20.2.20

Sobre a morte assistida




Hoje, na Assembleia da República, foram discutidos e votados os projectos de lei sobre a morte assistida. Deixo, para registo, a minha intervenção nesse debate.

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Permitam-me, senhores deputados, que comece por reflectir sobre a intervenção que o senhor deputado António Filipe aqui nos trouxe, centrada nas obrigações do Estado.

Na iniciativa do PS, o respeito pela autonomia da pessoa é uma dimensão fundamental, mas há, sem dúvida, uma dimensão social, colectiva, desse valor. Há uma irredutível dimensão ética neste debate e a verdade é que não me reconheço numa ética individualista. Transpondo uma ética de responsabilidade partilhada para um raciocínio acerca das obrigações do Estado, eu não apoiaria uma legislação que fosse indiferente à disposição de morrer, por qualquer motivo e em qualquer circunstância, porque creio que a legislação deve expressar um equilíbrio entre o plano individual e o impacto social das normas. E por isso valoro positivamente a proposta do PS. Mas também não creio que seja produtivo voltar às teses de oposição entre direitos individuais e direitos colectivos, porque, historicamente, tais concepções redundaram em regimes de esmagamento das liberdades individuais.

Senhores Deputados,
Não há lugar para nenhuma arrogância quando tratamos da vida e da morte, e a morte faz parte da vida, a morte é mesmo uma etapa muito importante da vida.
Dúvidas todos temos, porque a morte natural há muito que deixou de ser a morte mais comum, rodeados como estamos por fármacos e máquinas, por um aparato técnico-científico capaz de transformar o direito à vida num dever de viver. Mas a vida humana não é só biologia, e nem toda a técnica e toda a tecnologia, juntas, conseguem aliviar toda a dor. E quem somos nós para julgar o sofrimento dos outros?

Em matéria tão importante de ponderação de direitos, não podemos fechar-nos em falsas fronteiras. Por isso convoco a este debate o teólogo católico Hans Küng, que defende a possibilidade de a pessoa escolher a eutanásia, como forma de nos deixarem assumir uma responsabilidade pessoal na passagem para a morte. Küng cita, do livro do Eclesiastes, esta frase: “há um tempo para viver e há um tempo para morrer”, um pensamento que junta significativamente a responsabilidade pela nossa vida e a responsabilidade pela nossa morte.

Longo de vários anos vai o debate, na sociedade civil e no parlamento, em torno da despenalização da morte assistida. É compreensível que nada suspenda em definitivo todas as nossas dúvidas. Mas o que eu pergunto, senhoras e senhores deputados, e pergunto a todos e cada um, em todas as bancadas incluindo a minha, o que eu pergunto é: temos o direito, face às pessoas concretas que esperam poder tomar responsabilidade pela sua morte, temos o direito de as fazer esperar um ano atrás do outro, uma legislatura atrás da outra, repetindo uma e outra vez o mesmo ciclo de argumentos só para retardar uma decisão?

Todos temos dúvidas, e elas têm de ser trabalhadas na especialidade, mas não temos o direito de exigir a ninguém o martírio. Penso naqueles que tomam uma decisão sobre a sua morte, mas não podem concretizar o que decidiram, porque fisicamente já não são capazes sozinhos. Será justo deixar para outro ano, para outra legislatura, uma resposta à sua opção?

Ninguém decide morrer porque sim. Ninguém decide morrer de ânimo leve. Toda a vida tem dignidade. Mas eu não quero impor a outra pessoa a minha visão da dignidade, tal como não quero sofrer, eu, essa imposição.

É isto que nos move, tão simplesmente.


Porfírio Silva, 20 de Fevereiro de 2020


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