20.2.20

Sobre a morte assistida

19:47



Hoje, na Assembleia da República, foram discutidos e votados os projectos de lei sobre a morte assistida. Deixo, para registo, a minha intervenção nesse debate.

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Permitam-me, senhores deputados, que comece por reflectir sobre a intervenção que o senhor deputado António Filipe aqui nos trouxe, centrada nas obrigações do Estado.

Na iniciativa do PS, o respeito pela autonomia da pessoa é uma dimensão fundamental, mas há, sem dúvida, uma dimensão social, colectiva, desse valor. Há uma irredutível dimensão ética neste debate e a verdade é que não me reconheço numa ética individualista. Transpondo uma ética de responsabilidade partilhada para um raciocínio acerca das obrigações do Estado, eu não apoiaria uma legislação que fosse indiferente à disposição de morrer, por qualquer motivo e em qualquer circunstância, porque creio que a legislação deve expressar um equilíbrio entre o plano individual e o impacto social das normas. E por isso valoro positivamente a proposta do PS. Mas também não creio que seja produtivo voltar às teses de oposição entre direitos individuais e direitos colectivos, porque, historicamente, tais concepções redundaram em regimes de esmagamento das liberdades individuais.

Senhores Deputados,
Não há lugar para nenhuma arrogância quando tratamos da vida e da morte, e a morte faz parte da vida, a morte é mesmo uma etapa muito importante da vida.
Dúvidas todos temos, porque a morte natural há muito que deixou de ser a morte mais comum, rodeados como estamos por fármacos e máquinas, por um aparato técnico-científico capaz de transformar o direito à vida num dever de viver. Mas a vida humana não é só biologia, e nem toda a técnica e toda a tecnologia, juntas, conseguem aliviar toda a dor. E quem somos nós para julgar o sofrimento dos outros?

Em matéria tão importante de ponderação de direitos, não podemos fechar-nos em falsas fronteiras. Por isso convoco a este debate o teólogo católico Hans Küng, que defende a possibilidade de a pessoa escolher a eutanásia, como forma de nos deixarem assumir uma responsabilidade pessoal na passagem para a morte. Küng cita, do livro do Eclesiastes, esta frase: “há um tempo para viver e há um tempo para morrer”, um pensamento que junta significativamente a responsabilidade pela nossa vida e a responsabilidade pela nossa morte.

Longo de vários anos vai o debate, na sociedade civil e no parlamento, em torno da despenalização da morte assistida. É compreensível que nada suspenda em definitivo todas as nossas dúvidas. Mas o que eu pergunto, senhoras e senhores deputados, e pergunto a todos e cada um, em todas as bancadas incluindo a minha, o que eu pergunto é: temos o direito, face às pessoas concretas que esperam poder tomar responsabilidade pela sua morte, temos o direito de as fazer esperar um ano atrás do outro, uma legislatura atrás da outra, repetindo uma e outra vez o mesmo ciclo de argumentos só para retardar uma decisão?

Todos temos dúvidas, e elas têm de ser trabalhadas na especialidade, mas não temos o direito de exigir a ninguém o martírio. Penso naqueles que tomam uma decisão sobre a sua morte, mas não podem concretizar o que decidiram, porque fisicamente já não são capazes sozinhos. Será justo deixar para outro ano, para outra legislatura, uma resposta à sua opção?

Ninguém decide morrer porque sim. Ninguém decide morrer de ânimo leve. Toda a vida tem dignidade. Mas eu não quero impor a outra pessoa a minha visão da dignidade, tal como não quero sofrer, eu, essa imposição.

É isto que nos move, tão simplesmente.


Porfírio Silva, 20 de Fevereiro de 2020


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13.2.20

Eutanásia

19:33



Eu sou a favor de que a prática da eutanásia seja despenalizada, em certas situações especificadas legalmente.

Tenho esta posição há muitos anos, em parte devido a uma reflexão filosófica sobre o sentido da vida humana, mas principalmente como resultado de uma empatia completamente subjectiva com pessoas concretas que ficaram sozinhas face ao mundo, porque aqueles que poderiam ajudá-los a concretizar uma opção vital (de morrer) não o poderiam fazer, a menos que aceitassem ir para a cadeia por isso, devido aos quadros legais punitivos para quem colabore com pessoas que decidem morrer.

Nas actuais circunstâncias, sendo deputado à Assembleia da República, onde proximamente serão tomadas decisões sobre esta questão, tenho de pensar em termos de bem comum e já não apenas segundo as minhas preferências pessoais. Vou tentar aqui explicitar, tão directamente como possível, as minhas razões.

Eu sou a favor da despenalização, porque não quero que o Estado persiga como criminosos aqueles que, a meu pedido, me ajudem a concretizar uma opção que eu tenha tomado livremente acerca da forma de conduzir a minha vida – e a morte faz parte da vida. Não quero que sejam tratados como homicidas aqueles que me ajudem a fazer aquilo que eu decidi quanto ao fim da minha vida, mas já não consigo concretizar sozinho. Há, portanto, aqui, uma dimensão fundamental de respeito pela autonomia da pessoa e de repúdio pela obstinação autoritária do Estado em obrigar as pessoas a conduzirem a sua vida própria, até ao limite, segundo um rígido padrão comum imposto por uma “moral oficial”.

Contudo, julgo que a questão não se esgota no plano das opções individuais.

Quando certas confissões religiosas, ou o PCP, chamam a atenção para a dimensão colectiva da questão, para a necessidade de atender à dimensão social do exercício desta liberdade individual, não devemos descartar de forma simplista esse problema. A ética é colectiva, não é meramente individual. Não vejo para que sirva uma ética meramente individual, porque vejo a sua relevância precisamente na interacção com os outros. E muito menos partilho uma ética individualista. Transpondo uma ética de responsabilidade partilhada para um raciocínio acerca das obrigações do Estado, eu não apoiaria uma legislação indiferente à vontade de morrer, à decisão de morrer, por qualquer motivo e em qualquer circunstância.

Por isso não considero que o argumento da autonomia individual seja absoluto ou possa ser irrestrito. Não sou individualista a esse ponto. Por isso apoio a legislação proposta pelo grupo parlamentar do PS, que restringe (muito, talvez até demais) as circunstâncias em que a prática de tais actos encontrará o benefício da não penalização. Aceito essas restrições por elas serem a expressão de um equilíbrio entre o plano individual e o impacto social de decisões desta natureza. E apoio as garantias processuais de que será um processo monitorizado de perto, um processo com várias etapas, onde terá de ser dado tempo ao tempo contra precipitações.

Tomar acção sobre estas realidades tornou-se imperioso pela seguinte razão: a crescente disponibilidade de meios técnicos e tecnológicos, fármacos e máquinas, para prolongar algum tipo de actividade biológica num corpo humano, se começou por parecer uma bênção, tornou-se uma maldição. O aparato burocrático-técnico-científico que se impõe às nossas vidas tem, na saúde, o efeito de nos querer obrigar a permanecer biologicamente vivos, mesmo que já não tenhamos vida, que já não haja projecto. A máquina de nos obrigar a viver tornou-se um polvo e um labirinto, que perdeu de vista a nossa visão da nossa própria dignidade pessoal, que passou a considerar que se nos pode impor, mesmo que à custa do nosso sofrimento. Grande parte do que está em causa é desfazer esta opressão desumana, em que somos presos entre demasiada técnica e tecnologia e o facto de que nem mesmo toda a técnica e tecnologia consegue aliviar toda a dor, para podermos deixar de ser considerados apenas organismos biologicamente vivos e voltarmos a ser pessoas, que são humanas por serem projecto e não apenas organismos. É preciso reequilibrar a balança da liberdade para que não esmague o indivíduo. Não aceito que nos imponham um dever de viver.

A acção do Estado, e neste caso essa acção é legislação penal, sobre o que é crime ou não, não pode ser opressora, a um ponto absurdo, da margem de decisão individual. E a nossa acção como legisladores não pode tratar levianamente aqueles que, de forma livre, decidem morrer. São pessoas concretas que estão em causa. Ninguém decide morrer de ânimo leve. Respeitar os outros também é um princípio ético importante. Creio que temos obrigação de respeitar as pessoas concretas que tomam, ponderada e conscientemente, uma determinada decisão sobre a sua vida. Nenhuma legislação proposta obrigará quem quer que seja a escolher morrer. Mas há quem queira usar a legislação para obrigar outras pessoas a sobreviver em toda e qualquer circunstância. Transformar o direito à vida num dever de viver é, para mim, eticamente aberrante. Não podemos deixar que, face ao rosto da pessoa que decide morrer, sejamos dominados pela fé exagerada na técnica e na tecnologia, porque não, a técnica não pode tudo, não alivia toda a dor insuportável – e, fundamentalmente, as drogas e as máquinas não estão habilitadas a dar-nos um projecto de vida pessoal humana.

Isto é, no essencial, para não ser excessivamente longo, o que quero deixar dito nesta ocasião – e que só me vincula a mim.

Entristece-me que, por vezes, haja tanta má-fé neste debate – embora tenhamos gente de boa-fé em todas as posições. Tratar a vida e a morte no plano da politiquice, do insulto pessoal para tentar sujar adversários políticos, é, simplesmente, deplorável. Defender hoje que a vida não se referenda e amanhã que já se referenda; defender a legitimidade do parlamento para decidir quando se ganha uma votação e, quando se teme perder, reduzir o parlamento a um grupelho de indivíduos; dizer que falta debate público depois de tantos anos de análise extensa e profunda, pela sociedade civil, por instâncias responsáveis do aparato institucional, pelo parlamento; comparar as nossas propostas com a realidade de países onde as coisas são muito diferentes, porque nós soubemos aprender com os outros e ser mais prudentes – é triste e, por vezes, faz-nos duvidar da autenticidade de certas posições.

O PS, tendo aprovado uma posição oficial sobre esta matéria em 2016, tendo apresentado um projecto de lei na anterior legislatura, volta a apresentar o mesmo projecto agora. Ninguém podia desconhecer que esta é a posição do PS. De qualquer modo, dada a complexidade da questão, os deputados do PS continuarão a ter liberdade de voto sobre todos os projectos, incluindo o nosso. É por isso, por os nossos deputados terem liberdade de voto, que não podíamos ter inscrito esta matéria no nosso programa eleitoral, porque, por essa via, ela se tornaria obrigatória para os deputados eleitos com base nesse programa. Das poucas coisas em que os deputados do PS temos disciplina de voto é no cumprimento de pontos do programa eleitoral (programa de governo). Assim, nesta matéria, cada um decide segundo os seus próprios critérios e, seja qual for o resultado, não incumprimos uma promessa que não fizemos. Embora a posição colectiva fosse há muito conhecida.

Pensemos livremente.

Aconselho, como leitura, o livro “Uma Boa Morte”, do teólogo católico Hans Küng. Para compreendermos, e aceitarmos, o desafio de sermos, cada um de nós, responsáveis pela nossa morte. Pela nossa boa morte. Uma responsabilidade muito diferente da atitude, passiva, de deixarmos correr e pensar “seja o que Deus quiser”. Somos mais responsáveis do que isso. Essa é também a questão que, para mim, está aqui em causa.

Toda a vida tem dignidade. Mas não queiras ser tu a decidir da minha dignidade. Eu prometo também não tentar impor-te as minhas opções.


Porfírio Silva, 13 de Fevereiro de 2020

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11.2.20

A esquerda depois do orçamento

11:32


Deixo aqui, para registo, o artigo de opinião que publico hoje no Público online, com o título "Saldo orçamental" e subscrito como vice-presidente do grupo parlamentar e secretário nacional do PS. Não costumo fazer estas partilhas no próprio dia; faço-o hoje por ter saído inicialmente uma repetição do meu artigo de 5 de Janeiro, só estando corrigido o texto a meio da manhã.

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SALDO ORÇAMENTAL

Aprovado o OE 2020, há uma reflexão a fazer sobre o significado político desse processo.

Rui Rio, cuja suposta moderação ainda não se tornou um fenómeno observável, mostrou faltar-lhe o entendimento de que ser o maior partido da oposição exige tanta responsabilidade como ser governo.

O PCP, que hoje divulga com orgulho a extensa lista de propostas suas que foram aprovadas, tratou de fazer com que a proposta do governo fosse melhorada. Foi o que também procuraram fazer os deputados do PS. O resultado não entusiasmou o PCP a mais do que uma abstenção. Aí discordamos, mas, sem dúvida, fez-se um caminho.

O BE também apresentou na especialidade várias boas propostas, mas, globalmente, esteve fortemente condicionado pelas correntes internas que querem forçar uma rutura com os parceiros da anterior legislatura. O BE definiu o objetivo de transformar este OE numa estrondosa derrota para o Governo e o PS, adotando para o efeito a tática de trabalhar com o PSD para aprovar uma baixa do IVA da eletricidade que estourasse com o equilíbrio orçamental (não apenas de 2020, mas também dos próximos anos). A manobra, gorada pela já tradicional cambalhota do PSD, foi possível, como alguém disse, porque Rio “montou esta encenação calçado nos sapatos do BE”.

Na verdade, partilhamos o objetivo de combater a pobreza energética, como demonstra o alargamento da tarifa social de eletricidade de menos de oitenta mil para oitocentas mil famílias. E continuamos a trabalhar para baixar o preço que os consumidores pagam pela energia. O BE sabe disso – até porque o Governo, nos bastidores, foi propondo alternativas para atacar o problema. Só que o BE foi negando a existência dessas aproximações para poder prosseguir a operação em curso.

Este comportamento do BE tem um racional: querem fazer pagar caro ao PS não ter havido uma segunda “Geringonça” só a dois. Estão, para isso, dispostos a emparceirar com a direita se o PS não ceder a todas as suas exigências. Importa, pois, dizer o seguinte. Não houve “papéis passados” com o BE para o horizonte da legislatura, porque o BE o tornou impossível apresentando condições prévias à abertura de um processo negocial. Essas condições prévias incluíam mudar já em 2020 uma legislação laboral que tinha acabado de ser revista, tentando impor ao PS a humilhação de mudar em poucos meses de posição, contra o seu programa. E incluíam também uma forma de reservarem para seu crédito, até ao fim da legislatura, matérias que são sempre bandeiras também de outros partidos de esquerda. Mas o ultimato não incluía a baixa do IVA da eletricidade…

Acordos escritos dariam mais estabilidade à governação e seriam mais cómodos para o PS. Contudo, teríamos andado mal aceitando, à esquerda, a existência de parceiros de primeira (de papéis passados) e parceiros subalternos. Isso envenenaria a cooperação futura na esquerda plural, minando a responsabilidade perante os portugueses que partilhamos e devemos continuar a assumir.


Porfírio Silva, 11 de Fevereiro de 2020

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Orçamento e soberania

10:23


Para registo, deixo aqui o artigo que publique no Público, a 5 de Janeiro de 2020 (online a 4 de Janeiro), quando ainda estava no início o processo de discussão no parlamento do Orçamento de Estado para 2020.

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A proposta de Orçamento do Estado para 2020 incorpora uma forte aposta no papel do Estado Social na promoção de uma sociedade decente: reforço do SNS, combate à pobreza e às desigualdades, maior esforço público da última década em investimento estruturante, valorização da Administração Pública. Sabemos que o programa da legislatura não se cumpre todo num ano e que muito terá de continuar a ser feito. Contudo, é politicamente pouco sério tentar afunilar o debate ao tema do saldo orçamental e fantasiar que os pouco mais de 500 milhões de euros previstos como excedente seriam a chave para fazer tudo o que falta fazer a prazo. Não é: é menos do que os cerca de 600 milhões de euros que representam o alívio do peso dos juros no défice de 2018 para 2019 (no défice de 2019, os juros pesaram menos 0,3% do PIB do que em 2018).

As contas certas, que parecem continuar a incomodar alguns, libertam recursos para o que é preciso fazer. Pagar, em 2019, menos 2120 milhões de euros em juros do que em 2014, liberta recursos muito necessários. E para isso contribui o aumento da credibilidade da República, um resultado concreto de políticas bem-sucedidas. A nossa taxa de juro tinha, em 2015-2016, 100 a 200 pontos base de diferença (a mais) face a Espanha e a Itália. Agora, está idêntica à de Espanha (que também desceu) e 100 pontos abaixo da Itália.

Dizer que o excedente é lucro é uma forma de demagogia que explora o desconhecimento dos mecanismos orçamentais. Contabilisticamente, pagar uma dívida não aumenta o défice nem diminui o excedente. O superavit não é lucro, é a medida da redução do nosso endividamento; assim como défice não é prejuízo, é a medida em que passamos para o futuro o pagamento da despesa que fazemos hoje.

Somos mais livres, como país, com menos dívida. E qualquer défice acarreta sempre mais dívida. Estranho que a esquerda patriótica, e às vezes até um tanto nacionalista, que concebe a soberania nacional de forma tradicionalista, ao ponto de desconsiderar as vantagens da integração europeia, acabe por desprezar os graus de liberdade que ganhamos diminuindo a dívida da República, que é principalmente dívida externa.

Não é só pagarmos menos juros, já de si importante. Diminuir a dívida soberana é ficarmos menos dependentes da conjuntura internacional, menos expostos a uma crise, é termos mais liberdade para ter défices quando a conjuntura o exija, porque há momentos em que o défice é benéfico. Isto não é “seguir as imposições de Bruxelas": isto é proteger o país e alargar a nossa margem de autonomia, isto é acautelar o nosso Estado Social e proteger a capacidade dos nossos mecanismos de proteção social. Assim continuamos o trabalho da legislatura anterior, quando reduzimos o peso da dívida pública no PIB de um máximo de 132% para cerca de 120%.

Certos partidos de esquerda solicitaram intensamente o eleitorado para não dar ao PS uma maioria absoluta, porque estariam desejosos eles próprios de ajudar o PS a prosseguir o caminho da anterior legislatura. Seria, agora, desejável que não esquecessem a responsabilidade de continuar a libertar recursos para reforçar o Estado Social, de forma sustentável e assente numa noção funcional de soberania. Menos constrangido pela circunstância internacional, o país será mais dono das suas opções políticas. Menos endividado, o país será mais livre.

Porfírio Silva, 11 de Fevereiro de 2020


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6.2.20

Saldo orçamental



Hoje, no encerramento do debate do Orçamento de Estado para 2020, o PCP escolheu sublinhar as suas propostas e confrontar o PSD pelas cambalhotas que deu. Sem deixar, como costuma, de marcar a sua insatisfação com o que, na opinião dos comunistas, ficou aquém do desejável. Pelo seu lado, o BE escolheu atacar o PS e não dizer uma palavra sobre o comportamento do PSD. O BE, como tem sido costume e cada vez mais evidente, tem dois grandes inimigos: o PS e o PCP. Assim agiu neste processo orçamental. Rui Rio pagou na mesma moeda, atacando à direita e à esquerda, mas poupando o BE.
Neste debate orçamental, o que se percebe dos últimos dias é isto: o BE quis ajudar o PSD na questão do IVA da electricidade, para tentar provocar uma estrondosa derrota do PS; o PCP (que tinha a posição mais radical, ou "purista", se quiserem) nunca deixou de encostar o PSD às cordas, insistindo na proposta comunista inteira, nada fazendo para que o PCP se tornasse muleta da estratégia de Rui Rio. Em consequência, o verniz estalou e o PCP, desta vez, deixou escapar algumas observações que, na linguagem popular muito apreciada por aqueles lados, "chamam os bois pelos nomes" no que toca ao comportamento bloquista.

Há um traço recorrente do discurso do BE neste processo orçamental que merece a nossa atenção. Figuras de topo do BE têm insistido que o PS não tem maioria absoluta e que não quis fazer um acordo de legislatura com o BE, fazendo essas afirmações em contextos que traduzem a seguinte mensagem: "assim sendo, o BE está livre para fazer parcerias com quem nos apetecer". Já não traduzindo apenas, mas fazendo uma hermenêutica dessas palavras, elas querem dizer: "não fizeram um acordo escrito connosco, verão quão pesada será a factura". Que o PS não tem maioria absoluta, é verdade e já sabíamos. Que não nos pareceu bem fazer um acordo escrito só com um dos parceiros parlamentares da anterior legislatura, depois de outros terem recusado "papéis passados", é verdade: assumimos assim a responsabilidade de preservar uma base mínima de conversa entre todas as esquerdas, mantendo todos os partidos no mesmo plano e recusando a situação pantanosa de uns serem parceiros "de primeira" e outros "de segunda", pântano que só podia ser o princípio de uma "guerra civil" à esquerda. Contudo, não perdemos de vista com quem percorremos quatro anos de caminho comum, que queremos continuar e aprofundar - e não percebemos que o BE, como uma espécie de vingança por não termos aceitado um casamento exclusivo com eles, ache normal emparceirar com o PSD para tentar dinamitar o governo do PS.

A esquerda, incluindo o PS, tem obrigação de mostrar que também é capaz de dar estabilidade política e social ao país. Temos de fazer isso no clima de diversidade e pluralidade que é a única via para respeitar as nossas diferenças e a liberdade de cada uma das forças. Mas a esquerda plural não será, nunca, capaz de dar uma resposta progressista ao país se estiver continuamente à mercê do "vale tudo" de um partido tão à esquerda tão à esquerda que se dispõe a dar a mão a qualquer oportunismo de direita só para se vingar do governo e do PS.


Porfírio Silva, 6 de Fevereiro de 2020


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