14.3.20

Epistemologia do social em tempos de Covid-19 (1)




É muito frágil o conhecimento que temos e conseguimos aplicar acerca do funcionamento das nossas sociedades. Isso deve-se, em parte, à miopia de quem tem, na generalidade dos países ocidentais, responsabilidades para orientar o investimento em investigação científica (e filosófica), carregados como estão de preconceitos epistemológicos absolutamente não científicos. Investir em conhecimento "útil" e desinvestir em conhecimento "inútil", desprezando relativamente certos domínios de investigação, é algo que se paga caro. É em situações como a que vivemos hoje, com a pandemia de Covid-19, que sentimos isso mais claramente. Ao mesmo tempo, é difícil fazer entender aos nossos concidadãos a fragilidade do conhecimento, mesmo do conhecimento mais sólido. Igualmente difícil de compreender é a incerteza radical que rodeia, no estado actual, o melhor conhecimento disponível: alguns aspectos do funcionamento deste vírus, e da forma de lidar com ele, só serão compreendidos daqui a meses, vários ou muitos. Não no exercício das minhas funções actuais, mas na minha condição permanente de investigador em filosofia da ciência, não posso escapar de uma reflexão sobre o que vai acontecendo. Em modo caderno de apontamentos, vou rascunhando anotações ao passar dos dias.

Vale a pena começar por sublinhar a importância de, no plano das decisões políticas para enfrentar a crise, e no plano do seu debate em sociedade, nunca esquecer a incerteza fundamental que rodeia normalmente "o melhor conhecimento disponível". Vejamos, focando-nos na abordagem que o Reino Unido está a fazer a esta pandemia.

Enquanto vários países (entre os quais Portugal) partiram para estratégias radicais de contenção do coronavírus, incluindo encerramento de escolas e proibição de ajuntamentos, o Reino Unido tem evitado quaisquer medidas desse género. Só no dia 12 de março, quando Portugal já estava a caminho de tentar fechar a maioria da população em casa, ainda antes de ter sequer uma vítima mortal, é que o RU aconselhou as pessoas a ficarem em casa se tivessem tosse.

A abordagem do Reino Unido tem sido muito criticada, mas não se trata de um desvario político do governo (embora a imagem pública de Boris Johnson facilite essa perceção), mas sim de uma estratégia aconselhada pelos “cientistas oficiais”. Patrick Vallance, o chief scientific adviser do país, explicou publicamente os objetivos da estratégia e prometeu tornar públicos os dados que estão a usar para analisar a situação, para facilitar o escrutínio da mesma (promessa ainda não cumprida). O primeiro dos objetivos é basicamente o mesmo da estratégia portuguesa: reduzir o pico da epidemia, achatar e alargar a sua curva, tornando-a mais espalhada por um maior período temporal, para diminuir a intensidade da pressão sobre os sistemas de saúde em cada fase e tornar mais viável uma resposta capaz. O segundo objetivo já é mais contrastante com a nossa resposta: deixar que o vírus se espalhe na população, para criar uma “imunidade de rebanho” (os recuperados ganhariam imunidade e passariam a funcionar como barreira à posterior contaminação), enquanto o sistema de saúde se concentra em cuidar dos mais vulneráveis. A tal imunidade de rebanho, ou imunidade de grupo, é um fenómeno conhecido, que, noutros casos, tem permitido, por exemplo, aumentar a proteção dos não vacinados como efeito de um bom nível de vacinação na comunidade (porque a imunidade de uns protege outros de serem atingidos, ao diminuir as vias de transmissão).

A OMS está preocupada com esta estratégia, por exemplo por causa das sequelas físicas que podem resultar da infeção (que, a serem pesadas, desaconselhariam a estratégia de deixar espalhar a contaminação). Mas há quem considere irrealista a visão da OMS. Mark Woolhouse, da Universidade de Edinburgh, vê na estratégia preferida pela OMS um objetivo impossível: erradicar o vírus. Em sua opinião, é mais realista aprender a viver com um vírus que veio para ficar do que tentar a sua erradicação. Defende mesmo que os países que optaram pela estratégia preferida pela OMS vão ter de mudar de rumo em algum momento no futuro. De qualquer modo, entre a comunidade científica britânica também há fortes críticas à estratégia seguida pelo seu governo. Por exemplo, Helen Ward, do Imperial College, de Londres, considera que a estratégia da imunidade de rebanho não vai evitar um pico de casos avassalador e diz que não faz sentido aplicar a estratégia da imunidade de grupo a um vírus para o qual não se conhece uma vacina.

Os defensores da estratégia oficial britânica, pela voz do já referido chief scientific adviser, apontam um argumento contra as medidas duras de isolamento social: as pessoas vão acabar por se cansar do confinamento e a taxa de aceitação e cumprimento do isolamento social rigoroso vai cair drasticamente precisamente quando estivermos mais perto do pico do surto.

Duas reflexões sobre este argumento.

Primerio, este é, precisamente, o ponto que alguns, em Portugal, sublinharam como motivo de reflexão acerca da conveniência de parar desde já com todas as atividades envolvendo presencialmente os alunos nas nossas escolas.

Segundo, é este tipo de dificuldade, mesmo que ela não resolva o cenário global preferível, que desaconselha o uso sem restrições do argumento “quanto mais cedo melhor”. A ideia de que uma boa medida deve ser tomada imediatamente, o mais rapidamente possível, que tem estado muito presente no debate público nos últimos dias, é uma ideia errada. É uma ideia errada porque as pessoas não são máquinas (e mesmo as máquinas cansam-se) e o tempo de duração de um estado de coisas afeta o funcionamento e o efeito de uma medida que põe radicalmente em causa o modo habitual de vida das pessoas. Mesmo críticos da estratégia do governo britânico, mais favoráveis ao isolamento radical seguido noutros países, entendem que este argumento é pertinente e deve ser considerado. É que, digo eu, o conhecimento relevante para gerir situações destas não é apenas conhecimento médico e biológico, sendo importante mobilizar conhecimento acerca do funcionamento das sociedades.

Estas considerações aconselham o seguinte: seria importante, por exemplo, começar desde já a estudar toda a informação disponível sobre os métodos usados pelas autoridades chinesas em Wuhan e pelas autoridades italianas, mesmo sabendo que uma democracia e uma ditadura não têm à disposição os mesmos recursos neste campo (cf. The effect of control strategies that reduce social mixing on outcomes of the COVID-19 epidemic in Wuhan, China ).

Informação de base colhida aqui: Why is the UK approach to coronavirus so different to other countries?

(Continuaremos estas reflexões, se conseguirmos concretizar as nossas intenções. Entretanto, essencial é cada um de nós fazer a sua parte, seguindo rigorosamente as indicações das autoridades de saúde. )



Porfírio Silva, 14 de março de 2020


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