Creio que temos obrigação de refletir sobre a Nova União Popular Ecológica e Social, a "geringonça" francesa que, juntando várias esquerdas, incluindo comunistas e ecologistas, vai tentar reanimar um espaço à esquerda do centrismo de Macron nas próximas legislativas. O primeiro contributo que aqui dei para isso consistiu, apenas, em disponibilizar uma tradução do acordo entre a France Insoumise, de Mélanchon, e o Partido Socialista Francês, a que acrescentei algumas notas sobre alguns pontos menos claros do texto para um leitor não francês (que pode ser lido clicando aqui). Hoje, suscitarei apenas algumas questões preliminares, que julgo interessarem a um princípio de reflexão sobre a matéria. Tenciono ir acompanhando o processo e ir tentando pensar sobre ele, mas com uma única certeza: o futuro dessa iniciativa política não está escrito nas estrelas, depende da capacidade de acção política dos seus integrantes e da sua capacidade para a construção de respostas efectivas de governabilidade, já que uma coisa é aspirar a liderar a oposição e outra coisa, bem diferente, é ser capaz de governar um país. Colocar-me-ei, claro, do ponto de vista de um militante da corrente da social-democracia, do socialismo democrático e do trabalhismo.
(1) Sem este acordo, ou algo parecido em termos de mecânica eleitoral, e com as características próprias do sistema francês, o Partido Socialista Francês (PSF) provavelmente desapareceria do parlamento nacional nas próximas eleições. Não vale a pena fazer grandes proclamações políticas, encher muito o peito de coragem ilimitada, se isso servir apenas para esconder que poderia acontecer ao PSF em França o que aconteceu ao CDS em Portugal. Tornando-se um partido extraparlamentar, depois de ter sido o partido dominante da política francesa, o PSF ficaria praticamente arredado de qualquer capacidade para influenciar o rumo dos acontecimentos. Se a política não é apenas uma actividade especulativa, mas deve ser acção, capacidade de intervenção, isso requer algum tipo de poder nos locais onde se tomam decisões. Apostar no desaparecimento político, apenas por orgulho partidário, seria renunciar. Estando fraco, muito fraco, como demonstraram os menos de 2% da candidatura presidencial, o PSF acabou por ter de aceitar um acordo em muitos aspectos deficiente e decepcionante - mas que pode ser uma possibilidade de não cair definitivamente na irrelevância política.
(2) Claro que inúmeros "barões" do PSF se manifestaram contra o acordo. Há, certamente, muita coisa criticável no acordo e não podemos negar a essas figuras do PSF que possam ter razão em certas críticas (já lá vamos). De qualquer modo, não podemos esquecer o seguinte: alguns dos que agora criticam o acordo como sendo um mau passo foram - são - responsáveis pela desgraça política e eleitoral do PSF. Podemos "agradecer" a nomes como Hollande, que agora berra muito contra os inconvenientes do acordo, ter sido um dos grandes responsáveis por o PSF ter chegado ao estado em que está, graças ao seu péssimo desempenho político nos altos cargos a que chegaram em nome dos socialistas. Acresce que o acordo implica rever alguns aspectos das políticas seguidas anteriormente com o acordo de figuras do PSF, o que, naturalmente, não lhes agrada. Podem compreender-se reacções marcadas por estes factores subjectivos - não temos é que ficar entregues a essas visões subjectivas. Pelo contrário, em algum momento será necessário descolar de políticas erradas que tenham sido seguidas no passado.
(3) Alguns compromissos assumidos neste acordo são de duvidosa exequibilidade, pondo em causa a credibilidade de um governo que possa ceder à demagogia em lugar de defender a sustentabilidade do Estado social. A promessa de reformas aos 60 anos, salvo estudos cuidadosos que mostrassem a sua viabilidade naquele país - estudos que não existem, creio - pode ser muito popular, mas parece ser completamente irrealista e susceptível de vir a proporcionar contra-ataques privatizadores ao Estado social francês. O pior que a esquerda pode fazer é queimar as suas melhores bandeiras com o fogo da irresponsabilidade - e temo que seja, aqui, o caso.
(4) De longe, a parte mais tenebrosa do acordo entre LFI e o PSF é a que diz respeito à União Europeia. O acordo, tal como está escrito, é uma constatação de desacordo. É uma conversa divergente entre as tendências para matar a UE, que persistem numa certa esquerda (e, em França, numa certa extrema-direita) e o europeísmo dos socialistas. Assinar um acordo para marcar, preto no branco, que há uma enorme separação entre ambas as partes num vector estratégico fundamental para toda a governação, é bizarro. A dificuldade existe em toda a esquerda europeia, incluindo em Portugal: é já histórica a radical incapacidade das esquerdas para, na sua pluralidade, encontrarem uma abordagem partilhada, minimamente consistente e articulada, para a luta política a fazer, dentro da UE, para mudar a UE para uma orientação mais progressista. Sim, a UE precisa de mudanças; não, as mudanças na UE não se farão pela ameaça unilateral de romper as regras.
Aliás, aos olhos de um português salta imediatamente à vista, no texto do acordo, um sinal da pobreza política com que aquelas partes da esquerda francesa abordam a questão europeia. No ponto sobre as questões europeias e internacionais, às tantas enuncia-se a necessidade de "não respeitar certas regras" da UE e, logo de seguida, são dados exemplos (supostos exemplos). Portugal é dado como exemplo de situações passadas onde "aspetos
económicos e orçamentais" das regras europeias teriam sido desrespeitadas. Ora, isso é completamente falso: dizer isso é, aliás, alinhar na conversa desviada que uma certa direita teve sobre o governo português no pós-2015. A estratégia portuguesa, com esta governação do PS, sempre foi trabalhar para melhorar as regras (ou a sua aplicação) sem cair na armadilha de as desrespeitar unilateralmente, que era mesmo o que a direita europeia queria para nos tramar. Infelizmente, este acordo mostra que a LFI e o PSF não perceberam a diferença entre a estratégia europeia de Varoufakis e a estratégia europeia dos governos de António Costa - e, assim, teme-se que tão pouco tenham percebido a diferença entre os resultado de uma e de outra. Para quem quer governar a França, isso é preocupante.
Há vários aspectos da dinâmica política em apreço que vão muito para além do que consta no acordo entre a France Insoumise e o PSF, mas isso ficará para outra altura.
Porfírio Silva, 16 de Maio de 2022