O exemplo da aritmética, a que recorremos no post anterior para ilustrar a importância dos “andaimes cognitivos”, pode ter o efeito perverso de dar a impressão de que só importam as grandes construções culturais. Temos de corrigir essa impressão: pretendemos sublinhar que o nosso mundo é, ele mesmo, em larga medida, um “mundo artificial”, um mundo que pouco a pouco vamos elaborando para que se ajuste às mais modestas das nossas actividades, àquelas actividades que tendemos a não considerar de todo como aspectos da nossa pertença inteligente à situação em que estamos lançados. É um olhar para esse mundo das pequenas coisas que lançamos agora.
Henry Pretroski, em The Evolution of Useful Things (1992), expõe algumas teses acerca da “vida” dos inúmeros artefactos que nos cercam. Notando que estamos cercados por objectos fabricados pelos humanos (“Tirando o céu e algumas árvores, tudo o que vejo deste lugar onde estou sentado é artificial”, assim abre o livro), o primeiro ponto que Petroski quer fazer valer é que a familiaridade com que lidamos com muitos dos objectos correntes no nosso quotidiano não resulta de actos de criação genial em determinados momentos, mas de longas adaptações às nossas preferências. O garfo de comer à mesa, por exemplo, não se generalizou na Europa antes do século XVII (pp.3- 21). Antes, a preparação da comida para a boca era feita com uma faca (que, em muitos casos, era pertença de cada comensal, que a usava para outros cortes e mesmo como arma) ou, em certas casas nobre mais refinadas, ainda com uma segunda faca (em vez dos dedos ou de pedaços de pão). Os primeiros garfos de mesa tinham dois dentes, como os garfos há muito em uso nas cozinhas, mas foram evoluindo para servirem melhor a sua função de prender a comida (especialmente a carne) enquanto era cortada. Por essa razão ganharam três e depois quatro dentes, com uma distância proporcionada entre si. Entretanto, quando passaram a servir também para levar a comida à boca, sofreram outras adaptações. Por exemplo, a introdução dos garfos com dentes encurvados dispensa que esse talher chegue à boca em posição horizontal, o que exigia levantar bastante mais a mão e o braço.
O exemplo do garfo de mesa, se ilustra a lenta evolução dos utensílios, parece também indicar que eles respondem em cada caso a necessidades bem determinadas. Petroski, contudo, ataca a ideia de que a forma depende da função. Em seu entender, a ideia de função de um objecto é, em si mesma, uma abstracção, que não dá conta da plasticidade dos usos. A enorme diversidade de utensílios de uma mesma família (com a mesma “função”), já notada por Marx em 1867 (quinhentos tipos diferentes de martelos produzidos em Birmingham), não pode ser explicada apenas pela necessidade e pela utilidade. Tem também de haver uma explicação para o facto de continuarem em uso muitos objectos com evidentes lacunas funcionais. Na verdade, em seu entender, nenhum objecto pode preencher todos os requisitos que o tornariam perfeitamente adaptado ao seu contexto. (Seria mais fácil que as mesas de jantar não tivessem pernas quando estamos a servir-nos delas, ou que estivessem sempre adaptadas a dois ou a vinte comensais, fossem bebés ou adultos de elevada estatura, mas que complicações resultariam de tal projecto?) O que se procura é a melhor combinação possível de vantagens. Mais precisamente: o método de apurar a forma de um objecto é um processo negativo: os utilizadores vão detectando pequenas inconveniências, pequenas discrepâncias, que serão progressivamente corrigidas. O design é, pois, um processo, passo a passo, de ajustamento da forma ao contexto. Afinal, a forma de um artefacto depende da percepção das imperfeições que, ao longo do uso, o seu uso revela – e não de uma função cuja satisfação possa ser “racionalmente” antecipada (pp.22-33).
Para Petroski, a extrema diversidade de formas de certos objectos para uma mesma função corrobora a sua tese. Um dos seus exemplos (pp.51ss) é o do clip para papel (as imagens juntas ilustram parcialmente essa diversidade). O modelo mais popular continua a conviver com descendentes de muitos outros modelos, que pretendiam responder a problemas específicos dos modelos concorrentes (deixavam as folhas escorregar, tendo partes sobrepostas criavam um volume inconveniente, rasgavam as folhas, …). De qualquer modo, um dispositivo tão ligeiro, barato e eficiente para juntar algumas folhas de papel, só foi possível depois de saber como explorar as propriedades físicas de certos metais: o funcionamento do clip assenta na elasticidade do metal utilizado, que, após a ligeira separação para inserir as folhas, as aperta e mantém juntas (um metal muito rígido ou que perdesse imediatamente a elasticidade não serviria para construir este pequeno objecto utilitário). Mesmo numa classe de estruturas – grandes obras de engenharia, como as pontes ou os arranha-céus – em que a forma é fortemente condicionada pela função, pelos materiais e pelas condições de uso, no respeito estrito pelas leis físicas, os concursos para essas obras mostram que há sempre várias soluções de design para uma mesma equação funcional (pp.182-183). Ainda para contrariar a ideia de conexão lógica e estrita entre forma e função, o autor (ainda no domínio dos talheres de mesa) lembra que, ainda no princípio do século XX, certos faqueiros de prata incluíam perto de uma centena e meia de diferentes tipos de peças, altamente especializadas, numa diversidade muito maior do que é comum hoje em dia – de tal modo que, actualmente, é frequente coleccionadores desses serviços debaterem, por vezes sem qualquer conclusão, a função a que estaria destinada uma ou outra dessas peças (pp. 130-134). Noutro exemplo ainda, refere um livro de coleccionador de martelos que continha imagens de mais de um milhar de modelos dessa ferramenta (p.129).
Um utensílio não poderia responder “logicamente” a uma função, até porque o “uso” teria de ser concebido de forma tão abstracta como a função, quando, na prática, é virtualmente impossível antecipar todos os usos e abusos a que um produto será sujeito fora do laboratório, na vida real (p.243). Por um lado, e esse aspecto é decisivo, o ponto de partida é sempre o que já existe (o “estado da arte”): os objectos do dia a dia não são inventados a partir do nada, mas sim a partir do reconhecimento de problemas com algum dispositivo ou processo já existente. Na maior parte dos casos, a evolução é lenta: é raro aparecer um artefacto radicalmente diferente de tudo o que já estava em uso. Muitos casos ilustram a relutância dos consumidores em aceitar um design radicalmente novo para uma peça com uma função conhecida: mesmo que a nova forma tenha sido concebida de modo perfeitamente racional, em ordem à função, a sua identificação pelos utilizadores pode ser quebrada. O mundo também impõe os seus limites, o que implica a ideia de compromisso: nem todos os defeitos de um dispositivo ou processo podem ser removidos sem causar imperfeições ainda mais incomodativas (pp.38,39,47,170). Por outro lado, muitas necessidades só existem com base na disponibilização anterior de outros utensílios ou processos: só foi preciso inventar o abre-latas depois de inventar a lata de conserva de alimentos, tal como só foi útil inventar as casas para botões depois de usar botões para apertar a roupa. Certos objectos são desviados para funções que não estavam intencionadas na sua criação: os pequenos papéis agora usados para notas efémeras (“Post-it”) foram inventados como marcas para livros (o seu inventor cantava num coro de igreja e as marcas no seu livro de salmos teimavam em não chegar ao fim de um serviço religioso, pelo que inventou marcas com uma cola suave), mas vieram a preencher uma “necessidade” que não tinha sido percepcionada anteriormente (pp.83-86).
Como vemos – e para isso demos atenção a este trabalho de Petroski – o mundo está repleto, não apenas de “andaimes cognitivos”, mas de pequenas e acumuladas modificações que, de maneira em grande medida independente de grandes invenções particulares, se destinam a facilitar a nossa pertença prática ao nosso ambiente. O nosso meio está repleto de inteligência prática incorporada, sem a qual a inteligência dos nossos corpos e das nossas mentes estaria muito mais atarefada e que, assim, sem sequer disso se dar conta, fica disponível para outros usos.
REFERÊNCIA
(Petroski 1992) PETROSKI, Henry, The Evolution of Useful Things, New York, Vintage,1992
Henry Pretroski, em The Evolution of Useful Things (1992), expõe algumas teses acerca da “vida” dos inúmeros artefactos que nos cercam. Notando que estamos cercados por objectos fabricados pelos humanos (“Tirando o céu e algumas árvores, tudo o que vejo deste lugar onde estou sentado é artificial”, assim abre o livro), o primeiro ponto que Petroski quer fazer valer é que a familiaridade com que lidamos com muitos dos objectos correntes no nosso quotidiano não resulta de actos de criação genial em determinados momentos, mas de longas adaptações às nossas preferências. O garfo de comer à mesa, por exemplo, não se generalizou na Europa antes do século XVII (pp.3- 21). Antes, a preparação da comida para a boca era feita com uma faca (que, em muitos casos, era pertença de cada comensal, que a usava para outros cortes e mesmo como arma) ou, em certas casas nobre mais refinadas, ainda com uma segunda faca (em vez dos dedos ou de pedaços de pão). Os primeiros garfos de mesa tinham dois dentes, como os garfos há muito em uso nas cozinhas, mas foram evoluindo para servirem melhor a sua função de prender a comida (especialmente a carne) enquanto era cortada. Por essa razão ganharam três e depois quatro dentes, com uma distância proporcionada entre si. Entretanto, quando passaram a servir também para levar a comida à boca, sofreram outras adaptações. Por exemplo, a introdução dos garfos com dentes encurvados dispensa que esse talher chegue à boca em posição horizontal, o que exigia levantar bastante mais a mão e o braço.
O exemplo do garfo de mesa, se ilustra a lenta evolução dos utensílios, parece também indicar que eles respondem em cada caso a necessidades bem determinadas. Petroski, contudo, ataca a ideia de que a forma depende da função. Em seu entender, a ideia de função de um objecto é, em si mesma, uma abstracção, que não dá conta da plasticidade dos usos. A enorme diversidade de utensílios de uma mesma família (com a mesma “função”), já notada por Marx em 1867 (quinhentos tipos diferentes de martelos produzidos em Birmingham), não pode ser explicada apenas pela necessidade e pela utilidade. Tem também de haver uma explicação para o facto de continuarem em uso muitos objectos com evidentes lacunas funcionais. Na verdade, em seu entender, nenhum objecto pode preencher todos os requisitos que o tornariam perfeitamente adaptado ao seu contexto. (Seria mais fácil que as mesas de jantar não tivessem pernas quando estamos a servir-nos delas, ou que estivessem sempre adaptadas a dois ou a vinte comensais, fossem bebés ou adultos de elevada estatura, mas que complicações resultariam de tal projecto?) O que se procura é a melhor combinação possível de vantagens. Mais precisamente: o método de apurar a forma de um objecto é um processo negativo: os utilizadores vão detectando pequenas inconveniências, pequenas discrepâncias, que serão progressivamente corrigidas. O design é, pois, um processo, passo a passo, de ajustamento da forma ao contexto. Afinal, a forma de um artefacto depende da percepção das imperfeições que, ao longo do uso, o seu uso revela – e não de uma função cuja satisfação possa ser “racionalmente” antecipada (pp.22-33).
Para Petroski, a extrema diversidade de formas de certos objectos para uma mesma função corrobora a sua tese. Um dos seus exemplos (pp.51ss) é o do clip para papel (as imagens juntas ilustram parcialmente essa diversidade). O modelo mais popular continua a conviver com descendentes de muitos outros modelos, que pretendiam responder a problemas específicos dos modelos concorrentes (deixavam as folhas escorregar, tendo partes sobrepostas criavam um volume inconveniente, rasgavam as folhas, …). De qualquer modo, um dispositivo tão ligeiro, barato e eficiente para juntar algumas folhas de papel, só foi possível depois de saber como explorar as propriedades físicas de certos metais: o funcionamento do clip assenta na elasticidade do metal utilizado, que, após a ligeira separação para inserir as folhas, as aperta e mantém juntas (um metal muito rígido ou que perdesse imediatamente a elasticidade não serviria para construir este pequeno objecto utilitário). Mesmo numa classe de estruturas – grandes obras de engenharia, como as pontes ou os arranha-céus – em que a forma é fortemente condicionada pela função, pelos materiais e pelas condições de uso, no respeito estrito pelas leis físicas, os concursos para essas obras mostram que há sempre várias soluções de design para uma mesma equação funcional (pp.182-183). Ainda para contrariar a ideia de conexão lógica e estrita entre forma e função, o autor (ainda no domínio dos talheres de mesa) lembra que, ainda no princípio do século XX, certos faqueiros de prata incluíam perto de uma centena e meia de diferentes tipos de peças, altamente especializadas, numa diversidade muito maior do que é comum hoje em dia – de tal modo que, actualmente, é frequente coleccionadores desses serviços debaterem, por vezes sem qualquer conclusão, a função a que estaria destinada uma ou outra dessas peças (pp. 130-134). Noutro exemplo ainda, refere um livro de coleccionador de martelos que continha imagens de mais de um milhar de modelos dessa ferramenta (p.129).
Um utensílio não poderia responder “logicamente” a uma função, até porque o “uso” teria de ser concebido de forma tão abstracta como a função, quando, na prática, é virtualmente impossível antecipar todos os usos e abusos a que um produto será sujeito fora do laboratório, na vida real (p.243). Por um lado, e esse aspecto é decisivo, o ponto de partida é sempre o que já existe (o “estado da arte”): os objectos do dia a dia não são inventados a partir do nada, mas sim a partir do reconhecimento de problemas com algum dispositivo ou processo já existente. Na maior parte dos casos, a evolução é lenta: é raro aparecer um artefacto radicalmente diferente de tudo o que já estava em uso. Muitos casos ilustram a relutância dos consumidores em aceitar um design radicalmente novo para uma peça com uma função conhecida: mesmo que a nova forma tenha sido concebida de modo perfeitamente racional, em ordem à função, a sua identificação pelos utilizadores pode ser quebrada. O mundo também impõe os seus limites, o que implica a ideia de compromisso: nem todos os defeitos de um dispositivo ou processo podem ser removidos sem causar imperfeições ainda mais incomodativas (pp.38,39,47,170). Por outro lado, muitas necessidades só existem com base na disponibilização anterior de outros utensílios ou processos: só foi preciso inventar o abre-latas depois de inventar a lata de conserva de alimentos, tal como só foi útil inventar as casas para botões depois de usar botões para apertar a roupa. Certos objectos são desviados para funções que não estavam intencionadas na sua criação: os pequenos papéis agora usados para notas efémeras (“Post-it”) foram inventados como marcas para livros (o seu inventor cantava num coro de igreja e as marcas no seu livro de salmos teimavam em não chegar ao fim de um serviço religioso, pelo que inventou marcas com uma cola suave), mas vieram a preencher uma “necessidade” que não tinha sido percepcionada anteriormente (pp.83-86).
Como vemos – e para isso demos atenção a este trabalho de Petroski – o mundo está repleto, não apenas de “andaimes cognitivos”, mas de pequenas e acumuladas modificações que, de maneira em grande medida independente de grandes invenções particulares, se destinam a facilitar a nossa pertença prática ao nosso ambiente. O nosso meio está repleto de inteligência prática incorporada, sem a qual a inteligência dos nossos corpos e das nossas mentes estaria muito mais atarefada e que, assim, sem sequer disso se dar conta, fica disponível para outros usos.
REFERÊNCIA
(Petroski 1992) PETROSKI, Henry, The Evolution of Useful Things, New York, Vintage,1992