Há dois dias (15 de Abril, segunda-feira) foi a apresentação de Memórias Minhas, de Manuel Alegre. Ontem publiquei, no Acção Socialista Digital, um texto sobre a sessão e sobre o livro. Fica aqui, para registo.
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Não é –
ou, pelo menos, não é apenas – por ser o mais recente livro do Presidente
Honorário do Partido Socialista que merece aqui destaque, no órgão informativo
oficial do Partido, o lançamento de Memórias Minhas, de Manuel
Alegre (nas Publicações Dom Quixote).
A obra Memórias Minhas, de Manuel Alegre, foi apresentada
ontem, ao fim da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa sessão onde
foram produzidas intervenções, sobre a obra literária e cívica do Autor, por
António Feijó (Presidente da FCG), Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Soares
e Jaime Gama. A encerrar a sessão, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de
Sousa, discursou e condecorou Manuel Alegre com a Grã-Cruz da Ordem de
Camões. Manuel Alegre agradeceu a distinção, que disse ser uma surpresa, e
afirmou ser esta, de todas as condecorações que recebeu, “aquela que mais fundo
me toca”, “dada a minha veneração de Camões, dado o facto de Camões estar
sempre presente em mim e estar sempre presente em tudo o que escrevi."
De acordo com Manuel Alegre, Memórias Minhas foi escrito como
o título indica, radicalmente: de memória, de memória mesmo, de memória apenas,
sem recurso a quaisquer apontamentos ou documentos. Faz justiça ao facto de o
autor, na sua vida cívica e política, ter continuadamente chamado a atenção
para a importância da memória para a nossa vida coletiva, da necessidade de
alimentarmos de memória a inteireza da nossa pertença ao mundo.
O livro traça as raízes históricas profundas do empenhamento cidadão do autor,
incluindo os liberais do princípio do século XIX, desenhando a diversidade de
pertenças políticas e sociais dos seus antepassados. E vem, também e
principalmente, enriquecer o património da nossa vida pública por densificar o
conhecimento disponível acerca das décadas mais recentes da nossa vida como
povo. Antes e depois de Abril, em campanhas decisivas como a de Humberto
Delgado, na sua passagem pelo PCP e na saída provocada de forma mais imediata
pela não condenação da invasão soviética da Checoslováquia em 1968, na guerra
colonial, no exílio, na prisão, na adesão ao PS, na luta contra o desvio
gonçalvista que arriscou levar a revolução para fora do seu impulso democrático
original, na camaradagem com Mário Soares e nos momentos de aproximação e
afastamento político, na crítica à Terceira Via e à tentação do socialismo
democrático pelas teses neoliberais, na voz que falava de Argel pela rádio
quando não podia falar cá e na voz que representou sempre uma certa ideia de
esquerda dentro do PS, no militante que nunca deixou de ser e contudo protagonizou
um movimento de cidadãos que passava ao lado do PS e às avessas com algumas
orientações do PS, … são inúmeros os episódios que merecem ser revisitados, em
mais uma perspetiva agora exposta nesta obra.
A obra contribui, também, para a nossa compreensão da personalidade política e
literária de Manuel Alegre. Não tanto por incluir novidades extraordinárias
acerca de factos, mas especialmente por nos abrir um pouco a janela da
compreensão do modo como Manuel Alegre vê Manuel Alegre. Jaime Gama, na
brilhante oração que fez na sessão de apresentação do livro, disse isso de
forma particularmente profunda – e também talvez um pouco provocante – ao
afirmar que Manuel Alegre escreve o romance da sua própria vida. A verdade é
que, seja ao contar episódios da sua vida pessoal e familiar, seja ao focar a
sua escrita em episódios da grande história contemporânea de Portugal, este
livro é nitidamente obra de um grande escritor.
Aprecio, particularmente, a forma como Manuel Alegre assume que política e
poesia são partes inseparáveis da sua vida, do seu modo de ser, do mundo que
lhe faz sentido. Ser poeta pode ser, e no caso de Manuel Alegre é, uma forma de
olhar para o mundo que não se esgota nas suas palavras nos seus poemas. Ainda
numa parte inicial do livro, essa questão é apresentada em referência a sua
tia-avó Maria do Carmo, que “ainda eu não tinha escrito nenhum verso, já ela,
referindo-se a mim, dizia ‘o nosso poeta’” (p.28).
Há, de qualquer modo, muito em Memórias Minhas para nos dar
que pensar em termos políticos, sem que possamos desligar-nos da poesia do
poeta. Nambuangongo é uma referência para quem conheça um pouco da obra de
Manuel Alegre. Entretanto, é-nos contado que, a primeira vez que ficou em
Nambuangongo, o autor dormiu no quarto de António Arnaut, que tinha na parede
duas frases, uma de Fidel Castro e outra do Papa João XXIII. A de Castro rezava
assim: “Nem Liberdade sem Pão, nem Pão sem Liberdade” (p. 109). Confesso que
não conhecia essa frase de Fidel Castro, e lamento que o próprio líder da
revolução cubana não tenha sido fiel a tal pensamento. De qualquer modo,
segundo Alegre, foi a primeira vez que falaram de “socialismo em liberdade”. E
a liberdade sempre foi uma bússola para o autor de Memórias Minhas,
além de ser, também, um compromisso permanente do Partido Socialista.
O que é mais marcante num livro de memórias, quando as memórias são
significativas para além do círculo do próprio autor, é que as memórias não são
vidas passadas. As memórias fazem as vidas presentes. Há um momento onde,
literariamente, isso é expresso, de forma particularmente bela, por Manuel
Alegre. Está a contar (p. 35) um período em que, ainda adolescente, viveu em
Lisboa com parte da família, mas tendo o pai ficado no Norte. E diz onde viviam
em Lisboa. “Morávamos na Rua Padre António Vieira, nº 1, à esquina da Castilho,
em frente ao Parque Eduardo VII. A mesma rua onde hoje mora o meu amigo Jorge
Sampaio, ex-Presidente da República.” Não respigo este momento pela
circunstância de eu próprio viver há bastantes anos nesse mesmo recanto de
Lisboa, tendo também memórias vivas – e muito saudosas – da vizinhança com
Jorge Sampaio. É que, vejam bem a forma extraordinariamente literária, e
poética, como Alegre diz. Em 2024, tendo Jorge Sampaio desaparecido do nosso
convívio há alguns anos, Manuel Alegre diz que Jorge Sampaio está lá. Vive lá.
Nós temo-lo ali. E assim se diz, tão brevemente e sem adorno nenhum, algo tão
belo e tão profundo acerca das nossas vidas e das nossas memórias.
Manuel Alegre é um amante de Portugal. Mesmo quando a sua pátria era diferente
da pátria dos opressores. A resistência é em si mesmo uma pátria. Eis
uma ideia central neste livro. E uma ideia que ajuda a compreender o seu autor.
Um autor que correu os riscos inerentes. Como disse, ontem, na apresentação:
“Não me precavi.” Precisamos mais de cidadãos assim.
Porfírio Silva, 17 de Abril de 2024