14.7.25

A democracia não é um mercado



Em 2002, nas eleições de 17 de março, o PS teve uma das suas derrotas tangenciais: Ferro Rodrigues, numa situação de partida muito desfavorável, acabou por perder para Durão Barroso por cerca de 130 mil votos.

(Nota à margem: O país perceberia, depois, que Durão Barroso não estava nada interessado na governação do país e abalaria para "mais altos voos" abandonando o seu mandato de primeiro-ministro. Antes de abalar, Barroso encheu-se de vaidade por um daqueles momentos em que a direita tem sempre todas as certezas do mundo, faz todos os atropelos em nome dessas certezas, e depois sacode a água do capote quando as supostas certezas se revelam um embuste monumental. Falo do episódio da invasão do Iraque, em que Barroso, acompanhando o inefável Blair, mandou às malvas o direito internacional, viu - provavelmente numa manhã de nevoeiro - as "provas" das armas de destruição maciça que nunca ninguém encontrou, mesmo depois de estar no terreno, e só não nos enterrou mais naquela guerra porque o Presidente Jorge Sampaio travou a fundo. Mas a vergonha estava feita.)

Ora, depois dessa derrota tangencial, Ferro Rodrigues promoveu uma atualização da Declaração de Princípios do PS (e, também, dos Estatutos, mas não é disso que me ocupo aqui), o que propiciou uns largos meses de debates públicos, incluindo artigos na imprensa, de vários camaradas. (Estudo, também, esse processo no meu livro História das Declarações de Princípios do Partido Socialista.)

Um dos artigos que deixaram marca nesse debate é da autoria de Carlos Zorrinho, que escreve na qualidade de Secretário Nacional do PS, e é publicado no Público a 17 de abril desse ano. O título é sugestivo: "Virar o país à esquerda".

A tese de Carlos Zorrinho é basicamente a seguinte: tanto a pretensão de afirmar o PS ao centro para nos "ajustarmos aos tempos" (expressão minha, não dele) como a ideia de uma “clara e frontal viragem à esquerda” são estratégias erradas para levar o partido de novo ao poder. A razão para estarem erradas é que essas estratégias, quer uma quer outra, assentam no raciocínio de que os partidos correm atrás de “nichos de mercado eleitoral”, enquanto, a seu ver “o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam”. Assim, o que importa ao PS é “conquistar o centro não ideológico para as vantagens das suas políticas e das suas propostas”, que compatibilizam políticas sociais ousadas com responsabilidade orçamental. Isto seria, então, “virar o país à esquerda” – coisa que distingue de “virar o PS à esquerda”.

O raciocínio desenvolvido por Zorrinho nesse artigo de 2002 volta a ser muito atual. Estando o PS, nessa altura, num debate claramente ideológico (revisão da Declaração de Princípios), muitos camaradas lamentavam que se arriscava descaracterizar o PS (porque se correria o risco de "virar à direita") e outros queriam mesmo "virar ao centro" para ser agradável ao que pensavam que o eleitorado queria. Ora, com clareza, Zorrinho explicava que correr atrás do que se pensava ser a "procura eleitoral" e ajustar a nossa "oferta política" a esse "mercado dos votos" era uma atitude estranha à nossa função e à seriedade do nosso compromisso político. Escrevia o meu camarada, nessa altura: "Sem prejuízo dos necessários processos de modernização, o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam. O esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos, mas também mais voláteis e ocasionais." 

Isto é muito atual porque, sendo certo que a posição atual do PS exige reflexão acerca dos caminhos a seguir, há quem julgue que vale tudo para recuperar votos. Vale tudo por recuperar votos poderia, até, passar por dar pão aos piores instintos que vão contra as nossas emoções democráticas: humanismo, consideração pelos mais vulneráveis (mesmo quando não tenham razão em certas conjunturas concretas), ver no Outro um Igual que é Diferente mas tem tanta dignidade como nós, não tentar resolver problemas sociais esmagando os que já estão na mó de baixo, ... Enfim, atitudes que os socialistas tendem a tomar espontaneamente, mesmo sem excessiva racionalização e sem excessivas considerações táticas. São "emoções democráticas" que, creio, nos honram. 

Se entramos numa "mercearia eleitoral" e começamos a fazer aquilo que parece que o eleitorado gosta, mesmo quando há eleitorado que gosta de coisas detestáveis, estamos a vender a alma em troco de uma via rápida para ganhar uns votos. Essa via rápida pode até dar algum resultado no imediato, mas torna-nos dispensáveis a prazo: se nós prescindimos da nossa diferença, se abandonamos aquilo que consolidou o nosso papel específico na sociedade portuguesa, não tarda deixará de haver motivo para sermos escolhidos. A única alternativa decente é fazer como escrevia Carlos Zorrinho: trabalhar nas nossas propostas e convencer as pessoas de que elas são as necessárias. A solução não será, em caso nenhum, deixarmos de ser quem somos e irmos na onda. A não que a escolha seja sermos engolidos pela onda. 

Porque, repito Carlos Zorrinho, "o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam" e "o esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos".



Porfírio Silva, 14 de Julho de 2025

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