12.5.20

Não há festa como esta




Tenciono neste apontamento dizer algo sobre a corrente polémica quanto à realização da Festa do Avante! no próximo mês de Setembro, procurando um enquadramento um pouco mais vasto do que os campos da polémica imediata.

O ponto mais estrito da controvérsia é que estão proibidos os “festivais de Verão” até ao fim de Setembro e não está proibida a Festa do Avante! – levando uns a dizer que se trata de um favorecimento escandaloso da iniciativa do PCP e levando o PCP a argumentar que se trata de uma iniciativa político-partidária e não de um festival (tendo o Governo comunicado que não tenciona interditar iniciativas políticas).

Alargando ligeiramente a janela da controvérsia, ela vem enquadrada pela campanha contra as cerimónias do 25 de Abril na Assembleia da República – campanha contra uma cerimónia onde participaram muito menos pessoas do que as que sempre estiveram, semana após semana, sem interrupção em nenhum momento da crise, nos plenários do Parlamento, sem o protesto de nenhum dos mais acirrados críticos daquela cerimónia específica. Muitos dos críticos mais vocais dessa cerimónia consideravam-na “uma festa” evitável, descartando o carácter simbólico da mesma e o seu enquadramento nas instituições do regime democrático.
Colada à polémica sobre o 25 de Abril veio a polémica sobre as comemorações do 1º de Maio pela CGTP, aprofundada porque a outra central sindical comemorou digitalmente sem descer à rua, porque as correntes minoritárias da central se demarcaram do modelo escolhido para descer à rua – e porque a concretização do acto mostrou centenas de pessoas num espaço público, além de deixar ver contacto físico bastante próximo nos momentos de ida e nos momentos de regresso, antes e depois do clímax.

Esta manifestação sindical acabou por ser contrastada com a atitude da Igreja Católica, que desactivou a generalidade dos actos colectivos e públicos de culto, incluindo a desmobilização da tradicionalmente massiva peregrinação anual a Fátima por ocasião do 13 de Maio.

Toda esta sequência de controvérsias dá a ver um rasgão entre a realidade natural e a realidade institucional. É à luz dessa distinção que entendo olhar para esta questão.


Realidade natural e realidade institucional

Entre muitos que poderiam ser convocados para introduzir a questão das instituições, escolho o filósofo americano John Searle, porque o seu ataque à questão permite tratá-la no seu plano mais fundamental, o plano ontológico.

A peça mais básica desse exercício é a distinção entre factos brutos, factos sociais e factos institucionais. Um facto bruto é um facto cuja existência nada deve aos seus observadores: o pico do monte Evereste está a N metros de altitude. Um facto social é um facto assente basicamente em intencionalidade colectiva: estou a tocar violino como parte de uma orquestra a tocar uma sinfonia, a orquestra a tocar a sinfonia não é um sucedâneo de uma colecção de executantes a tocar partes da peça. Os factos sociais não existem apenas entre humanos: um grupo de hienas a caçar um leão, o que não funcionaria sem implicar um grupo de forma coordenada, é um exemplo. De entre os factos sociais, alguns são factos institucionais: quando envolvem o colectivo a atribuir certa função a certo tipo de objectos, quando essa função não podia decorrer apenas das características naturais (físicas, químicas, biológicas) desse objecto, mas tem de ser activada pela cooperação continuada entre os indivíduos desse colectivo. Os factos institucionais, de que são exemplos os sistemas monetários (com objectos que adquirem um valor completamente independente das suas características materiais) ou os sistemas de regulação de trânsito (com os seus códigos e sinais), só existem entre os humanos.

No nosso mundo, as instituições são um traço distintivo das sociedades humanas. Um aspecto relevante das soluções institucionais é que elas não derivam de forma fixa das condicionantes físicas. Outras civilizações escolheram outros materiais para funcionar como dinheiro, em vez de notas ou moedas: sal, por exemplo. Podíamos ter inventado sinais de trânsito completamente diferentes dos que temos hoje, embora agora seja na práctica tarde para isso (por causa da reaprendizagem que seria necessária para mudar). Mesmo hoje, há sistemas de trânsito em que se conduz pela direita e sistemas de trânsito em que se conduz pela esquerda, sendo que ambos os sistemas satisfazem os mesmos requisitos por vias distintas quanto à sua realização física. E até podemos mudar de um sistema para outro, como já aconteceu em vários países. Autores como Geoffrey Hodgson marcaram este ponto: um mecanismo só é institucional se não for determinado de forma fixa pela natureza.


Natureza e instituições

Se é importante entender que as sociedades humanas assentam na existência de uma “camada da realidade” diferente do plano da natureza (e não são só as sociedades modernizadas que experimentam essa condição: as sociedades ditas primitivas têm instituições, mesmo que elas possam parecer, de fora, menos complexas), também é relevante entender que o natural e o institucional não são separáveis de forma nítida. Na verdade, interpenetram-se. Um exemplo: um muro de pedra pode servir para implementar uma fronteira, mas a fronteira pode continuar a existir mesmo que se derrube o muro – ou mesmo antes de qualquer muro. Os rios servem muitas vezes de referência para fronteiras, mas isso não é uma necessidade (muitas vezes isso só veio a ser assim por, historicamente, ser mais fácil defender a fronteira no rio).

É precisamente este ponto, o da relação tensa entre natural e institucional, que me parece relevante para lidar com a polémica “não há festa como esta”.

Indiscutivelmente, a Festa do Avante! não é um qualquer “festival de Verão”. Como disse o secretário-geral do PCP, “a” festa existiu muitos anos antes desses festivais terem aparecido no campo comercial. A Festa do Avante!, como iniciativa de um partido político, tem um lugar facilmente reconhecível na operação dos comunistas em Portugal. Portanto, para quem reconhece a especificidade da realidade institucional, é pertinente aquilo que afirma o primeiro-ministro, quando descarta usar a pandemia para proibir actividades políticas – porque proibir a Festa do Avante! será proibir uma realização política de um partido, num regime democrático onde os partidos políticos são instrumentos essenciais para a pluralidade e para a diversidade da representação democrática. Este plano não pode ser descartado e qualquer solução concreta para o caso tem de ter em conta esta dimensão. Convém nunca esquecer: a democracia não está suspensa e não a queremos suspensa. Se hoje podemos proibir esta realização do PCP, quantas mais coisas podemos a seguir proibir, sendo manifestações políticas?

Por outro lado, qualquer festa, a do Avante! ou qualquer outra, é, também, um acontecimento natural. (Vamos, agora, deixar de lado a importância da Festa do Avante! no financiamento do PCP, aspecto que, provavemente, motiva substerraneamente uma parte desta polémica.)

Pessoas, muitas pessoas, vivendo de forma corpórea a sua pertença, a sua camaradagem (política ou apenas jovial), tocando-se, respirando uns para cima dos outros, cumprimentando-se mesmo que tenham originalmente a intenção de não o fazer. Tudo isto são corpos – aqueles corpos que o vírus infecta e provoca a covid-19. Tudo isto implica riscos para a saúde pública, desde logo para os que lá estejam fisicamente. Nada disto pode ser descurado – e não se deveriam expandir argumentos institucionais (as liberdades democráticas) no esquecimento de que as instituições não flutuam levemente na estratosfera: as instituições estão enraizadas nos factos brutos do mundo natural. Podiam ser assim ou de várias outras formas alternativas – mas as instituições estão enraizadas no mundo real, onde os fenómenos físicos, químicos e biológicos não são alheios à nossa humanidade. Porque anjos não somos e os anjos não têm instituições…

Seria desejável que se encontrasse uma resposta a esta situação que não desatendesse à influência recíproca entre realidade institucional e realidade natural – sob pena de darmos armas aos que por aí andam tentando usar o vírus para infectar a democracia.



Porfírio Silva, 12 de Maio de 2020
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