DERROTAR A EXTREMA-DIREITA,
NÃO APENAS POR AGORA, MAS DURADOURAMENTE
Ontem, festejámos uma realização importante: os franceses
travaram a extrema-direita! A Nova Frente Popular, juntando uma pluralidade de
forças de esquerda – entre as quais, o Partido Socialista Francês –, num acordo
político e eleitoral concretizado em pouquíssimos dias, elegeu mais deputados
do que qualquer outra candidatura. O Ensemble, reunindo várias forças que se
movem na influência do Presidente Macron, ficou em segundo lugar. Em terceiro
lugar, em número de deputados, ficou o partido de extrema-direita animado por
Marine Le Pen.
Numa semana em que tivemos duas eleições legislativas
importantes no espaço europeu, Reino Unido e França, os socialistas têm muita
coisa a festejar. O Partido Trabalhista britânico conquistou uma larguíssima
maioria absoluta, acabando com mais de uma década de trapalhadas dos
conservadores e permitindo a esperança de uma governação mais decente naquele
país (por exemplo, acabando com o projeto de entrega de refugiados a países
terceiros, ao arrepio das garantias com que os países civilizados se comprometem
face à lei internacional). Pelo seu lado, o Partido Socialista Francês integrou
a vasta reunião de forças de esquerda que trabalhou para impedir o acesso da
extrema-direita ao poder – tendo conseguido concretizar esse desiderato. São,
pois, duas realizações positivas de partidos com quem o PS mantém estreitas e
cordiais relações, baseadas em valores e compromissos progressistas.
Convém, no entanto, continuar com os pés bem assentes na
terra e sermos capazes de medir os desafios que temos perante nós. No Reino
Unido, o Reform UK, o partido extremista liderado por Nigel Farage (o Trump
inglês), só conseguiu eleger quatro deputados para a Câmara dos Comuns (o que
compara com mais de quatrocentos eleitos pelo Labour), mas isso deveu-se ao
sistema eleitoral vigente (uninominal maioritário a uma volta, em que, em cada
círculo, “o vencedor leva tudo”). Em votos, esse partido extremista colheu mais
de 14%. Ficou, pois, em terceiro lugar (os Trabalhistas venceram com mais de
33% e os Conservadores ficaram com mais de 23%). Em França, o partido
extremista, que tenta apresentar uma imagem adocicada para melhor enganar os
incautos, e que vai navegando em sucessivas gerações Le Pen, tendo, graças à
“frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na
Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco
mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas
mobilizadas por Macron. Era com este sistema que a extrema-direita ambicionava
chegar à maioria absoluta, chegando o seu candidato a primeiro-ministro a dizer
que só formaria governo nessas condições, pelo que não devemos dar qualquer
crédito aos seus protestos pelo funcionamento do sistema depois de conhecerem
os resultados das urnas – mas a questão merece reflexão.
O que estes números nos dizem é que, mais do que derrotar a
extrema-direita hoje, é preciso derrotar a extrema-direita duradouramente. Agir
nas raízes, não apenas na copa das árvores. É preciso eliminar as causas
sociais e políticas do avanço da extrema-direita, única maneira de evitar que
ela volte, mais forte a cada nova perturbação, até derrotar a democracia.
Para derrotar as causas sociais do avanço da extrema-direita
é preciso ultrapassar a insensibilidade social que, por vezes, impede os
partidos democráticos de atentar mais cuidadosamente na vida concreta das
pessoas e dos territórios – e de lhes dar respostas substantivas. Em França,
essa insensibilidade social apresentou-se, nos últimos anos, desde logo, no
topo do Estado, com a atitude do Presidente Macron, tornando-se a marca dessa
forma de centrismo equilibrista e com uma ideia de progresso excessivamente
abstrata e desligada das realidades sociais.
Para derrotar as causas políticas do avanço da
extrema-direita é preciso insuflar vida nas instituições democráticas,
permitindo que a discussão real e concreta da vida quotidiana de todos os
cidadãos e de todos os territórios se torne o centro da vida política – e
criando espaços de verdadeira deliberação democrática, de tal modo que se torne
visível que aquilo de que os políticos falam é mesmo acerca dos melhores
caminhos para conseguirmos, todos, uma vida melhor. Uma democracia deliberativa
é uma democracia que não se esgota na prevalência dos que têm mais votos: é uma
democracia que se exerce escutando efetivamente os argumentos dos outros e
integrando todos os contributos positivos num processo de ir continuando a
tentar fazer melhor.
Para derrotar as causas políticas do avanço da
extrema-direita é preciso que a esquerda não renuncie a ser alternativa: em vez
de querer apenas rodar no poder com a direita, a esquerda deve trabalhar para
oferecer soluções melhores, mais justas e mais sustentáveis, para a vida das
pessoas e do país. Por isso, no caso da França, é importante que a Nova Frente
Popular seja capaz de se manter unida a trabalhar por uma visão alternativa
para a governação do país, com o programa comum que as diferentes forças de
esquerda apresentaram em conjunto ao país, capaz de ultrapassar a
insensibilidade social que o bloco centrista liderado por Macron tem
protagonizado. E, ao mesmo tempo, para garantir que a derrota da
extrema-direita não é momentânea, mas duradoura e profunda, é preciso que a
esquerda vencedora, a Nova Frente Popular, seja capaz de trabalhar com as
demais forças democráticas para criar o espaço social necessário para tratar
das feridas e ir em frente: se foram capazes de se eleger mutuamente, apesar
das diferenças, deverão ser capazes de recusar à extrema-direita a
instabilidade e a crispação de que ela se alimenta.
Numa democracia representativa, onde o parlamento é o lugar
central de deliberação, não faz sentido continuar com a ficção de que basta
chegar à frente numa eleição para poder governar sozinho. Ninguém pode nunca
governar sozinho, mesmo que tenha maioria absoluta no parlamento, porque,
felizmente, a sociedade conta – e conta cada vez mais. Mais claro se torna que,
ficando em primeiro lugar, mas com maioria relativa, é preciso trabalhar num
horizonte mais amplo. E, claro, a esquerda só pode escolher trabalhar com os
democratas, com os outros democratas. Com os democratas que não hesitam em
defender a República face à ameaça da extrema-direita, porque só esses são
democratas com que se pode contar. Numa palavra: em tempos difíceis, em
democracias complexas, o sectarismo é suicídio. Em França como alhures. Quer
isto dizer que a esquerda deve perder de vista a sua diferença, o seu
contributo próprio? Não. Quer dizer que a esquerda relevante é a esquerda que,
antes de mais, é a força democrática por excelência, a força determinante para
que prevaleça a democracia contra o fechamento das sociedades e contra as
tentações totalitárias.