17.3.20

Ainda sobre o estado de emergência



O meu texto de ontem aqui no blogue (Vamos para o estado de emergência?) procurava principalmente dar alguma informação de base sobre o estado de emergência, um dos estados de exceção constitucional. Hoje, diversamente, procurarei fundamentalmente refletir sobre a questão e dar os meus critérios de apreciação da mesma.

Em primeiro lugar, importa preservar um elevado grau de concertação entre órgãos de soberania, aspeto importante na medida em que, para eventualmente decretar o estado de emergência, estarão necessariamente envolvidos Presidente da República, Governo e Assembleia da República. Por isso, não defenderei nenhum estremar de posições em caso de diferença de avaliação, entendendo preferível um grande esforço de aproximação para convergir numa decisão dentro da razoabilidade. Não obstante, julgo que temos a responsabilidade de falar claro sobre o que há a decidir (pelo menos, no meu caso, tendo de votar as decisões parlamentares indispensáveis).

Em segundo lugar, creio ser importante que os portugueses em geral façam um “curso rápido” de direito constitucional e procurem informar-se acerca do que está em causa. É preciso ter bem presente que qualquer um dos estados de exceção, seja o estado de sítio ou o estado de emergência, é fundamentalmente um regime de suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias. Ou seja: a legalidade democrática é temporariamente “deformada”, em face de uma necessidade imperiosa que assim o exige. Note-se: desde que tudo se decida segundo as formas previstas na Constituição, não se fere a legalidade. Contudo, há aqui um ponto essencial: qualquer limitação dos direitos, liberdades e garantias tem de assentar numa justificação clara acerca da sua indispensabilidade. Isto é, para qualquer limitação da normalidade constitucional deve ser explicitada a razão pela qual os efeitos pretendidos não podem ser alcançados por meios dentro da normalidade. À partida, entendo que não se deveria recorrer a um estado de exceção para fazer qualquer coisa que possa ser feita com outros institutos legais, designadamente ao abrigo das situações previstas no enquadramento legal da proteção civil.
Neste quadro, repito aqui algo que já escrevi ontem: não há UM estado de emergência, não há um formato fixo de estado de emergência; o decreto que o declare tem de especificar claramente o seu conteúdo, quais os direitos, liberdades e garantias cujo exercício é suspenso, e em que modalidade. É esse conteúdo concreto que, a meu ver, tem de ser cabalmente explicado. As garantias embebidas na Constituição foram conquistadas a muito custo, têm um enorme valor civilizacional e são mais fáceis de fragilizar do que possamos pensar: por isso só devem ser suspensas com necessidade comprovada e explicitada. Não deitemos fora o civismo demonstrado pela esmagadora maioria dos portugueses, querendo fazer “à força” aquilo que os nossos concidadãos estão disponíveis para fazer voluntariamente por perceberem o que está em causa.

Em terceiro lugar, esta situação apela a uma enorme responsabilidade de todos aqueles que têm o dever de participar no processo de decisão. Não é tempo para ir no rebanho, é tempo de pensar e assumir responsabilidades. Vender ilusões para sossegar artificialmente os nossos concidadãos seria uma cobardia. Será, provavelmente, extremamente popular clamar pelo estado de emergência. Mas declarar o estado de emergência não muda o estado do mundo. O vírus não conhece os nossos estados de exceção constitucional e não se comove com eles. Se alguém agita a declaração do estado de emergência como panaceia, estará a induzir em erro a cidadania. Quem pede o estado de emergência haverá de dizer exatamente o que quer que se faça com ele. O filósofo Daniel Innerarity escreveu há pouco no Twitter, sobre o momento atual, que estamos a cometer dois grandes erros conceptuais: definir isto como uma guerra e como uma questão de solidariedade entre indivíduos. E acrescenta: isto é, antes, uma questão de inteligência, organização e proteção pública. Concordo e merece a nossa reflexão.

Vejamos um exemplo prático. Duzentas ou trezentas pessoas estão numa sala a assistir a um espetáculo de teatro ou cinema. O dono do estabelecimento apercebe-se de que deflagrou um incêndio. O que terá de fazer não é, certamente, gritar “incêndio, salvem-se”, mas encontrar uma forma de levar as pessoas a saírem o mais ordeiramente possível, porque a pressa e a precipitação conduzirão ao desastre, enquanto a calma e a ordem permitirão a resolução mais saudável para todos. Sabemos que há muitos casos onde a desgraça provém mais da confusão das massas do que das circunstâncias objetivas (esmagamentos em estádios, por exemplo).
Vivemos um momento destes, agora a uma escala global. Preservar a nossa vida e saúde, bem como a vida e saúde dos nossos, é sem dúvida prioritário. Mas só o conseguiremos fazer se preservarmos a organização social e as instituições. A confiança nas autoridades e a preservação das instituições não é uma questão política qualquer: é a primeira medida de saúde pública, porque se a autoridade democrática quebrar e perder a confiança dos cidadãos passará a ser impossível organizar a resistência ao vírus.
No cenário da sala de cinema, poderá haver sempre um espetador assustado, ou um candidato a iluminado, que grita “incêndio, fujam”, achando-se esperto porque percebeu a situação, e assim espoletando a tragédia. Mas nenhum de nós deve querer ser esse tresloucado.

Em todo o caso, o estado de emergência será executado pelo Governo. Ao ser decretado o estado de emergência, o Governo não fica obrigado a fazer isto ou aquilo, apenas lhe é dada essa faculdade. Felizmente, temos a dirigir o Governo um democrata, que não abusará dessa faculdade. Não estaria tão confiante se lá estivessem outros, pensando mesmo em alguns que já por lá passaram. Confio que António Costa tem uma tão forte pulsão pela liberdade de todos nós como teve Mário Soares. E isto é tão importante!


Porfírio Silva, 17 de março de 2020
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