![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpuoz1Vdm0WR4isWDzDvnE39wyHBENnvFVx2jz9cPzoKXCzh_1iUlBZXiq4yG9HGzOfiPaPUvgmu0ATSDmPjPVLVIaCwFwf7Hf9WrJ9DD6dHtdaJo-oNcHoT4cfH63Q-BGalf1gSmycJQ/s400/burrodeouro_apuleio.jpg)
O que queremos hoje destacar é uma leitura que nos aconteceu ao contrário. Não intrinsecamente às avessas, mas que seguiu caminhos tortuosos face ao caminho normal (embora "normal" apenas no sentido estatístico).
O caso é a leitura, já em finais de 2007, da obra O Burro de Ouro, de Apuleio, tra[du]zida directamente do latim para português por Delfim Leão (Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), publicada na Cotovia. Só que, e aí é que as coisas andaram um pouco de lado, o nosso contacto com essa obra do "último grande autor da Antiguidade pagã" aconteceu pela mão - ou pelo lápis - de outro grande pagão, o desenhador Milo Manara. Esse mestre de Banda Desenhada, admirável apesar de alguns desvios de oportunismo (explico-me acerca disso aqui), adaptou com grande fidelidade esse clássico no seu álbum A Metamorfose de Lúcio (faltando-lhe, dos grandes episódios do original, "apenas" o conto de Amor e Psique). Fizemos, então, o exercício de ler os dois livros, com uma mesma matriz apesar de serem objectos muito diferentes, ao mesmo tempo. E não damos aqui notícia disso: apenas deixamos alguns traços dessa experiência "ilustrativa", por assim dizer.
A obra, que se teria chamado originalmente O Burro de Ouro ou Metamorfoses, é um rosário um tanto desconexo de histórias variadas - o que levou Jorge Luis Borges a escrever, no Prólogo à novela La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares, acerca de "el temor de incurrir en la mera variedad sucesiva del Asno de Oro". Contudo, o fio central da história é como segue.
Lúcio, o protagonista, andando de viagem, acolhe-se à hospitalidade do avarento Milão na cidade de Hípate. Pânfila, a esposa de Milão, conta entre as suas habilidades (além de degustar moços) com o exercício de práticas mágicas que lhe permitem transformar pessoas em animais. Uma aplicação particular desses poderes é presenciada por Lúcio, quando Pânfila se transforma ela própria em coruja. Entusiasmado, Lúcio convence Fótis, a escrava de Milão e Pânfila com quem andara a entreter-se sexualmente (começa a perceber-se o interesse de Manara pela história...), a roubar a Pânfila o filtro para o transformar em pássaro. Mas Fótis dá-lhe, por engano, um unguento que o transforma em burro. Fica, assim, lançada a dinâmica central da narrativa: o antídoto para aquele filtro, a solução para reverter aquela metamorfose, até era simples: comer rosas devolveria a forma humana a Lúcio. Só que, peripécia atrás de peripécia, com a época do ano a jogar contra a possibilidade de encontrar pelo campo rosas para comer, o suplício de Lúcio-burro prolonga-se numa vida de montada.
O episódio central da metamorfose inicial é apresentado por Manara em quatro pranchas, que podemos ver abaixo (numa versão francesa, que aliás coincide com a edição que eu próprio uso).
O caso é a leitura, já em finais de 2007, da obra O Burro de Ouro, de Apuleio, tra[du]zida directamente do latim para português por Delfim Leão (Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), publicada na Cotovia. Só que, e aí é que as coisas andaram um pouco de lado, o nosso contacto com essa obra do "último grande autor da Antiguidade pagã" aconteceu pela mão - ou pelo lápis - de outro grande pagão, o desenhador Milo Manara. Esse mestre de Banda Desenhada, admirável apesar de alguns desvios de oportunismo (explico-me acerca disso aqui), adaptou com grande fidelidade esse clássico no seu álbum A Metamorfose de Lúcio (faltando-lhe, dos grandes episódios do original, "apenas" o conto de Amor e Psique). Fizemos, então, o exercício de ler os dois livros, com uma mesma matriz apesar de serem objectos muito diferentes, ao mesmo tempo. E não damos aqui notícia disso: apenas deixamos alguns traços dessa experiência "ilustrativa", por assim dizer.
A obra, que se teria chamado originalmente O Burro de Ouro ou Metamorfoses, é um rosário um tanto desconexo de histórias variadas - o que levou Jorge Luis Borges a escrever, no Prólogo à novela La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares, acerca de "el temor de incurrir en la mera variedad sucesiva del Asno de Oro". Contudo, o fio central da história é como segue.
Lúcio, o protagonista, andando de viagem, acolhe-se à hospitalidade do avarento Milão na cidade de Hípate. Pânfila, a esposa de Milão, conta entre as suas habilidades (além de degustar moços) com o exercício de práticas mágicas que lhe permitem transformar pessoas em animais. Uma aplicação particular desses poderes é presenciada por Lúcio, quando Pânfila se transforma ela própria em coruja. Entusiasmado, Lúcio convence Fótis, a escrava de Milão e Pânfila com quem andara a entreter-se sexualmente (começa a perceber-se o interesse de Manara pela história...), a roubar a Pânfila o filtro para o transformar em pássaro. Mas Fótis dá-lhe, por engano, um unguento que o transforma em burro. Fica, assim, lançada a dinâmica central da narrativa: o antídoto para aquele filtro, a solução para reverter aquela metamorfose, até era simples: comer rosas devolveria a forma humana a Lúcio. Só que, peripécia atrás de peripécia, com a época do ano a jogar contra a possibilidade de encontrar pelo campo rosas para comer, o suplício de Lúcio-burro prolonga-se numa vida de montada.
O episódio central da metamorfose inicial é apresentado por Manara em quatro pranchas, que podemos ver abaixo (numa versão francesa, que aliás coincide com a edição que eu próprio uso).
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSTj65_esR5eNI6Y7o5OuRSnXyeHc3A0r-rpqzMeDy0BBy0U86hhyabZU4HlHSmfpziKfGACi7ef6efAsXXKZBVzw8FD0ZAXyqXfUxCWT8llKv7l_uvyjVc8y4AHVPt3FCeWATTwVJAPs/s400/lucius023.jpg)
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Dada a fama - e o proveito - de Manara quanto à sua tendência para carregar forte nos elementos sexuais de qualquer história,ficamos convencidos, ao ler o álbum A Metamorfose de Lúcio, que ele acrescenta nessa direcção muitos pontos à obra original de Apuleio. Por exemplo, julgámos desse modo a cena em que Lúcio-burro mantém relações "carnais" com uma dama (prancha reproduzida aqui de seguida). Mas, afinal, Apuleio é mesmo o autor de tal cena. Afinal, Manara até é um leitor bastante respeitador...
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O jeito próprio de Manara (mulheres e sexo como grande tema) evidencia-se bem, de qualquer modo, quando valoriza de forma desproporcionada - relativamente ao original de Apuleio - certos elementos da obra inspiradora. Vejamos, por exemplo,esta simples frase d'O Burro de Ouro, na p.82: "E em boa verdade, quando eu estava já cansado, Fótis ofereceu-me, com a sua generosidade, os deleites de um rapazinho." Manara faz uma página inteira (prancha 15, que não reproduzimos) à custa desta única frase. E, ainda na mesma linha, a orgia ilustrada na prancha 17 (reproduzida abaixo) não aparece verdadeiramente em lugar nenhum da obra de Apuleio, embora responda bem a um certo imaginário.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjqP8B2CQzYqzsfNWpqRsm1bIR3UE77L2IMrXbAwf91mY9WWAG3fITRbaHe5xeV0KbeKnjSaDCJ8CLWLMfm7peACrR7yzioQpo9lxHmRaSMyS-titd3xNovYcH3fnh2ilwe332DyA5L1qk/s400/lucius017.jpg)
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E nisto andamos: o grande Manara, com o seu grande traço e as suas obsessões permanentes. Apesar de tudo, uma leitura paralela bastante interessante - e ilustrativa.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDYFogeNV7VX7mY8h_nknzYSlurLwjnpK00DbGjv01A6A11Ob_l8jtxKgSrK2oBpFKGt_HZ7gd8bTLRrRWJx_p5nhRelX2dWlQcTKQQuvTaWmrMN2e-SVMXXTv9UKwaPUgFyHZqveMT-s/s400/lucius038recorteweb.jpg)
(Ilustração de Manara para a aventura com os sacerdotes da deusa Síria.)
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