Com o estatuto de candidato atribuído à Ucrânia, e com um clima onde já há quem fale de uma Confederação Europeia, com uma série de países candidatos ligando-se a Bruxelas numa versão ligeira, num círculo exterior à mesa dos Estados-Membros, há muito quem fale em "momento histórico" enquanto se apressa a juntar-se à fotografia. Infelizmente, o problema dos "momentos históricos" é que é muito comum vir primeiro a festa e só mais tarde o banho de realidade que decorre do que acontece nesses momentos. A política hipermediatizada dos nossos dias é, muitas vezes, uma mera política de "gestos", faltando muitas vezes a coragem para parar para pensar. Quando as consequências acontecem, a maior parte dos actores já saiu da fotografia do momento histórico e deixa que sejam outros a lidar com os efeitos de tão espectaculares "gestos".
O Conselho Europeu decidiu aceitar a Ucrânia como país candidato à União Europeia. Esse acto, mais do que uma tradicional decisão acerca de quem queremos que pertença a esta organização regional, é uma mensagem com um conteúdo mais focado, mais estreito, mais centrado no presente. A decisão é uma mensagem dirigida à Rússia, dizendo que o agressor não pode obter um prémio, que a UE não dará um prémio ao invasor. A recusa do estatuto de candidato daria, neste momento, a mensagem contrária e, por isso, a decisão neste momento não podia, provavelmente, ser outra. Especialmente quando são raros os que querem raciocinar mais pausadamente sobre o "gesto".
O problema é que há várias formas de dar um prémio à Rússia, um prémio que o invasor não devia ter.
Se a Rússia, com a invasão e a guerra, conseguir desorientar a UE, se conseguir afectar a coesão interna da UE, se conseguir que dentro da UE se relativizem valores, que se esqueçam princípios, que os procedimentos ad hoc se sobreponham a métodos de decisão apurados ao longo de décadas, se conseguir abanar as instituições da UE, então a Rússia terá obtido um enorme prémio pela sua agressão à Ucrânia. A Rússia quer uma UE fraca, por isso apoia as extremas-direitas que cá dentro trabalham contra as nossas democracias. Se conseguir, por esta via, enfraquecer a UE, a Rússia terá um prémio que o invasor não devia obter. A benevolência com que hoje se olha para Estados-Membros que não respeitam o Estado de direito, como a Polónia e a Hungria (a par da simpatia com que, na NATO, se lida com as pretensões da autocracia turca) é um sinal perigoso desse risco de erosão da União Europeia (o risco de voltarmos ao estilo da guerra fria, onde todo o julgamento político se resume a "está por nós ou está contra nós?" face ao "outro lado").
Neste quadro, qualquer tentação de passar por cima dos critérios estabelecidos para ser membro da UE (os chamados critérios de Copenhaga) para facilitar a adesão da Ucrânia contém o risco de um terramoto institucional, imediatamente reconhecível ou não. No bojo desse risco jaz a possibilidade de fazer renascer profundas divisões numa União Europeia, provocadas pela assimetria de impactos da inflação galopante e pelos previsíveis confrontos acerca da receita a ser aplicada pelo BCE.
Ainda por cima, nada garante que entrar numa década de complicadas negociações à procura de uma nova arquitectura institucional para o espaço europeu seja aquilo que os povos europeus esperam neste momento de aflição. Não será fácil convencer as pessoas de que aquilo que o momento precisa é um novo tratado.
Porfírio Silva, 24 de Junho de 2022