Ainda é cedo para comparar rigorosamente as estratégias de resposta à ameaça pandémica seguidas, por um lado, pelos países que confinaram com rigor e, por outro lado, pelos países que deixaram correr a infecção. Até agora, os países que confinaram (mesmo moderadamente, como Portugal) tiveram melhores resultados do que os países que mantiveram a vida social largamente sem restrições e apostaram na imunidade de grupo. Mas falta muito para isto acabar e ainda temos muito para ver e aprender. Só retrospectivamente vamos saber com mais segurança onde poderia ter estado o equilíbrio mais acertado - embora essa avaliação dependa dos valores implicados.
De qualquer modo, é interessante acompanhar o caso da Suécia. Não foram os únicos que começaram por seguir uma estratégia percepcionada como descontraída, deixando a vida social correr sem grandes constrangimentos. Não está aí a especificidade. O ponto que me interessa é que, nesse país, estas decisões não cabem, normalmente, aos governantes: cabem às autoridades de saúde, que decidem segundo critérios científicos e técnicos. A esmagadora maioria das pessoas considera que isso é uma garantia, porque os cientistas é que sabem e os políticos não devem meter-se.
Grave erro.
Primeiro, porque não há nenhuma disciplina científica cujo objecto de estudo seja o conjunto completo de factores em questão num cenário como o presente, de vasta complexidade. Isto constitui um notável obstáculo a que muitos especialistas consigam compreender toda a extensão do problema (embora alguns estejam para isso mais vocacionados do que outros: o pessoal de saúde pública está treinado para uma abordagem abrangente em termos de interacção entre os vectores sociais e os vectores naturais de um cenário destes). Não havendo nenhuma disciplina científica com tal objecto, tão-pouco as abordagens intrinsecamente pluridisciplinares têm as oportunidades que deviam ter - num contexto de trabalho científico dominado por um grau assustador de compartimentação (a face perigosa da necessária especialização).
Segundo, porque nem todo o conhecimento científico junto pode dar respostas inequívocas a todas as perguntas que se colocam aos decisores numa situação da complexidade da actual pandemia. Se esse conhecimento completo existisse, talvez bastasse uma única decisão política: não desprezar o conhecimento disponível. Mas não existe esse cenário. Os decisores políticos têm sempre de tomar decisões em contexto de incerteza, guiados por valores civilizacionais e pelo conhecimento das formas de funcionamento das comunidades. A decisão política é sempre prudencial, precisamente porque é impossível ver o futuro de consequências dos passos dados hoje. Aplicar uma ética das consequências, neste caso, tem um grave problema: é impossível ter certezas acerca das consequências futuras concretas do que fazemos ou deixamos de fazer hoje. E as nossas intenções não contam nada aí, porque a maior parte do que acontece no mundo são consequências não intencionadas das acções individuais agregadas em comportamentos colectivos.
E esta dimensão irredutível da decisão política não se conforma com a postura de deixar a chave de uma encruzilhada destas nas mãos dos especialistas, embora os especialistas não possam ser ignorados. A admiração pelo modelo sueco, na parte em que confia estas decisões às estruturas técnicas e científicas, é uma postura que merece o nosso espanto - especialmente quando vem de cientistas sociais.
Porfírio Silva, 6 de Maio de 2020