade de colocar estranhos vestidos em cima da pele…



Toda esta conversa de "carcaças bovinas" pode parecer estranha, mas o próprio ambiente ajudava a criar essa impressão: uma sensação térmica mais fresca do que no resto do museu, a escuridão ambiente cortada por umas quantas luzes dispersas, aquelas correntes de metal e ganchos onde pendem as peças... e parecia estarmos dentro de uma câmara frigorífica apropriada para animais mortos esperando a sua hora de consumo. E ainda por cima na nossa companhia!



Entretanto, é claro, cruzamentos há muitos, e não apenas com Francis Bacon. Veja-se, abaixo, de Cesário Bernaldo de Quirós, El carnicero, de 1926, que encontrámos, neste princípio de 2008, no Museu Nacional de Belas Artes em Buenos Aires. Não, o carniceiro deste óleo sobre tela não é Dai Rees a preparar a sua intalação Carapaces, que visitámos acima. Mas não poderia ser? Ou os verdadeiros carniceiros não desenham nos corpos das suas rezes?