4.5.07

Banda Desenhada, coisa de miúdos…


BLANKETS. An illustrated novel by Craig Thompson. Editado por Top Shelf Production (Marietta, Georgia, nos States) Saiu em 2003. O exemplar de que eu sou o feliz proprietário pertence à sexta impressão, de Dezembro de 2005.


Para aqueles que lamentem que os miúdos (e as miúdas) só leiam coisas menores, como BD, informo: Blankets tem quase 600 páginas, é a preto e branco, está escrito em inglês. Foi feito (escrito e desenhado) por um moço nascido em 1975 – e é, em parte, autobiográfico desse mesmo moço, o tal Craig Thompson. O que se passa nesta novela gráfica são coisas simples da vida dos adolescentes: a chatice de ter que partilhar o quarto com o irmão, as batalhas com esse mesmo irmão pelas pequenas coisas ridículas da vida que são tão importantes; as coisas estranhas que acontecem quando os adolescentes começam a acreditar em coisas sérias; as confusões dos amores juvenis e de crescer com esses amores; as coisas bonitas que não se podem descrever por palavras mas ficam lindamente num traço preto que parece simples mas é muito expressivo. Mas essas coisas simples podem dizer muito: o amor, o idealismo, a desilusão, a alienação, os medos e os pesares. Um grande livro.





3.5.07

Rigor: ainda o debate Ségolène-Sarkozy

09:36

Tinha um assunto para esclarecer, para mim mesmo, desde ontem. Do pouco que sei sobre a questão do nuclear em França, parecia-me evidente que os números dados por Sarkozy acerca do peso do nuclear no consumo energético naquele país eram claramente fantasiosos. Pude agora confirmar, de acordo com o Figaro on-line (jornal de direita, insuspeito de simpatia por Royal) os números em causa.
Ségolène falou de 17% como peso do nuclear no consumo de electricidade em França, quando o correcto apontaria para 17% como peso do nuclear no consumo de toda a energia (e não apenas da electricidade). A candidata socialista cometeu, pois, uma imprecisão. Entretanto, segundo o Figaro, o número de 50%, adiantado pelo candidato da direita, "não corresponde a nada no domínio do consumo de energia". Quer dizer: a socialista cometeu de facto uma imprecisão, enquanto o populista de direita pura e simplesmente inventou um número qualquer para não ter de admitir em directo e ao vivo que não tinha a mais pequena ideia acerca de um dado essencial de um tema de que falava como um doutor.
Lamento parecer sectário, mas a verdade é que este pecadilho acontece muito a uma certa direita: julga que a esquerda, por definição, é estúpida e ignorante e, por isso, acha-se no direito de dizer qualquer coisa como se fosse a verdade mais sublime mesmo quando está apenas a fantasiar.

“Caixas de Memória”, de Bartolomeu dos Santos, na Galeria Ratton


Inaugura a 10 de Maio, e estará patente a partir do dia seguinte e até finais de Julho, a exposição “Caixas de Memória”. Bartolomeu dos Santos (n. 1931) viu mundo e actualmente vive e trabalha em Londres, Sintra e Tavira, tem exposto e está representado em colecções por esse mundo fora. Do texto que a Galeria Ratton divulgou retomamos o que segue, especificamente sobre esta exposição.
“Caixas de Memórias”, tem um duplo sentido, denotativo e simbólico. A maior parte das obras são caixas, objectos utilitários que o artista subverte, desvia da sua finalidade, transforma em objecto “outro”, não deixando de questionar em tom provocatório o novo estatuto que adquirem: “Is this art?”

As caixas servem, por definição, para guardar objectos, ocultá-los, preservá-los. As caixas de Bartolomeu dos Santos abrem-se na transparência de uma face de vidro, revelam segredos guardados na memória. São caixas mágicas onde sorriem sereias aladas, pacientes Penélopes à espera de Ulisses. Nas imagens femininas transparece uma terna ironia de que reencontramos eco nas alusões explícitas a Fernando Pessoa e ao seu heterónimo Ricardo Reis, seres de uma realidade mítica criada pela poesia. Estas figuras remetem para a viagem, para um mar que conduz a ilhas de prazer ou a portos seguros.

A maior parte das caixas desvendam memórias menos pacificadoras, contêm uma amálgama de ruínas: pedaços de objectos devastados, calhaus, estilhaços de espelhos, fragmentos ilegíveis de um passado que desconhecemos. Outras ainda transportam-nos para oceanos de perigos e batalhas, onde se inscrevem referências históricas alusivas a guerras e naufrágios.

Não é apenas “Under the surface” que nos revela tesouros submersos, cada uma e, no seu conjunto, todas estas caixas e telas são “flashes” de uma narrativa maior, em que individual e colectivo, mito e História, ficção e realidade, morte e memória se entrelaçam em vida habitada por sonhos e pesadelos, corpos doces e destroços, barcos de viajantes-poetas e navios de guerra, muitas interrogações e algumas certezas.


EXPOSIÇÃO A VISITAR NA GALERIA RATTON, Rua Academia das Ciências, 2C, em Lisboa


(Agradecemos que a Directora da Galeria Ratton tenha autorizado a divulgação aqui destes elementos: texto supra e imagens infra.)









2.5.07

Debate presidencial Ségolène vs. Sarkozy

Acabou há momentos o debate da segunda volta das presidenciais francesas entre Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy. Está fora de causa fazer aqui um balanço de ganhos e perdas, porque sou suspeito (prefiro a candidata socialista), mas há duas ou três pequenas notas que não posso deixar de apontar.

Em primeiro lugar, noto que Ségolène diz "quero um país de empreendedores" e Sarkozy diz (e repete) "quero um país de proprietários". Isso diz tudo da diferença entre uma certa esquerda e uma certa direita: o apelo ao ser "proprietário", como primeiro objectivo, é o apelo a uma condição, a um estatuto, a "um estado" - mas não é um apelo à acção, nem à responsabilidade perante a comunidade, nem à imaginação criadora. Uma direita que apela à aspiração de ser "proprietário" é uma direita inspirada nas classes possidentes e ociosas do antigo regime, não é sequer a direita da iniciativa económica e do gosto pelo risco. Ao contrário, a esquerda que diz querer um país de empreendedores (ou de empresários, como mais directamente devíamos traduzir a palavra francesa) é uma esquerda que promete ser capaz de ultrapassar o estatismo, o "tudo-ao-estado", o culto da dependência como solução generalizada. Aí, voto Ségolène.

Em segundo lugar, Sarkozy teve várias oportunidades de mostrar a sua falta de carácter. Especialmente, quando citou repetidas vezes o marido de Ségolène, inclusivamente questionando-a sobre se ela seguia as opiniões dele. É certo que o marido dela é também o chefe dos socialistas, mas mesmo assim o abuso dessa referência parece pouco normal quando as coisas se mantêm no plano das ideias e das atitudes que importam à função pública, não extravasando para a mesquinhez.

Em terceiro lugar, aplaudo que Ségolène tenha reivindicado a sua condição de mulher e de mãe (de quatro flhos), porque é cada vez mais urgente para a qualidade da democracia que se abram as portas do armário e as mulheres cheguem, em força e rapidamente, às mais altas responsabilidades das nossas democracias.
Há, de facto, qualquer coisa em jogo no próximo domingo em França.

A Turquia na União

09:34
O actual momento social e político na Turquia constitui uma boa oportunidade para reflectir sobre um tema fundamental: a eventual adesão desse país à União Europeia.

Sejamos breves. Muitos têm dúvidas acerca da bondade dessa adesão. Outros respondem acusando os autores dessas dúvidas de quererem que a UE seja um "clube cristão", supondo que a oposição à adesão turca é uma rejeição cultural-religiosa. Nós, é claro, não equacionamos a religião como um motivo de apreciação de qualquer adesão: basta lembrar o papel actualmente representado pela Polónia na UE, para vermos um catolicíssimo país a agir como um terrorista institucional dominado pelo egoísmo nacional, pela irresponsabilidade e pelo mais rasteiro desrespeito pelas normas da convivência. Não, a questão com a Turquia não é essa. Não é a diferença de religião que está em causa.

A actual situação turca relembra outro aspecto da questão. Mais uma vez, como ciclicamente tem acontecido desde há muitos anos, são os militares que colocam o seu peso na balança para preservar o carácter laico do estado turco e para impedir que a república seja tomada por aqueles que, mais depressa ou mais devagar, a querem transformar num "braço secular" de uma certa visão religiosa do mundo. Se não fossem os militares turcos e as suas intervenções, umas vezes mais próximas do golpe de estado e outras vezes mais aparentadas com conselhos amigáveis, a Turquia há muito que teria soçobrado ao obscurantismo de feição muçulmana. Os militares têm sido, na Turquia, o seguro de vida dos que querem viver num país relativamente "moderno".

Ora, o problema que se põe com a eventual adesão da Turquia à UE é este: não poderíamos, depois, permitir que os militares dessem golpes de estado num país membro da União! Desculpem o cinismo: a Turquia não pode aderir à União Europeia pela simples razão de que não devemos impedir os militares turcos de continuarem a exercer o seu papel moderador nessa república sempre à beira do abismo obscurantista.