1.6.22

Ressentimento: a palavra-chave no artigo de Cavaco Silva

 
 
Lemos hoje um artigo de Cavaco Silva no Observador. A frase mais importante para perceber o interesse do artigo no actual contexto político, considero eu, é a seguinte: "Como é sabido, depois de um forte combate eleitoral entre dois grandes partidos apodera-se do derrotado um certo ressentimento que o leva a fugir ao diálogo construtivo com o partido vencedor."
 
E, nessa frase, a palavra-chave é "ressentimento". Ressentimento explica o artigo e explica os riscos que corre o PSD na actual conjuntura - já que não é possível ignorar que Aníbal Cavaco Silva esperou pela eleição de Luís Montenegro para responder a um discurso de António Costa que já foi proferido há várias semanas, indicando que o seu artigo do ressentimento se destina a "ajudar" a nova liderança do PSD a traçar um rumo.
 
Se o ressentimento pela derrota eleitoral condicionar o PSD, corremos o risco de que o maior partido da direita democrática opte por uma linha de desvalorização da sua inserção institucional, consubstanciando um risco de desinstitucionalização do PSD. Não é certo que isso aconteça, o PSD pode ainda ter forças internas para evitar essa deriva, mas há sinais que convém acompanhar. Dou dois exemplos.
 
O primeiro exemplo é o facto de Luís Montenegro ter, recentemente, defendido uma comissão de inquérito parlamentar ao chamado "caso de Setúbal", relativo a uma eventual ocorrência de uma intervenção inapropriada de cidadãos russos no acolhimento de refugiados ucranianos no concelho de Setúbal. O entretanto eleito líder do PSD defendeu (defende?) uma comissão parlamentar de inquérito quando a Assembleia da República já fez um conjunto alargado de audições que, até agora, não confirmaram nenhum caso - e muito menos produziram alguma coisa que indique existirem outros casos. Quando há investigações em curso para apurar o que realmente aconteceu. Quando a competência de fiscalização das câmaras municipais é das respectivas assembleias municipais. Quando o desempenho exemplar de Portugal no acolhimento de refugiados, designadamente refugiados ucranianos, é reconhecido quer pelas associações de imigrantes ucranianos no nosso país, quer pelo próprio Presidente Zelinski. Quando tudo isto significa que a tentativa de transformar o "caso de Setúbal" numa nuvem de escândalo nacional é algo que só pode ser característico de um partido extremista como o do protofascista. Foi isso que fez o partido do protofascista, apresentando uma iniciativa parlamentar que traduz a declaração de Luís Montenegro. O que fará o PSD na Assembleia da República: vai atrás do protofascista?
 
O segundo exemplo do risco de desinstitucionalização do PSD é a tentação que se sente em alguns sectores do PSD para aproveitar o (mau) exemplo da Câmara Municipal do Porto para tentar fragilizar, e eventualmente desmembrar, a Associação Nacional de Municípios Portugueses. O álibi é a divergência entre municípios e governo acerca do financiamento da descentralização. É natural que essas divergências existam, mas elas têm de ser negociadas e resolvidas entre as partes - não aproveitando a circunstância para destruir o historial de trabalho conjunto, não aproveitando para enfraquecer as instituições.
A ANMP existe desde 1984, tem vivido bem com diferentes maiorias no poder local, é dirigida por autarcas de todos os partidos, tem agido em grande independência do governo e do poder central: por exemplo, a ANMP dá parecer desfavorável aos Orçamentos de Estado em 2020, 2021 e 2022 e esses pareceres foram aprovados por unanimidade. Isto mostra que seria um enorme erro sacrificar a ANMP a uma divergência, que existe, mas que tem de ser resolvida pelo diálogo e pela negociação. Esperemos, por isso, que o PSD, como principal partido da oposição, se recuse a ir por este caminho - mas temos de estar atentos a esse risco. 
 
Tudo isto por uma razão simples: se o ressentimento (para usar a palavra escolhida por Cavaco Silva) se revelar a base da nova fase do PSD, o risco de desinstitucionalização existe. Existe o risco de que o PSD alinhe na conversa anti-sistema, esquecendo que "o sistema" é, precisamente, o sistema democrático. Queremos crer que o PSD tem todas as condições para evitar esse risco. É preciso é que tenha para tanto vontade política.
 
 Porfírio Silva, 1 de Junho de 2022
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