Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas
A 12 de junho comemorámos 40 anos da assinatura do Tratado
de Adesão de Portugal à (então) CEE. Mas nem tudo foi bonito nesse dia. Com
estupefação, vimos afloramentos de uma tentativa para desvalorizar o papel decisivo
de Mário Soares nesse passo.
Testemunhei ao vivo, na Conferência “No Centenário de Mário
Soares - Orgulhosamente Acompanhados - 40 anos de Portugal na União Europeia”, o
MNE, Paulo Rangel, tentar menorizar o papel de Mário Soares no processo de
adesão, mostrando-se agastado com o relevo de Soares na memória histórica. Dizer
que outros também eram europeístas – é verdade, mas não autoriza deslustrar o
motor político dessa adesão.
Há, na nossa integração europeia, factos que todos conhecemos.
Apenas entrado em plenitude de funções, o I Governo Constitucional avançou para
a Europa e, em poucos meses, preparou e, com apoio do Parlamento, formalizou o
pedido de adesão, apesar dos conselhos receosos dos economistas. Soares colheu
o que semeou, ao assinar o Tratado de Adesão.
Contudo, compreender o papel singular de Mário Soares implicar
saber algo mais.
Em 1976, o programa eleitoral do PS alongava-se sobre a
centralidade da adesão de Portugal à CEE no rumo pretendido para o país. O PS tomava
essa opção como um novo eixo estruturador do posicionamento de Portugal no
mundo.
Por contraste, o programa do PPD, das 5 páginas sobre o
posicionamento de Portugal no mundo, reservava menos de 20 palavras à adesão à
CEE. A parte internacional do programa do PPD tinha 6 parágrafos, com 6 prioridades.
A adesão à CEE não merecia nenhum dos seis parágrafos, não se destacava como
uma das prioridades. A brevíssima referência à adesão à CEE aparecia, como
questão subordinada, enxertada num subparágrafo.
Nesse ano de 1976, enquanto o programa do PS colocava a
integração europeia como estruturante de uma visão de desenvolvimento e de
consolidação da democracia, no programa do PPD a questão da adesão à CEE era diluída
numa miscelânea de temáticas, encravada na questão das relações ibéricas e
misturada com a revisão do Pacto Ibérico.
O percurso político anterior de Mário Soares explica como,
chegado o momento de governar, fazia diferença a sua visão clara e a sua
determinação europeísta. Durante os muitos anos de oposicionista à ditadura, as
lideranças democráticas europeias tornaram-se interlocutores privilegiados de
Mário Soares. Escrevendo na imprensa europeia, publicando fora de portas,
discursando nos congressos e conferências dos socialistas (e dos federalistas),
reunindo com governantes, unia o futuro democrático de Portugal à integração no
concerto das democracias europeias. Como fez, também, discursando no Conselho
da Europa, em 1970.
O primeiro programa doutrinário do PS, de 1973, ainda na
clandestinidade, punha a Europa democrática como horizonte de um Portugal
democratizado – embora criticando a falta de uma “Europa Social”, de uma Europa
dos trabalhadores.
Logo a 3 de dezembro de 1974, o Le Monde destacava a
afirmação de Mário Soares: “O nosso objetivo a longo prazo é a integração na
CEE.”
O melhor do nosso europeísmo floresceu por contraste com o
fechamento cinzento e pesado da ditadura de Salazar e Caetano – e amadureceu na
necessidade de garantir a democracia representativa. Várias personalidades,
antes e depois de Abril, de diferentes ideologias, juntaram a sua voz e a sua
ação a uma visão europeísta do nosso futuro comum. Honra lhes seja feita por
terem enfrentado os isolacionistas, quer os do triste “orgulhosamente sós”,
quer os das visões redutoras e simplistas da soberania nacional. O governo que
assinou a adesão não era monocolor.
Contudo, ninguém teve o desejo e o ensejo de ser tão
decisivo e tão definidor nessa adesão à União Europeia como Mário Soares. A
história diz-nos isso. É, pois, inaceitável a tentativa, pequena e sectária, de
tentar menorizar, ou sequer relativizar, o papel de Mário Soares no processo de
integração europeia.
