Espanha e Portugal têm um debate similar em curso: que parceiros querem os socialistas?
O Ciudadanos podia ser um parceiro do PSOE? Em laboratório, talvez. Em laboratório até podia ser interessante ter um governo que amaciasse o fosso histórico entre uma esquerda e uma direita que se mataram numa guerra civil, ferida que não sarou com uma transição sem ruptura. Ferida que precisava de ser tratada.
Mas a realidade está muito longe do laboratório. Depois de o senhor Rivera se ter metido na mesma foto do líder dos fascistas, não me parece pensável que os socialistas se ofereçam para servir de máquina de lavar ao senhor Rivera e a todos os que querem derrotar os independentistas com os métodos neo-franquistas do senhor Rajoy (e, note-se, digo isto sendo eu contra qualquer dos nacionalismos radicais em presença). A ferida da guerra civil não pode ser tratada usando de contemplações com os que vivem ainda dos mesmos ódios da guerra civil.
E, se o PSOE o fizesse, creio que estaria no plano da infidelidade ao que se passou na campanha. É uma situação paralela ao que se passou em Portugal a seguir às legislativas de 2015, quando alguns no PS queriam dar a mão a Passos e a Portas, contra quem obviamente tínhamos feito campanha. Esses achavam pensável que o PS traísse tudo o que tinha andado a dizer e isso era insuportável politicamente. Felizmente, tarde ou cedo as traições pagam-se caro.
Creio que Espanha precisa de um acordo entre os socialistas e as várias esquerdas "mais duras" que compõem o Unidas Podemos. Alguns dirão: mas eles são radicais. Pois são. E, por isso mesmo, julgo que é preciso "pactar" com eles (como se diz em Espanha).
Há, como sempre houve, uma esquerda anti-sistema (aquilo a que alguns gostam de chamar extrema-esquerda ou esquerda radical). E há, como sempre houve, uma esquerda que quer mudar as coisas sem ter de romper com o sistema. Até porque, pensamos nós os socialistas democráticos, é este o caminho para podermos construir a maioria política e a maioria social capaz de dar passos no sentido de menos desigualdade, mais direitos e mais democracia social. Ora, se há essa duas esquerdas (ou melhor, várias esquerdas), o que devemos fazer neste mundo onde as esquerdas têm sempre tantos obstáculos à efectivação dos seus programas? Devemos desperdiçar energia a acirrar as nossas diferenças? Ou devemos valorizar antes as convergências e concretizar políticas de progresso? A minha resposta, sendo um apoiante convicto da Esquerda Plural em Portugal, é clara: temos de valorizar as convergências e agir - sem deixar de respeitar as diferenças e as divergências.
Aos que detestam a pulsão anti-sistema de alguma esquerda, direi: essa não é a minha esquerda, mas é preciso encontrar pontes com todos os que se movem nas margem de contestação ao sistema, se queremos que o sistema se renove e integre os desafios daqueles que se sentem excluídos. Não vou converter-me às ideologias das esquerdas anti-sistema, mas essas esquerdas podem ajudar a alargar o espaço da representação democrática, o espaço dos que olham para a política democrática com a expectativa de que ela melhore as suas vidas concretas.
Não faz muito sentido berrarmos contra os populismos, e temermos a erosão das democracias abertas, e depois recusarmos as oportunidades de construir respostas políticas que tragam mais cidadãos para o combate político no quadro das nossas instituições democráticas. Em vez de alimentarmos a desesperança dos que se sentem de fora, mais vale criarmos as oportunidades para que sejam de dentro. E isso pode fazer-se, até certo ponto, com o que alguns chamam partidos da esquerda radical.
O vício intelectualista que continua a minar muitas análises políticas ainda é capaz de nos querer convencer de que é tudo uma questão programática - e aí vem a ideia de que os programas dos socialistas e social-democratas é muito diferente dos programas da esquerda radical, o que tornaria impossível uma acção política conjunta. Se, em vez desse vício intelectualista, dermos mais atenção às emoções democráticas - por exemplo, as emoções que nos posicionam dentro e as emoções que nos posicionam fora do círculo de empenhamento nas instituições democráticas - podemos entender melhor o ganho que representa trazer mais cidadãos para uma política que possa fazer a diferença nas suas vidas, em vez de uma política que eles sentem que os deixa sempre de fora. Afinal, aquilo que em Portugal dissemos ser o necessário "fim do arco da governação".
A situação espanhola tem, além de muitas diferenças, muitas parecenças com a situação portuguesa. Claro que é aos espanhóis que cabe definir o seu caminho. Mas, sendo eu um internacionalista, nada do que se passa lá fora me é indiferente.
Porfírio Silva, 29 de Abril de 2019