Ontem envolvi-me, lá para os lados do Facebook, numa conversa que começou a propósito dos boicotes aos aparecimentos de membros do governo em público. Eu, pela milésima centésima vez, desde os tempos do anterior governo até hoje, opinei contra esses boicotes. A minha razão é simples: embora não se catalogando esses boicotes no capítulo das restrições à liberdade de expressão (os membros do governo e outros dignitários têm diversos meios para fazer ouvir a sua opinião), esses boicotes têm, no espaço da cidadania, a simbologia de retirar a palavra ao adversário. Coisa que, como democrata, não suporto. E, como sou também um institucionalista, não aprecio que o governo do meu país seja fechado à chave no seu palácio e não possa andar por aí a fazer o seu papel, por muito que eu ache odioso esse papel. E acho.
A resposta básica a esta minha posição é dizer que temos de dar voz à nossa indignação. E, depois, como sempre que discuto este assunto, vêm os outros adereços: basicamente, tratar-me como se eu fosse um menino de coro que não percebe a gravidade da situação, que pactuo com os malandros do momento e que me atrevo, oh deuses!, a criticar uma forma de resistência que é insubstituível.
Então, quero reiterar e explicar a minha posição, uma vez mais e no momento actual.
Em primeiro lugar, o argumento de que estamos numa espécie de pré-revolução, em que teriam deixado de valer as garantias normais em democracia, não me convence. Basicamente por não acreditar, como nunca acreditei, que as garantias democráticas devam alguma vez ser suspensas a pretexto de qualquer revolução. (Sem sequer chegar a discutir a alegação de que estaríamos num clima pré-revolucionário.) Mesmo um governo como este, que a meu ver perdeu legitimidade por ter chegado ao poder com base na ocultação propositada e estratégica do seu programa, não aboliu a democracia – embora tenha mostrado que a democracia pode ser colocada num beco (embora num beco mais duradouro esteja a democracia na Madeira, sem grande comoção continental). E, se critico o governo por estar a destruir aspectos do nosso ambiente institucional que demoraram anos a construir, e que será penoso reconstruir, não vou aplaudir que outros aspectos da nossa ecologia institucional sejam maltratados em nome da indignação.
Em segundo lugar, num plano de mero pragmatismo político, não acredito minimamente na eficácia desse tipo de protestos. O governo, no essencial, até está a viver muito bem com este estado de coisas: toda a gente está contra, mas o governo continua a fazer mais do mesmo. E não são estes episódios de protesto que o impedem. Aliás, o protesto de aparência radical, quando não alarga o apoio ao protesto, só contribui para estreitar a base de apoio à contestação. Creio que está estabelecida uma rotina de protesto que não cria nada de novo.
Em terceiro lugar, acho que está chegado o tempo de pensar mais nas alternativas do que na indignação. O que é preciso para empurrar o governo e os seus esteios não são mais boicotes só por si: aquilo que verdadeiramente pode derrubar este governo será o aparecimento de uma alternativa concreta e clara, com um programa básico claramente especificado, mais o elenco das forças disponíveis para o aplicar. É que, se estamos todos muito satisfeitos porque JPP escreve cartas a Soares e este lhe chama camarada, as festas da unidade não vão levar-nos a lado nenhum enquanto não se vir, preto no branco, qual é o programa de governo de quem está contra e pode/deve fazer diferente. E, nesse aspecto, o clima tem mudado pouco, apesar das aparências. E acho que há hoje uma grande descrença acerca da capacidade das oposições para montar qualquer coisa de diferente que possa resultar seriamente.
E, finalmente, a própria indignação tem de se reinventar. Se se diz, e eu concordo, que a democracia não é votar de quatro em quatro anos; se se apregoa a necessidade de participação, de uma cidadania mais presente, cabe perguntar: não podemos fazer mais para dar um contributo menos exclusivamente protestativo e mais construtivo à indignação? É preciso, além de contestar, democratizar e aprofundar o debate – ou já se esqueceram da Islândia, que voltou rapidamente a escolher os partidos que a levaram à crise, depois de um curto interregno de esquerda? É preciso fazer o caminho de enfrentar o governo no seu próprio plano, nos fundamentos da sua ideologia. Dou apenas um exemplo. Este governo ataca o Estado na pessoa do funcionalismo público. Sejam quais forem os argumentos em cada momento, o jogo passa sempre pela ideia de que tirando recursos ao Estado e à Administração não se perde nada de importante, porque há muito desperdício. Ora bem: não deveríamos – não deveriam os cidadãos – entrar no exercício de avaliar os serviços do Estado? Não o conjunto do aparelho, mas, concretamente, escolher este centro de emprego, aquele serviço educativo, aquele centro social, ou mesmo aquela direcção dentro daquele ministério – e avaliar a sua missão, o que deveria fazer, que meios materiais e humanos tem e se são suficientes, porque lhe falta o que lhe falta. Isso serviria para quê? Para travar a batalha da compreensão do que são os serviços públicos em Portugal, saber porque são necessários, porque nem sempre cumprem as suas missões, em que condições trabalham os funcionários públicos e como tantas vezes se fazem omeletas sem ovos, etc. – não deixando esse debate para os que pressupõem que tudo está mal no Estado, nem para os que pressupõem o contrário, nem para números globais que acabam por não dizer muito à generalidade das pessoas acerca daquilo que se passa realmente nesse animal mítico que dá pelo nome de Estado. Quer-me parecer, apenas por exemplo, que teríamos aqui uma pista para uma mobilização da indignação mais produtiva do que o boicote às falas deste ou daquele membro do governo. É isto que quero dizer quando digo que a indignação tem de se reinventar.