Diz que António Costa vai apresentar esta sexta-feira as linhas programáticas com que quer trabalhar no partido e no país. Acho bem, por todas as razões. Contudo, antes disso, quero esclarecer um ponto para mim importante.
A "tese" de que em política o que conta é o programa é, há bastante tempo, uma tese popular. À sombra dessa tese pode afirmar-se uma magnífica preferência pelas "ideias", "sem estarmos agarrados a pessoalismos".
Não estou sequer a referir-me a uma forma extrema e desonesta desta tese, que a (pequena) história já viu muitas vezes ser usada pelos dirigentes de turno, que tratam de preservar a sua posição acusando de ambiciosos aqueles que se proponham substituí-los no lugar, "por colocarem as questões em termos de pessoas". Claro que há pessoas com ambições desmedidas, pouco apropriadas ao seu valor, mas essa má ambição tanto se pode manifestar assaltando o poder como querendo mantê-lo a todo o custo.
Não estou a referir-me a esse extremo: estou a referir-me à ideia muito espalhada de que, desde que estejamos de acordo no programa, nas ideias, na "teoria", o resto é "simplesmente" aplicar - e nada de essencial vai no aplicar. A prática é guiada pela teoria e, desde que estejamos de acordo na teoria, não haverá problema na prática - pretende essa visão das coisas.
Pois, eu discordo profundamente dessa ideia. No caso de um partido político, é normal que haja uma enorme coincidência de pontos de vista em muitos assuntos relevantes para a orientação do país. As divergências nem sempre podem ser sanadas, mas podem ser resolvidas - ou "adiadas", quando isso seja necessário para travar batalhas importantes para o país. Portanto, a coincidência programática pode nunca ser total - e isso nem sempre é grave -, mas a prática pode ser ainda mais importante do que o programa.
Por várias razões. Porque, chegados ao governo, acontecerão muitas coisas que não estavam precisamente previstas na "teoria", porque os programas não conseguem explicitar todos os valores que estão em causa, porque a interpretação dinâmica do programa pode ser feita de formas muito diferentes por pessoas diferentes. Como ganhamos (ou não ganhamos) confiança em que certas pessoas farão bom uso do programa, chegado o momento de o aplicar? Só olhando para a teoria? Não. Olhando também para "a equipa". Ah, lá está, aí vem a acusação: afinal estás a cair em messianismos, pessoalismos, subjectivismos.
Não. Quando me importa saber quem levará à prática um programa (qual é a equipa, quem é o líder), não estou a depositar confiança num indivíduo (ou indivíduos). No tal "messias" ou num escol. Não é isso que atrai o meu olhar. Quando quero escolher um líder e uma equipa, não apenas um programa, quero escolher uma forma de fazer que seja conhecida, uma postura, uma atitude - e tudo isso tem de ter uma história, um percurso, tem de ter sido provado ao longo do tempo, em circunstâncias concretas, quando as pessoas foram experimentadas pelas tempestades. Quero julgar com base na prática real, em terreno aberto, não apenas com base no "laboratório". A teoria só passa verdadeiramente a prova da vida quando a tentamos levar à prática: e uma prática errada pode ser apenas o coveiro de uma magnífica teoria ou programa.
É por isso que, quando olho para o PS e para o país, aqui e agora, e observo o movimento que António Costa introduziu, digo: sim, quero saber se ele traz alguma clarificação programática, alguma luz que fure a neblina dos subentendidos, alguma ideia mais mobilizadora - mas isso não quer dizer que eu esteja só à espera disso. Isso quer dizer que entendo que o PS e o país precisam, desde logo, de outra prática da política, de outra prática da governação, mais aglutinadora, mais mobilizadora, mais criativa, mais ousada, mais capaz de fazer pontes, de romper tabus, de moldar em lugar de ser moldado. De fazer compromissos largos guiados por uma ideia de futuro e não falsos consensos que unam fraquezas várias numa demissão colectiva. Estou à espera das ideias novas, mas, provavelmente, estou até mais à espera de uma forma de fazer que seja nova.
Precisamos de uma força serena. E isso é uma questão de prática.
Apesar dos muito espalhados preconceitos intelectualistas e hiperracionalistas, creio que, também em política, por vezes o mundo muda-se mais mudando a prática do que mudando a teoria.