O artigo de Carmo Afonso, hoje no Público, começa assim:
"Há dois discursos de António Costa que deveriam ter marcado o final do seu percurso político. Falo, primeiro, do discurso da noite de 5 de outubro de 2015. Nessa noite, António Costa atirou a toalha para o chão. Tinha perdido as eleições para a coligação que mais austeridade impôs ao país, quando se esperava que a vitória fosse sua. Parecia arrumado."
Não vou analisar a sequência do artigo, com o qual posso, genericamente, concordar. Mas este arranque descredibiliza a análise.
Desde logo, não se conhece nenhum discurso de António Costa na noite de 5 de outubro de 2015. As eleições legislativas desse ano foram a 4 de outubro e António Costa fez um discurso importante nesse 4 de outubro. E a 5 de outubro não discursou (já tinha deixado de ser presidente da câmara de Lisboa, onde durante anos discursara a 5 de outubro).
Mas, mais importante, ou Carmo Afonso não se lembra ou não percebeu patavina do discurso de António Costa na noite eleitoral de 4 de outubro de 2015. Para dizer que, nesse discurso, António Costa "atirou a toalha para o chão", a articulista teve a mesma dificuldade que Passos Coelho e Paulo Portas: não percebeu nada do que se disse e não percebeu nada do que esse discurso estava a colocar em andamento (tal como, aliás, o discurso de Jerónimo de Sousa).
Costa não se demitiu (mesmo dentro do PS alguns não perceberam o que isso queria dizer: no dia seguinte Álvaro Beleza manifestava disponibilidade para se candidatar à liderança do PS).
Costa explicou a Passos e Portas que o quadro político tinha mudado ("a coligação tem de perceber que há um novo quadro").
Costa deu a si próprio e ao PS uma tarefa em consequência do resultado eleitoral: o PS vai "garantir que a vontade dos portugueses não se perca na ingovernabilidade".
Tudo vinha na sequência de uma declaração que António Costa tinha dado ao Expresso antes do encerramento da campanha eleitoral: o PS não vai viabilizar um governo minoritário da direita.
Na altura, poucos perceberam. Alguns demoraram algumas semanas a perceber. Nunca pensei que, passados todos estes anos, ainda alguém não tenha percebido: não o que aconteceu depois, nas mesmo o que se disse naquela noite de 4 de outubro de 2015.
É bem certo que não basta ouvir para entender.
Porfírio Silva, 14 de junho de 2024