Como é sabido de quem vai acompanhando o que escrevo, não sou crente, nem enquadrado em qualquer religião, nem sou religioso por conta própria, mas interesso-me pelas questões da presença da religião na sociedade. Interesso-me, em particular, pelo catolicismo, dada a sua dominância na nossa região cultural. O novo Papa interessou-me, pois.
Logo após o primeiro aparecimento público do Papa Francisco manifestei o meu agrado pela sua simplicidade e pelo possível significado de ele falar sempre como "mero" bispo de Roma, descartando qualquer atitude mais imperial. Logo a começar, também, outros vieram logo com a tese de que o cardeal Bergoglio tinha as mãos sujas do tempo da ditadura argentina. Numa rápida investigação imediata conclui que essa questão tinha sido suscitada sem que, alguma vez, algo de concreto tivesse sido evidenciado contra ele. Os que nunca passaram pelas dores de uma ditadura, nunca tendo tido oportunidade de mostrar a sua clarividência e coragem, são muitas vezes demasiado expeditos a julgar os que passaram por tal situação, sendo que estes, por vezes, não encontram a melhor solução para cada momento. Aquela dúvida sobre o passado de Francisco era, portanto, apesar de parecer claro que não havia ali mãos sujas, uma dúvida que queria ver melhor esclarecida.
Pensando que talvez outros que por aqui passam tenham o mesmo interesse, deixo um excerto das declarações de Leonardo Boff, um teólogo brasileiro que personifica exemplarmente as correntes mais progressistas do catolicismo, tendo pago caro por essa condição face à intolerância dos mais conservadores na hierarquia. É, pois, a meu ver, insuspeito nesta questão.
Inter Press Servia: Na Argentina, a eleição de Bergoglio foi criticada por sua suposta cumplicidade no sequestro de dois sacerdotes jesuítas durante a ditadura.
Leonardo Boff: Sei que, em geral, a Igreja argentina não foi profética em denunciar o terrorismo de Estado. Apesar disto, houve bispos como (Enrique) Angelleli, que morreu de maneira terrível, (Jorge) Novak, (Jaime) De Nevares e Jerónimo Podestá, entre outros, que claramente foram críticos. Com referência a Bergoglio, prefiro acreditar em Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, e na ex-integrante da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Graciela Fernández Meijide), que qualificam essa acusação de calúnia. Não encontraram nem uma vez o nome de Bergoglio em documentos ou denúncias. Pelo contrário, salvou muitas pessoas escondendo-as no Colégio Máximo de San Miguel. Além disso, vai contra seu caráter já conhecido, de homem forte e também terno, pobre e que continuamente denuncia as injustiças sociais existentes na Argentina e a necessidade de justiça e não de filantropia. Por fim, o que interessa não é Bergoglio e seu passado, mas Francisco e seu futuro.
IPS: Por que o senhor passou por alto neste tema em suas declarações iniciais?
LB: É um assunto polêmico e se deve conhecê-lo bem. As versões são contraditórias. Não falo de coisas sobre as quais não tenho clareza. E me pergunto: qual é o interesse de alguns grupos em levantar esta questão e não discutir a grave crise da Igreja e seu sentido diante da crise da humanidade. Talvez, isto eu concebo, poderia ter sido mais profético, como foram no Brasil o bispo Hélder Câmara e o cardeal Paulo Evaristo Arns. Mas aqui o Estado é laico e separado da Igreja. Na Argentina, o catolicismo é a religião do Estado, o que dificultou, mas não impediu, que houvesse resistência e denúncias de uma parte da Igreja.
IPS: Omissão não é pecado?
LB: A questão não é responder se é, ou não, pecado. Isto é assunto de religião. A questão é política, e para mim é de que lado está a pessoa: do lado dos pobres, dos que sofrem desigualdades perversas? Ou do statu quo que quer o crescimento ilimitado e uma cultura de consumo? Em 1990, havia 4% de pobres na Argentina. Agora são 33% (segundo dados não oficiais). Bergoglio ficou do lado dessas vítimas e vive cobrando justiça social. Se não entendemos isto, estamos nos desviando do ponto central.
Esta entrevista na íntegra aqui.