3.4.24

Sr. Primeiro-Ministro, a campanha eleitoral acabou!



Ocasionalmente, na minha função de Director do Acção Socialista, escrevo o editorial da edição digital diária. Foi hoje o caso, atendendo à tomada de posse, ontem, do XXIV Governo Constitucional, chefiado por Luís Montenegro. Deixo, aqui, esse texto, para registo.

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Os dois discursos proferidos ontem na tomada de posse do XXIV Governo Constitucional constituem, em conjunto e em contraste, uma peça política relevante.

O elemento central do discurso do Presidente da República é aquele segmento onde Marcelo Rebelo de Sousa enuncia os quatro fatores de complexidade do mandato do Governo: o panorama internacional, a governação económica e social interna, a base de apoio político, o tempo disponível.

Seria útil analisar aqui a explanação de todas essas razões – designadamente, quando, ao lembrar que o mundo está perigoso e pode piorar, o PR deixou por mencionar que, precisamente, o Governo cessante enfrentou, nos últimos anos, duas crises de dimensões gigantescas, uma encavalitada na outra: uma pandemia, uma crise de saúde pública de dimensão nunca antes experienciada por nenhum ser humano vivo; e uma guerra na Europa, com um impacto brutal na vida das pessoas, que espoletou uma crise inflacionária sem precedentes neste século, sendo de sublinhar que nenhuma dessas crises se deveu à ação do Governo ou dos portugueses. Mas, para economizar discurso, concentremo-nos no fator “base de apoio político”.

Nessa alínea, Marcelo Rebelo de Sousa, dando por adquirido o apoio presidencial, diz quatro coisas relevantes.

Primeiro, já que o Governo “não conta com apoio maioritário na AR”, então, “tem de o construir”. Isto é, a responsabilidade de acrescentar peso à exígua maioria parlamentar relativa é uma responsabilidade que o Presidente atribui ao Governo – o que parece evidente, já que desejou e assumiu a tarefa de governar.

Segundo, há domínios de “convergências mais prováveis”, que são o que designou por “questões de regime”: “política externa, de defesa, europeia, financeira de repercussões internacionais, ou de compromissos eleitorais semelhantes”. São domínios onde a incapacidade de decidir pode afetar diretamente o interesse nacional, inclusivamente expondo o país ao incumprimento de obrigações internacionais e ao risco de “fazer fraca figura” perante os nossos parceiros. Diríamos que este é o perímetro da oposição responsável, que aceita compromissos – com um Governo que também aceite compromissos.

Terceiro, há campos de “convergências menos prováveis”, sendo aí que “o diálogo tem de ser muito mais aturado e muito mais exigente”. Não são especificados quais os itens que fazem parte deste conjunto – o que é natural, em democracia, onde se reconhece a importância da diferença funcional entre governo e oposição.

Quarto, há um domínio de dificuldade agravada quanto à possibilidade de convergência: “reformas estruturais ou Orçamentos de Estado”, onde essa exigência de diálogo “é ainda de mais largo fôlego” – diálogo que, como enunciou o PR em primeiro lugar, é uma responsabilidade cuja iniciativa cabe ao Governo.

Se a cerimónia de tomada de posse do Governo chefiado por Luís Montenegro podia ter revelado algum sinal de esperança para o funcionamento do nosso regime democrático, ele deveria vir de um discurso onde o Primeiro-Ministro respondesse pela positiva ao desafio exposto pelo Presidente da República. Só que, olhando para o que realmente se passou, Luís Montenegro, manifestamente, não ouviu, ou não foi capaz de ouvir, ou não foi capaz de corresponder, ao que Marcelo Rebelo de Sousa acabara de expor.

O Primeiro-Ministro Luís Montenegro não lançou nenhuma ponte para a oposição. Pelo contrário, foi agressivo até para o Governo cessante, apesar da atitude de elevação institucional que o Primeiro-Ministro cessante, António Costa, manteve durante toda a fase de transição, e foi agressivo também para o PS, que tem revelado uma atitude responsável e construtiva desde o momento inicial deste ciclo político pós-10 de março. Luís Montenegro não deu qualquer sinal de procurar ir ao encontro de qualquer preocupação do PS.

Luís Montenegro, no primeiro dos seus discursos como chefe de governo, ensaiou até uma revisão informal da Constituição, uma revisão instantânea e unilateral, querendo atribuir um significado institucional espúrio ao facto, há muito tempo anunciado, de que o PS não apresentará moção de rejeição do programa de governo e tão-pouco votará tal documento se apresentado por outro partido. Faz isso quando diz – não por descuido na oralidade, porque estava escrito o discurso – o seguinte: “Não rejeitar o Programa do Governo no Parlamento não significa apenas permitir o início da ação governativa. Significa permitir a sua execução até ao final do mandato ou, no limite, até à aprovação de uma moção de censura.” Esta “inovação constitucional” improvisada atribui consequências políticas inusitadas à decisão do PS de não bloquear a entrada em funções do governo minoritário. Ao arrepio do texto constitucional, tem o condão de inventar uma regra parlamentar: só se pode ser oposição apresentando uma moção de censura, não há outras formas de fazer oposição. Luís Montenegro parte para a governação com uma regra bizarra em mente: a relação entre governo e oposição rege-se pelo princípio do tudo ou nada. Ora, esse é precisamente o caminho contrário e contraditório com qualquer ideia séria de diálogo, de concertação, de compromisso. Essa via negativa fica denunciada quando o Primeiro-Ministro recupera, no seu discurso escrito e previamente preparado, o “deixem-nos trabalhar” de outros tempos. É um discurso que responde “não” ao desafio de diálogo e convergência proposto minutos antes pelo Presidente da República.

Seria bom que todos os democratas tivessem presente, quando evocam, exclusivamente em seu favor, a “vontade dos portugueses”, o seguinte: a vontade dos portugueses é plural; é na sua pluralidade que o Parlamento representa a cidadania; o PSD e o PS têm o mesmo número de deputado na Assembleia da República e não se pode pedir a nenhum deputado que esqueça os seus compromissos eleitorais. Luís Montenegro começou o seu mandato com um discurso onde, no essencial, deixou uma mensagem perturbadora, que se poderia resumir assim: “a oposição desta legislatura não pode fazer oposição como eu fiz oposição na legislatura anterior”. É tempo de o Sr. Primeiro-Ministro entender que a campanha eleitoral acabou e é já tempo de assumir, e não alijar, as suas responsabilidades próprias.


Porfírio Silva, 3 de Abril de 2024
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