22.11.20

Agora, o congresso do PCP


 
 
Uma das heranças do salazarismo, o qual tanto moldou a nossa vida colectiva - e ainda molda a mentalidade de muita gente -, é o desprezo pela democracia e pelo papel que os partidos desempenham na democracia. Os dois desprezos (pela democracia e pelos partidos políticos) não são a mesma coisa, mas, no presente, vão dar ao mesmo, na medida em que os partidos têm uma função específica na representação democrática em concreto que é insubstituível aqui e agora. Durante o salazarismo, o partido único era o partido dos que não tinham partido, como dizia o ditador. Agora, parece mal dizer-se que se é contra a democracia (embora se possa sugerir a sua suspensão por seis meses..), mas há livre curso para minar os partidos políticos.
 
Esta subcultura contra os partidos está sempre a vir ao de cima. Quando ela se mistura com o anticomunismo primário, os efeitos são imediatamente evidentes. Como se nota, agora, a propósito da pretensão de alguns para proibir a realização do congresso do PCP. (Ah, dizem que é adiar: adiar é proibir agora). 

Anteriormente, os mesmos fizeram imenso barulho contra as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República. (Sobre isso escrevi aqui: Marcelo e o 25 de Abril no Parlamento.) Depois, foi a Festa do Avante! (sobre isso escrevi aqui: Não há festa como esta.) Entretanto, os mesmos de toda essa indignação não abriram a boca sobre o congresso do partido da extrema-direita xenófoba, onde os delegados, enquanto debatiam moções repugnantes, estavam todos sentadinhos muito chegadinhos uns aos outros, berrando muito e sem máscara. Regressam os mesmos, agora, para zurzir no PCP e no governo.

Sobre tudo isto queria deixar ditas três coisas.

Primeiro: o governo, no respeito pela legalidade, não podia interferir com o congresso de qualquer partido político. A Lei nº 44/86, que é o "Regime do estado de sítio e do estado de emergência", lei essa que veio ao nosso ordenamento jurídico durante um governo de Cavaco Silva, prescreve, na alínea e) do número 2 do seu artigo 2º: "As reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia." Seria, pois, ilegal fazer aquilo que Rui Rio e o resto da gritaria pretendem do governo.

Segundo: pela nossa parte, no Partido Socialista, há vários meses que suspendemos a realização do nosso Congresso Nacional, que se realizará quando entendermos que há condições sanitárias para que o mesmo aconteça em segurança, tal como suspendemos os congressos federativos, que se realizaram mais tarde do que o previsto, em regimes diferenciados consoante as situações em cada distrito (presencial, à distância ou em regime misto). As reuniões dos nossos órgãos internos têm-se realizado em larga medida à distância, ou com poucas pessoas numa sala em Lisboa e o resto dos camaradas espalhados por pequenos grupos em diversos pontos do país. A democracia não está suspensa - e isso é verdade também internamente, no partido dos socialistas. Não pretendo dar lições ao PCP, nem a ninguém, mas a nossa opção foi por esta dose de cautela.

Terceiro: é evidente (para quem queira ver) que, dos vários eventos de massas que se têm realizado durante a pandemia, aqueles cuja organização coube ao PCP têm primado pelo maior rigor, não se registando as perturbações da Fórmula 1 nem do Santuário de Fátima, por exemplo. Os comunistas terão os seus defeitos, mas a desorganização é um pecadilho que não lhes quadra. E percebe-se bem que os comunistas, que tanto sofreram perseguições governamentais durante tantos anos, se apeguem aos seus direitos como partido político. Aliás, como disse Jerónimo de Sousa, está, talvez, em causa um dever, até mais do que um direito: o dever de não desleixar a organização colectiva em tempos tão desafiantes.

Dito isto, pode perguntar-se: um socialista não deveria estar calado e deixar o PCP arcar com os custos políticos desta sua opção, que não é popular? Concedo que seria o mais cómodo. Não seria, contudo, o mais justo: nós fizemos diferente, mas os comunistas têm direito a fazer como decidiram fazer e não podemos ficar indiferentes à tentativa de os linchar politicamente por causa de exercerem os direitos de acção política que lhes estão consagrados - a eles e a todos os demais. Nesse sentido, o PCP está a defender os direitos de todos os que não querem que, na enxurrada da pandemia, vá também a democracia. Por isso temos de falar, mesmo quando é a casa dos outros que está a ser atacada.

 
 
Porfírio Silva, 21 de Novembro de 2020
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