Os dois discursos proferidos ontem na tomada de posse do
XXIV Governo Constitucional constituem, em conjunto e em contraste, uma peça
política relevante.
O elemento central do discurso do Presidente da República é
aquele segmento onde Marcelo Rebelo de Sousa enuncia os quatro fatores de
complexidade do mandato do Governo: o panorama internacional, a governação
económica e social interna, a base de apoio político, o tempo disponível.
Seria útil analisar aqui a explanação de todas essas razões
– designadamente, quando, ao lembrar que o mundo está perigoso e pode piorar, o
PR deixou por mencionar que, precisamente, o Governo cessante enfrentou, nos
últimos anos, duas crises de dimensões gigantescas, uma encavalitada na outra:
uma pandemia, uma crise de saúde pública de dimensão nunca antes experienciada
por nenhum ser humano vivo; e uma guerra na Europa, com um impacto brutal na
vida das pessoas, que espoletou uma crise inflacionária sem precedentes neste
século, sendo de sublinhar que nenhuma dessas crises se deveu à ação do Governo
ou dos portugueses. Mas, para economizar discurso, concentremo-nos no fator
“base de apoio político”.
Nessa alínea, Marcelo Rebelo de Sousa, dando por adquirido o
apoio presidencial, diz quatro coisas relevantes.
Primeiro, já que o Governo “não conta com apoio maioritário
na AR”, então, “tem de o construir”. Isto é, a responsabilidade de acrescentar
peso à exígua maioria parlamentar relativa é uma responsabilidade que o
Presidente atribui ao Governo – o que parece evidente, já que desejou e assumiu
a tarefa de governar.
Segundo, há domínios de “convergências mais prováveis”, que
são o que designou por “questões de regime”: “política externa, de defesa,
europeia, financeira de repercussões internacionais, ou de compromissos
eleitorais semelhantes”. São domínios onde a incapacidade de decidir pode
afetar diretamente o interesse nacional, inclusivamente expondo o país ao
incumprimento de obrigações internacionais e ao risco de “fazer fraca figura”
perante os nossos parceiros. Diríamos que este é o perímetro da oposição responsável,
que aceita compromissos – com um Governo que também aceite compromissos.
Terceiro, há campos de “convergências menos prováveis”,
sendo aí que “o diálogo tem de ser muito mais aturado e muito mais exigente”. Não
são especificados quais os itens que fazem parte deste conjunto – o que é
natural, em democracia, onde se reconhece a importância da diferença funcional
entre governo e oposição.
Quarto, há um domínio de dificuldade agravada quanto à
possibilidade de convergência: “reformas estruturais ou Orçamentos de Estado”, onde
essa exigência de diálogo “é ainda de mais largo fôlego” – diálogo que, como
enunciou o PR em primeiro lugar, é uma responsabilidade cuja iniciativa cabe ao
Governo.
Se a cerimónia de tomada de posse do Governo chefiado por
Luís Montenegro podia ter revelado algum sinal de esperança para o
funcionamento do nosso regime democrático, ele deveria vir de um discurso onde
o Primeiro-Ministro respondesse pela positiva ao desafio exposto pelo
Presidente da República. Só que, olhando para o que realmente se passou, Luís
Montenegro, manifestamente, não ouviu, ou não foi capaz de ouvir, ou não foi
capaz de corresponder, ao que Marcelo Rebelo de Sousa acabara de expor.
O Primeiro-Ministro Luís Montenegro não lançou nenhuma ponte
para a oposição. Pelo contrário, foi agressivo até para o Governo cessante,
apesar da atitude de elevação institucional que o Primeiro-Ministro cessante,
António Costa, manteve durante toda a fase de transição, e foi agressivo também
para o PS, que tem revelado uma atitude responsável e construtiva desde o
momento inicial deste ciclo político pós-10 de março. Luís Montenegro não deu
qualquer sinal de procurar ir ao encontro de qualquer preocupação do PS.
Luís Montenegro, no primeiro dos seus discursos como chefe
de governo, ensaiou até uma revisão informal da Constituição, uma revisão
instantânea e unilateral, querendo atribuir um significado institucional
espúrio ao facto, há muito tempo anunciado, de que o PS não apresentará moção
de rejeição do programa de governo e tão-pouco votará tal documento se
apresentado por outro partido. Faz isso quando diz – não por descuido na
oralidade, porque estava escrito o discurso – o seguinte: “Não rejeitar o
Programa do Governo no Parlamento não significa apenas permitir o início da
ação governativa. Significa permitir a sua execução até ao final do mandato ou,
no limite, até à aprovação de uma moção de censura.” Esta “inovação
constitucional” improvisada atribui consequências políticas inusitadas à
decisão do PS de não bloquear a entrada em funções do governo minoritário. Ao
arrepio do texto constitucional, tem o condão de inventar uma regra
parlamentar: só se pode ser oposição apresentando uma moção de censura, não há outras
formas de fazer oposição. Luís Montenegro parte para a governação com uma regra
bizarra em mente: a relação entre governo e oposição rege-se pelo princípio do
tudo ou nada. Ora, esse é precisamente o caminho contrário e contraditório com
qualquer ideia séria de diálogo, de concertação, de compromisso. Essa via
negativa fica denunciada quando o Primeiro-Ministro recupera, no seu discurso
escrito e previamente preparado, o “deixem-nos trabalhar” de outros tempos. É
um discurso que responde “não” ao desafio de diálogo e convergência proposto
minutos antes pelo Presidente da República.
Seria bom que todos os democratas tivessem presente, quando
evocam, exclusivamente em seu favor, a “vontade dos portugueses”, o seguinte: a
vontade dos portugueses é plural; é na sua pluralidade que o Parlamento
representa a cidadania; o PSD e o PS têm o mesmo número de deputado na
Assembleia da República e não se pode pedir a nenhum deputado que esqueça os
seus compromissos eleitorais. Luís Montenegro começou o seu mandato com um
discurso onde, no essencial, deixou uma mensagem perturbadora, que se poderia
resumir assim: “a oposição desta legislatura não pode fazer oposição como eu
fiz oposição na legislatura anterior”. É tempo de o Sr. Primeiro-Ministro
entender que a campanha eleitoral acabou e é já tempo de assumir, e não alijar,
as suas responsabilidades próprias.