28.5.20

A resposta do Estado Social à crise

18:35




Para registo, fica aqui a minha intervenção, esta tarde, no Parlamento, a encerrar a interpelação ao Governo (PS) sobre "Respostas do Estado Social à Pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2", 28 de Maio de 2020.

***

Senhor Presidente,
Senhores e Senhoras Deputadas,
Senhoras Ministras, Senhor Ministro,

Ao promover esta interpelação ao Governo sobre a resposta do Estado Social à pandemia, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista trouxe a experiência dos nossos deputados em contacto constante com as populações: os que dedicam as suas vidas ao bem comum, os serviços públicos – onde ninguém deixa de ser atendido por não poder pagar – foram a espinha dorsal da capacidade de resposta dos portugueses a este tremendo desafio.

Esta capacidade de resposta não aconteceu por acaso. Foi construída com políticas acertadas que robusteceram o país nos últimos anos. É que os socialistas não inventaram agora um esquema ad hoc para responder à crise. Por exemplo, não esperámos pela pandemia para reforçar o SNS a uma escala sem precedentes, não esperámos pela Covid para começar a trabalhar num programa para o digital na educação.

Os desafios estratégicos de enfrentar as alterações climáticas, de fazer face à questão demográfica com mais qualidade de vida para todos e melhor conciliação entre vida familiar e vida profissional, de promover a igualdade entre pessoas e a coesão entre territórios, da transição digital justa – mostram que o nosso compromisso com o povo português para esta legislatura é hoje mais válido do que nunca. A crise sanitária e os seus impactos socioeconómicos só o tornaram mais urgente.

É que as opções políticas fazem toda a diferença na vida concreta das pessoas.

A anterior grande crise internacional foi aproveitada por alguns para o programa político dos que diziam que tínhamos de empobrecer para sair da crise e que a perda de direitos devia ser permanente. Como diziam, ir além da troika.

Felizmente, temos hoje um Governo que sabe bem que a austeridade não resolve a crise. É que austeridade não é a noção de que os recursos são finitos. Austeridade, como programa político, é a opção por cortar na despesa e aumentar os impostos para equilibrar apenas as contas públicas. Mas a austeridade não serve para recuperar a economia, nem para responder à emergência social. Essa austeridade seria desprezo pelo sofrimento de hoje e uma traição antecipada às gerações futuras.

Felizmente, temos hoje outro governo e outra política, como mostram as linhas já divulgadas do Programa de Estabilização Económica e Social, que assume as prioridades articuladas de proteger as empresas, proteger o emprego, proteger os rendimentos e que inclui o desígnio de uma estratégia nacional de combate à pobreza.

Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,
O filósofo Daniel Innerarity disse recentemente que o populismo despreza três coisas que esta crise revaloriza: o conhecimento científico, os espaços públicos fortes que resistem à tentação das lideranças pessoalizadas e a ideia de comunidade global, onde partilhamos ameaças. São ideias relevantes porque assentam no reconhecimento da complexidade da situação.

As respostas das nossas autoridades à pandemia foram todas, sublinho todas, decisões tomadas em contexto de grande incerteza. Incerteza sobre o vírus, sobre a dinâmica da pandemia, sobre a gestão de comportamentos sociais conducentes a uma resposta coletiva robusta. O país agarrou-se, e bem, a um método de concertação onde responsáveis políticos e sociais procuraram dar o melhor uso possível ao conhecimento científico disponível em cada momento, para nos guiarmos mutuamente nesse oceano de incerteza e tomarmos as melhores decisões políticas possíveis.

Contudo, não tardam a surgir os esquecidos instantâneos, que vão fazer de conta que havia certezas onde havia dúvidas; que vão querer ter toda a razão três meses depois, quando foi preciso agir naquele preciso momento; que vão querer fazer julgamentos a posteriori dos que tiveram de agir com urgência num inédito estado de exceção.

É certo que a democracia nunca esteve suspensa. É desejável, pois, que exista debate e contraditório político. E que ele sirva para continuar o grau de concertação indispensável à gravidade deste tempo. Mas os esquecidos instantâneos estão fora desse espírito.

Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,
Num abalo desta dimensão, “ninguém se salva sozinho”, na expressão do Papa Francisco. Não se trata de optar entre racionalidade e solidariedade. Este é um daqueles momentos onde é mais claro que só a solidariedade é uma resposta racional.

Temos hoje um Governo que sabe defender Portugal na União Europeia, um Primeiro-Ministro com uma voz ativa, reconhecida e respeitada. Portugal mudou. Hoje já ninguém propõe introduzir na Constituição um número para o défice. Mas é verdade que também a Europa, afinal, aprendeu alguma coisa com os erros cometidos na crise anterior. E também aí tivemos um papel, porque Portugal mostrou que havia uma alternativa, que o progresso económico tem de ir a par do progresso social.

Com as recentes propostas da Comissão Europeia, atingimos um patamar sem precedentes de uma cooperação inteligente, que passa pela mutualização das oportunidades, dos riscos e das responsabilidades. O ponto é que precisamos disso para o nosso próprio esforço de recuperação económica e social.

Mas não está tudo feito na frente europeia. Há muito trabalho pela frente, programas a detalhar, negociações a levar a bom porto.

Entretanto, há quem continue a profetizar que a União Europeia não vai fazer nada do que é preciso fazer. Ou mesmo a profetizar que a União Europeia não vai fazer aquilo que até já fez. Talvez seja a altura de deixarem o ofício de profetas da desgraça e investirem as suas forças no muito trabalho que é preciso fazer para que se concretize o que está proposto, porque isso é muito importante para a vida real dos portugueses nos próximos anos.

Todos não seremos demais.



Porfírio Silva, 28 de Maio de 2020
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12.5.20

Não há festa como esta

11:11



Tenciono neste apontamento dizer algo sobre a corrente polémica quanto à realização da Festa do Avante! no próximo mês de Setembro, procurando um enquadramento um pouco mais vasto do que os campos da polémica imediata.

O ponto mais estrito da controvérsia é que estão proibidos os “festivais de Verão” até ao fim de Setembro e não está proibida a Festa do Avante! – levando uns a dizer que se trata de um favorecimento escandaloso da iniciativa do PCP e levando o PCP a argumentar que se trata de uma iniciativa político-partidária e não de um festival (tendo o Governo comunicado que não tenciona interditar iniciativas políticas).

Alargando ligeiramente a janela da controvérsia, ela vem enquadrada pela campanha contra as cerimónias do 25 de Abril na Assembleia da República – campanha contra uma cerimónia onde participaram muito menos pessoas do que as que sempre estiveram, semana após semana, sem interrupção em nenhum momento da crise, nos plenários do Parlamento, sem o protesto de nenhum dos mais acirrados críticos daquela cerimónia específica. Muitos dos críticos mais vocais dessa cerimónia consideravam-na “uma festa” evitável, descartando o carácter simbólico da mesma e o seu enquadramento nas instituições do regime democrático.
Colada à polémica sobre o 25 de Abril veio a polémica sobre as comemorações do 1º de Maio pela CGTP, aprofundada porque a outra central sindical comemorou digitalmente sem descer à rua, porque as correntes minoritárias da central se demarcaram do modelo escolhido para descer à rua – e porque a concretização do acto mostrou centenas de pessoas num espaço público, além de deixar ver contacto físico bastante próximo nos momentos de ida e nos momentos de regresso, antes e depois do clímax.

Esta manifestação sindical acabou por ser contrastada com a atitude da Igreja Católica, que desactivou a generalidade dos actos colectivos e públicos de culto, incluindo a desmobilização da tradicionalmente massiva peregrinação anual a Fátima por ocasião do 13 de Maio.

Toda esta sequência de controvérsias dá a ver um rasgão entre a realidade natural e a realidade institucional. É à luz dessa distinção que entendo olhar para esta questão.


Realidade natural e realidade institucional

Entre muitos que poderiam ser convocados para introduzir a questão das instituições, escolho o filósofo americano John Searle, porque o seu ataque à questão permite tratá-la no seu plano mais fundamental, o plano ontológico.

A peça mais básica desse exercício é a distinção entre factos brutos, factos sociais e factos institucionais. Um facto bruto é um facto cuja existência nada deve aos seus observadores: o pico do monte Evereste está a N metros de altitude. Um facto social é um facto assente basicamente em intencionalidade colectiva: estou a tocar violino como parte de uma orquestra a tocar uma sinfonia, a orquestra a tocar a sinfonia não é um sucedâneo de uma colecção de executantes a tocar partes da peça. Os factos sociais não existem apenas entre humanos: um grupo de hienas a caçar um leão, o que não funcionaria sem implicar um grupo de forma coordenada, é um exemplo. De entre os factos sociais, alguns são factos institucionais: quando envolvem o colectivo a atribuir certa função a certo tipo de objectos, quando essa função não podia decorrer apenas das características naturais (físicas, químicas, biológicas) desse objecto, mas tem de ser activada pela cooperação continuada entre os indivíduos desse colectivo. Os factos institucionais, de que são exemplos os sistemas monetários (com objectos que adquirem um valor completamente independente das suas características materiais) ou os sistemas de regulação de trânsito (com os seus códigos e sinais), só existem entre os humanos.

No nosso mundo, as instituições são um traço distintivo das sociedades humanas. Um aspecto relevante das soluções institucionais é que elas não derivam de forma fixa das condicionantes físicas. Outras civilizações escolheram outros materiais para funcionar como dinheiro, em vez de notas ou moedas: sal, por exemplo. Podíamos ter inventado sinais de trânsito completamente diferentes dos que temos hoje, embora agora seja na práctica tarde para isso (por causa da reaprendizagem que seria necessária para mudar). Mesmo hoje, há sistemas de trânsito em que se conduz pela direita e sistemas de trânsito em que se conduz pela esquerda, sendo que ambos os sistemas satisfazem os mesmos requisitos por vias distintas quanto à sua realização física. E até podemos mudar de um sistema para outro, como já aconteceu em vários países. Autores como Geoffrey Hodgson marcaram este ponto: um mecanismo só é institucional se não for determinado de forma fixa pela natureza.


Natureza e instituições

Se é importante entender que as sociedades humanas assentam na existência de uma “camada da realidade” diferente do plano da natureza (e não são só as sociedades modernizadas que experimentam essa condição: as sociedades ditas primitivas têm instituições, mesmo que elas possam parecer, de fora, menos complexas), também é relevante entender que o natural e o institucional não são separáveis de forma nítida. Na verdade, interpenetram-se. Um exemplo: um muro de pedra pode servir para implementar uma fronteira, mas a fronteira pode continuar a existir mesmo que se derrube o muro – ou mesmo antes de qualquer muro. Os rios servem muitas vezes de referência para fronteiras, mas isso não é uma necessidade (muitas vezes isso só veio a ser assim por, historicamente, ser mais fácil defender a fronteira no rio).

É precisamente este ponto, o da relação tensa entre natural e institucional, que me parece relevante para lidar com a polémica “não há festa como esta”.

Indiscutivelmente, a Festa do Avante! não é um qualquer “festival de Verão”. Como disse o secretário-geral do PCP, “a” festa existiu muitos anos antes desses festivais terem aparecido no campo comercial. A Festa do Avante!, como iniciativa de um partido político, tem um lugar facilmente reconhecível na operação dos comunistas em Portugal. Portanto, para quem reconhece a especificidade da realidade institucional, é pertinente aquilo que afirma o primeiro-ministro, quando descarta usar a pandemia para proibir actividades políticas – porque proibir a Festa do Avante! será proibir uma realização política de um partido, num regime democrático onde os partidos políticos são instrumentos essenciais para a pluralidade e para a diversidade da representação democrática. Este plano não pode ser descartado e qualquer solução concreta para o caso tem de ter em conta esta dimensão. Convém nunca esquecer: a democracia não está suspensa e não a queremos suspensa. Se hoje podemos proibir esta realização do PCP, quantas mais coisas podemos a seguir proibir, sendo manifestações políticas?

Por outro lado, qualquer festa, a do Avante! ou qualquer outra, é, também, um acontecimento natural. (Vamos, agora, deixar de lado a importância da Festa do Avante! no financiamento do PCP, aspecto que, provavemente, motiva substerraneamente uma parte desta polémica.)

Pessoas, muitas pessoas, vivendo de forma corpórea a sua pertença, a sua camaradagem (política ou apenas jovial), tocando-se, respirando uns para cima dos outros, cumprimentando-se mesmo que tenham originalmente a intenção de não o fazer. Tudo isto são corpos – aqueles corpos que o vírus infecta e provoca a covid-19. Tudo isto implica riscos para a saúde pública, desde logo para os que lá estejam fisicamente. Nada disto pode ser descurado – e não se deveriam expandir argumentos institucionais (as liberdades democráticas) no esquecimento de que as instituições não flutuam levemente na estratosfera: as instituições estão enraizadas nos factos brutos do mundo natural. Podiam ser assim ou de várias outras formas alternativas – mas as instituições estão enraizadas no mundo real, onde os fenómenos físicos, químicos e biológicos não são alheios à nossa humanidade. Porque anjos não somos e os anjos não têm instituições…

Seria desejável que se encontrasse uma resposta a esta situação que não desatendesse à influência recíproca entre realidade institucional e realidade natural – sob pena de darmos armas aos que por aí andam tentando usar o vírus para infectar a democracia.



Porfírio Silva, 12 de Maio de 2020
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6.5.20

Conclusão do secundário e acesso ao superior em tempo de pandemia

19:57





Deixo, para registo, a minha intervenção parlamentar desta tarde.


***

Senhoras e Senhores Deputados,


Vimos pronunciar-nos neste debate especificamente sobre a questão da conclusão do ensino secundário e do acesso ao ensino superior.

Estamos na situação ideal? Não estamos.

Aliás, já antes não estávamos na situação ideal, com o peso desmesurado que o acesso ao ensino superior tem sobre o ensino secundário.

Desejável seria não mudar nenhuma regra no decorrer de um processo para o qual alunos e famílias tinham expectativas formadas. Mas esse normal não é possível nestas circunstâncias.

A resposta encontrada pelo Governo parece-nos ajustada aos condicionalismos presentes: este ano só há provas a contar para o ingresso no ensino superior, a classificação do secundário resulta exclusivamente das classificações internas; assim, as melhorias de nota relevam apenas para o ingresso; os estudantes que realizaram exames nacionais em anos lectivos anteriores terão a situação mais favorável no cálculo da nota de candidatura, integrando ou não o efeito dos resultados dos exames na classificação final do secundário.

Não havendo, neste contexto, soluções perfeitas, o nosso critério para ajuizar de qualquer modelo é o seguinte: não podemos introduzir novas desigualdades. No modelo definido pelo governo, os alunos que terminam o 12º ano este ano estão em situação de igualdade uns com os outros, e os alunos que terminaram em anos anteriores estão em situação de igualdade entre si.

A atitude do PS tem sido de abertura para encontrar as melhores soluções para esta crise. Estamos disponíveis, mais uma vez, para considerar um modelo que não introduza novas desigualdades. Mas há propostas em debate que têm claramente o efeito de introduzir novas desigualdades: permitir que as melhorias de nota relevem para a classificação interna de alunos de 12º ano de anos anteriores, será introduzir uma desvantagem para os alunos do corrente ano. E para dar a mesma oportunidade aos alunos deste ano teríamos de realizar todos os exames, como num ano normal – e este não é um ano normal.

Temos de agir dentro do princípio de adesão à realidade. O sistema educativo está a responder, mas à custa de um enorme esforço de todos os intervenientes.

Ora, a operação exames é tremendamente pesada e complexa, da sua elaboração à respetiva classificação, passando pela distribuição segura em todo o território e pela realização em sala.

Só para melhoria de nota, no ano passado, tivemos mais de cem mil alunos a prestar provas.

Põe-se, então, a questão: é razoável investir toda a capacidade operacional da escola pública nos exames? Queremos consumir todo o trabalho docente, e as próprias férias, na classificação e reapreciação de exames, quando há tanto a fazer para preparar o próximo ano letivo de forma robusta e com qualidade?

Sim, porque temos de saber que temos de começar já a salvar o próximo ano letivo. Isso é decisivo para os nossos jovens.

Em resumo: não seremos obstáculo a uma análise mais aprofundada desta questão, mas, finalmente, não daremos o nosso voto a nenhuma solução que favoreça uns para prejudicar outros, ou que seja impraticável no actual estado do mundo.



Porfírio Silva, 6 de Maio de 2020
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Ciência, política, incerteza

09:22


Ainda é cedo para comparar rigorosamente as estratégias de resposta à ameaça pandémica seguidas, por um lado, pelos países que confinaram com rigor e, por outro lado, pelos países que deixaram correr a infecção. Até agora, os países que confinaram (mesmo moderadamente, como Portugal) tiveram melhores resultados do que os países que mantiveram a vida social largamente sem restrições e apostaram na imunidade de grupo. Mas falta muito para isto acabar e ainda temos muito para ver e aprender. Só retrospectivamente vamos saber com mais segurança onde poderia ter estado o equilíbrio mais acertado - embora essa avaliação dependa dos valores implicados.

De qualquer modo, é interessante acompanhar o caso da Suécia. Não foram os únicos que começaram por seguir uma estratégia percepcionada como descontraída, deixando a vida social correr sem grandes constrangimentos. Não está aí a especificidade. O ponto que me interessa é que, nesse país, estas decisões não cabem, normalmente, aos governantes: cabem às autoridades de saúde, que decidem segundo critérios científicos e técnicos. A esmagadora maioria das pessoas considera que isso é uma garantia, porque os cientistas é que sabem e os políticos não devem meter-se.

Grave erro.

Primeiro, porque não há nenhuma disciplina científica cujo objecto de estudo seja o conjunto completo de factores em questão num cenário como o presente, de vasta complexidade. Isto constitui um notável obstáculo a que muitos especialistas consigam compreender toda a extensão do problema (embora alguns estejam para isso mais vocacionados do que outros: o pessoal de saúde pública está treinado para uma abordagem abrangente em termos de interacção entre os vectores sociais e os vectores naturais de um cenário destes). Não havendo nenhuma disciplina científica com tal objecto, tão-pouco as abordagens intrinsecamente pluridisciplinares têm as oportunidades que deviam ter - num contexto de trabalho científico dominado por um grau assustador de compartimentação (a face perigosa da necessária especialização).

Segundo, porque nem todo o conhecimento científico junto pode dar respostas inequívocas a todas as perguntas que se colocam aos decisores numa situação da complexidade da actual pandemia. Se esse conhecimento completo existisse, talvez bastasse uma única decisão política: não desprezar o conhecimento disponível. Mas não existe esse cenário. Os decisores políticos têm sempre de tomar decisões em contexto de incerteza, guiados por valores civilizacionais e pelo conhecimento das formas de funcionamento das comunidades. A decisão política é sempre prudencial, precisamente porque é impossível ver o futuro de consequências dos passos dados hoje. Aplicar uma ética das consequências, neste caso, tem um grave problema: é impossível ter certezas acerca das consequências futuras concretas do que fazemos ou deixamos de fazer hoje. E as nossas intenções não contam nada aí, porque a maior parte do que acontece no mundo são consequências não intencionadas das acções individuais agregadas em comportamentos colectivos.

E esta dimensão irredutível da decisão política não se conforma com a postura de deixar a chave de uma encruzilhada destas nas mãos dos especialistas, embora os especialistas não possam ser ignorados. A admiração pelo modelo sueco, na parte em que confia estas decisões às estruturas técnicas e científicas, é uma postura que merece o nosso espanto - especialmente quando vem de cientistas sociais.


Porfírio Silva, 6 de Maio de 2020
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4.5.20

Apps Covid: combater a pandemia sem infectar a democracia

15:10


Temos procurado, em textos anteriores, contribuir para um debate informado na procura de um equilíbrio entre liberdade e segurança na utilização de dados recolhidos nos smartphones dos cidadãos com vista a acrescentar ferramentas no combate à pandemia Covid-19. (Cf. "Apps para combater a pandemia, liberdade e segurança" e "Tecnologias contra a pandemia e a favor da liberdade".)

O que me tem orientado nesta questão é a necessidade de conciliar dois olhares. Por um lado, evidentemente que não se pode desprezar o contributo que a tecnologia pode dar para sermos capazes de detectar precocemente qualquer possibilidade de infecção e, assim, cortar os caminhos de propagação da doença, que se espalha porque a falta de sintomas oculta a contaminação e dificulta o alerta a quem pode ter sido tocado. Por outro lado, seria insuportável à nossa cultura democrática qualquer capacidade de alguma entidade para seguir os nossos passos e recolher dados sobre nós, sem nosso consentimento e sem o enquadramento e as garantias previstas na lei.

O equilíbrio entre estes dois olhares é delicado e qualquer fundamentalismo pode, em caso de medo generalizado, facilitar a imposição de soluções autoritárias. A recusa em estudar as soluções propostas, quando elas reivindicam conciliar um contributo para a saúde pública sem prejuízo da privacidade, é um caminho errado. É preciso um esforço sério para compreender as soluções em estudo, para perceber até onde vai a sua promessa de conciliar harmoniosamente os dois olhares acima enunciados.

De qualquer modo, convém não fazermos o papel de ingénuos ou distraídos. Como lembrou o deputado José Magalhães, num debate recente promovido pela Federação Distrital de Aveiro da Juventude Socialista, que se pode ver no Facebook, (https://www.facebook.com/federacaoaveirojs/) já há base legal e já se pratica o acompanhamento dos movimentos dos doentes infecciosos, sem precisar de consentimento dessas pessoas, porque isso é considerado necessário e apropriado em termos de saúde pública. Convém, pois, não confundir as coisas. As notícias da fiscalização da circulação automóvel pelas forças de segurança já deviam ter feito perceber que há pessoas que têm o dever de estar confinadas e que a desobediência a esse dever é penalizável e deve ser controlada. Não se pode, no entanto, lançar controlos generalizados sobre os cidadãos fora desse enquadramento específico, apenas porque todos somos “infectáveis”…

Neste quadro, a nossa preocupação é que o debate se faça com base em informação e não com base em preconceitos. E, para isso, o que procuramos é trazer elementos que permitam analisar o que se está ou não a fazer, o que se consegue ou não fazer, as opções reais que vamos ter ou não. Desta vez vamos seguir alguns aspectos do debate francês em curso, para aclarar alguns ângulos do problema.


O protocolo franco-alemão ROBERT


O governo francês engajou-se na iniciativa ROBERT (ROBust and privacy-presERving proximity Tracing), em parceria com os alemães do Fraunhofer. Os documentos da iniciativa podem encontrar-se no endereço: https://github.com/ROBERT-proximity-tracing/documents. Os trabalhos foram confiados a um consórcio (grupos industriais privados e organismos públicos com responsabilidades na saúde pública e na segurança dos sistemas informáticos) liderado pelo Institut National de Recherche en Informatique et en Automatique (Inria). O presidente do Inria, Bruno Sportisse, publicou a 18 de Abril um documento de orientação da iniciativa (que pode ser encontrado aqui: « Contact tracing » : Bruno Sportisse, PDG d’Inria, donne quelques éléments pour mieux comprendre les enjeux ).

O líder do projecto ROBERT dá do funcionamento do sistema uma descrição próxima da que eu próprio dei, em texto anterior, para uma categoria de iniciativas similares. Contudo, vou trazer para aqui essa descrição, quer para retomar aspectos centrais do debate, quer para aproveitar a clarificação de alguns problemas – até porque este sistema tem uma diferença importante face ao exemplo que dei anteriormente. Dá-nos a seguinte descrição:
- Uma pessoa, querendo participar na luta contra a propagação da epidemia, descarrega voluntariamente a aplicação no seu smartphone. O seu smartphone recebe então um conjunto de identificadores encriptados (ou um método para os gerar a cada 15 minutos).
- O detentor do smartphone, ao manter o Bluetooth activado, permite que a sua aplicação construa um histórico dos identificadores encriptados que tenha encontrado "nas proximidades", durante um período significativo de tempo enquanto viaja (estes identificadores encriptados são emitidos pelos smartphones das pessoas que também descarregaram a aplicação).
- Se a pessoa for diagnosticada positiva, envia o histórico dos identificadores encriptados com que se cruzou para o servidor de (por exemplo) uma autoridade sanitária, sem divulgar ao servidor os seus próprios identificadores encriptados. Nenhuma ligação é feita entre o telefone da pessoa e o seu histórico. Cada um destes identificadores encriptados está, portanto, potencialmente "em risco" (corresponde a um smartphone que esteve na proximidade de um smartphone transportado por uma pessoa que posteriormente foi diagnosticada como positiva, sem que seja possível estabelecer uma ligação entre um smartphone e uma pessoa).
- Além disso, cada smartphone com a aplicação verifica com o servidor central, "de vez em quando" (de hora a hora, todos os dias, isto faz parte dos parâmetros a definir) se os seus próprios identificadores encriptados estão entre os de risco. Se este for o caso, significa que o smartphone esteve muito próximo, no período anterior, de um smartphone usado por uma pessoa que mais tarde se revelou positiva.

Esta descrição tem duas diferenças importantes relativamente à descrição que dei, em texto anterior, de um sistema considerado similar. Primeiro, a pessoa infectada não envia a informação acerca dos identificadores emitidos pelo seu próprio smartphone (não revela dados sobre o comportamento do seu próprio equipamento), envia informação acerca dos identificadores encriptados que recebeu. Segundo, a pessoa infectada é que toma a iniciativa de enviar os dados para o servidor central, enquanto no outro exemplo essa acção tinha de ser autorizada por uma autoridade de sanitária. O primeiro aspecto parece positivo, porque pode ser uma barreira teoricamente mais forte à identificação abusiva dos infectados. O segundo aspecto suscita um problema grave de fiabilidade do sistema, de que falaremos adiante.

Entretanto, logo a seguir a esta descrição, o líder do projecto ROBERT escreve o seguinte: “A notificação é baseada numa avaliação de risco (cujo cálculo deve ser definidos com epidemiologistas) utilizando informações de proximidade. A flexibilidade do sistema é a chave para a gestão de uma crise de saúde, tendo em conta a rápida evolução dos conhecimentos médicos, incluindo a aprendizagem do próprio sistema (sempre com base em dados estatísticos anonimizados) para torná-lo mais eficaz, por exemplo, para reduzir a ocorrência de falsos positivos. Desde que a autoridade sanitária se mantenha no controle de tudo isto.” É importante, sempre, que se reconheça que se faz um trajecto dominado pela incerteza e que estas “soluções tecnológicas” não vão fazer nenhum milagre: só podem ser úteis, se o forem, na condição de servirem de auxiliares das autoridades de saúde.


Problemas que nos devem ajudar a pensar

O sistema ROBERT pretende ser capaz de garantias importantes: não utiliza georreferenciação (não “sabe” por onde nós andamos), é anónimo (não permite identificar as pessoas com diagnóstico positivo para Covid-19, nem as suas interacções sociais), não é um instrumento de delação (eu é que devo declarar que estou infectado, não são outros a fazê-lo), é voluntário e repousa no consentimento. O que a aplicação faz é dizer-me que posso ter estado na proximidade de alguém que estaria infectado, levando-me a tomar as precauções correspondentes.

Ninguém duvida de que os promotores destes sistemas querem fazer aquilo que anunciam. O problema é que se trata de projectos em andamento, com muitas incógnitas por resolver.

Algumas dessas incógnitas são técnicas. A começar pelo Bluetooth, que é geralmente considerado pouco fiável em termos de segurança. Algumas marcas de smartphones impedem mesmo, a partir do próprio sistema operativo, um uso continuado do Bluetooth. Por outro lado, é duvidoso que as baterias dos telemóveis aguentem um uso continuado do Bluetooth, o que tornaria o sistema, no seu todo, frágil. Além do mais, o Bluetooth não foi concebido para estimar de forma razoavelmente precisa a distância a outros aparelhos, sendo que qualquer estimativa será influenciada por vários factores, o que implica que a informação a obter resultará de modelos estatísticos que serão provavelmente muito falíveis até estarem razoavelmente calibrados. Um problema grave é o dos falsos positivos: um funcionário a atender num balcão, bem protegido por uma placa de acrílico e máscara e viseira, está suficientemente perto do utente para que os seus smartphones troquem sinais de Bluetooth, nada os distinguindo de um contacto desprotegido. Quando ligam o Bluetooth em vossas casas, quantas máquinas dos vizinhos aparecem identificadas nas proximidades, apesar de haver paredes bem sólidas a separar os apartamentos? Ora, essas situações podem proporcionar falsos positivos, capazes de baralhar tudo.

Outras incógnitas são sociais. Quantas pessoas têm smartphones? Estamos a criar um sistema para uma minoria privilegiada? Também podemos pensar que, com base em indícios, podemos espoletar caças às bruxas, em que os vizinhos tentam adivinhar, a partir de parca informação, quem é o infectado do prédio. E, talvez mais imediato, temos um enorme risco contido num sistema onde qualquer pessoa pode livremente declarar-se infectada, mesmo sem o estar, só para lançar a confusão.


Um sistema capturável por mal-intencionados


Um documento subscrito por vários académicos do mundo francófono, “Le traçage anonyme, dangereux oxymore. Analyse de risques à destination des non-spécialistes” (https://risques-tracage.fr/), de que consultámos a versão de 21 de Abril, contém vários dos alertas acima mencionados – e outros.

Um dos alertas mais importantes diz respeito à preservação do anonimato. Dizem que estes sistemas prometem um anonimato que não é a toda a prova, porque, embora as bases de dados constituídas não tenham listas de nomes de pessoas, têm informação que, combinada com outra informação que pode ser recolhida, pode permitir a identificação. E citam o Regulamento Geral de Protecção de Dados, da União Europeia, segundo o qual os dados pessoais que tenham sido pseudonimizados, que possam ser atribuídos a uma pessoa singular mediante a utilização de informações suplementares, deverão ser considerados informações sobre uma pessoa singular identificável. E a questão está, pois, nas cautelas a ter quanto ao uso que outros possam dar a esses dados, transformando o que parece anónimo em material usado para, em cruzamento com outros meios, identificar indivíduos.

O documento que estamos agora a referir contém uma linha de argumentação que merece cuidada atenção. Assume um princípio de segurança e fornece diversos cenários que devem ilustrar como ele pode ser ofendido. O princípio é assim formulado: “Um princípio essencial da segurança informática é que a inocuidade de um sistema nunca deve ser presumida com base na confiança na honestidade de alguns dos seus actores.” Os riscos devem, pois, ser calculados atendendo ao comportamento de intervenientes mal-intencionados. E esse cálculo é servido por vários cenários, de que anotamos apenas alguns exemplos.

No cenário da entrevista de emprego, a agência de recrutamento quer garantir que não selecciona um candidato que venha a ficar doente até à assinatura do contrato. Para isso, liga discretamente o Bluetooth de um smartphone específico durante a entrevista, usado apenas para esse efeito, o qual receberá os códigos emitidos pelo smartphone do entrevistado. Para cada entrevista, faz o mesmo com diferentes smartphones (ou, em certos casos, pode apenas usar diferentes instâncias da aplicação de rastreamento de contactos). Se, até a assinatura do contrato, algum dos smartphones receber o alerta de contacto com um infectado, a agência de recrutamento sabe qual dos candidatos eliminar imediatamente. Neste caso, o anonimato é eliminado.

No cenário do centro comercial é contornado o suposto carácter voluntário do uso da app: a segurança do espaço comercial usa uma antena dedicada Bluetooth, que pode captar sinais a grande distância (um quilómetro), para detectar os clientes que não estão a usar a app e recusar-lhes acesso.

O cenário das falsas declarações explora a fragilidade do sistema que permita qualquer utilizador poder informar o sistema de que se encontra infectado: para eliminar um poderoso jogador de futebol (no documento chamam-lhe Gronaldo!) de um próximo jogo da Liga dos Campeões, basta conseguir que alguém tenha uma fugaz proximidade com ele uns dias antes, declarar-se infectado para o sistema e esperar que o alerta retira o jogador de circulação o tempo suficiente para falhar o encontro.

Em geral, a possibilidade de falsas declarações, pontuais ou em massa, é uma fragilidade gigantesca para a credibilidade do sistema. Os cenários agrupáveis nesta categoria vão desde um aluno impreparado que quer impedir um exame, até um militante anti-sistema que foi infectado e envia o seu cão com o seu smartphone passear o dia inteiro pela cidade espalhando alarme, passando por um boicote de uma potência estrangeira a uma unidade militar. Note-se que todos os cenários de falsas declarações têm, em comum, uma característica muito elogiada por alguns dos proponentes de sistemas “respeitadores” do anonimato: é o próprio infectado que informa o sistema do facto, em vez de essa comunicação ter de passar pelos serviços de saúde.

Há cenários que exploram as actividades das empresas que podem abusar dos nossos dados. Por exemplo, um grande armazém pode ligar os identificadores Bluetooth detectados durante a deambulação pelo espaço comercial aos dados do cartão de pagamento usado pelo mesmo cliente na caixa, que são pessoais, e fornecer essa informação à companhia de seguros do mesmo grupo no caso de ser detectada uma infecção.

Vários outros cenários assentam nas possibilidade do cibercrime explorar as apps instaladas nos smartphones e os dados que passam por elas: uma peça de malware apanha no meu smartphone a informação de que estou infectado e permite a alguém que faça chantagem comigo para não ser exposto publicamente, uma aplicação malévola pode induzir na app instalada noutro smartphone um falso alerta de contacto com infectado. Todas estas possibilidades, que não são ficção científica, podem ser realizáveis num mundo onde milhões de pessoas são incentivadas a andar todo o dia com o Bluetooth ligado – algo que tem sido sistematicamente desaconselhado até agora, antes desta crise, precisamente por razões de segurança informática.

O documento também propõe cenários inverosímeis, por exemplo quando desatende ao facto de que na própria residência não há qualquer justificação para usar a app. Contudo, globalmente, vários cenários chamam a atenção para o risco de utilização malévola do sistema – quando, aí está o alerta, um sistema não pode ser considerado seguro na base do pressuposto de que todos os utilizadores serão benevolentes.

Outros cenários tratam de lembrar que a informação fornecida pelo sistema pode, cruzada com outra informação de contexto, desfazer o anonimato de uma identificação de pessoa infectada. No cenário do suspeito único, uma pessoa que é a única a sair de casa e apenas se desloca à mercearia do bairro para abastecimento, quando recebe uma notificação de contacto com infectado vai, imediatamente, deduzir que o merceeiro o infectou. E. noutros casos, com um leque mais alargado de possibilidades, vai suspeitar de que conseguiu fazer uma identificação acertada, mesmo que ela dependa fortemente de preconceitos sociais da mais diversa natureza, ou até de raciocínios probabilísticos verosímeis, mas que podem carecer de qualquer base empírica real (no prédio o mais provável contaminador é o enfermeiro?).

Os cenários apresentados permitem pensar em problemas reais, colocando-nos num ponto de vista muito razoável: não interessam tanto as (boas) intenções dos programadores dos sistemas, interessam mais as (más) intenções daqueles que se dedicam a comprometer os sistemas existentes em favor de objectivos inaceitáveis num quadro de preservação dos direitos dos cidadãos. É muito simples: ainda há aldeias onde ninguém fechas as portas de casa, deixando até as chaves na fechadura, por confiança nas restantes pessoas da comunidade – mas é sabido que, na maior parte dos nossos contextos sociais, esse comportamento não garante a segurança de pessoas e bens. Por quê? Porque temos de contar com os malevolentes, não apenas com os benevolentes.

Quer isto dizer que devemos desistir de encontrar soluções para este problema? Não. Quer dizer que só podemos aproximar-nos de uma solução aceitável se lutarmos encarniçadamente para não deixar por considerar nenhum aspecto essencial do que há a fazer e dos direitos que há a preservar.

(Em texto posterior abordaremos o sistema proposto pela Google e pela Apple - e voltaremos às garantias e riscos diferentes consoante tenhamos sistemas centralizados ou descentralizados.)

(O título deste texto é retomado de um artigo do site Data Rainbow.)

Porfírio Silva, 4 de Maio de 2020
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