5.4.19

Ética contra a política?



"Se fossemos todos éticos não precisávamos da política."
O padre Anselmo Borges proferiu esta afirmação, ontem ao fim da tarde, na inauguração de uma exposição na Assembleia da República.
Dificilmente posso imaginar afirmação mais errada.
A política é o trabalho de vivermos muitos em comum. Isso implica muitos problemas difíceis de coordenação. Esses problemas não se resolvem pela vontade de cada um, mesmo que essa vontade seja boa, seja inteligente e seja esclarecida.
Viver em comum tem muitas dificuldades, desde logo porque é correcto termos diferentes visões do mundo - mas seria difícil mesmo que tivéssemos todos as mesmas opiniões. Porque é difícil saber como fazemos para sermos muitos e agirmos bem, mantendo a liberdade de todos. A ideia de que esse trabalho, que é o trabalho da política, pode ser substituído pela ética, é um grave erro. Talvez fosse possível se a opção fosse por uma ética autoritária - mas uma ética autoritária já não seria verdadeiramente uma ética. Esse erro podia ser justificado se tivéssemos um Deus para nos impôr uma ética - mas, mais uma vez, isso não seria propriamente uma ética.
Portanto, a minha opinião é que a afirmação de Anselmo Borges está fortemente errada - e, sendo ele um homem atento às ciências, ter dito aquilo só se pode justificar pelo atraso das ciências sociais, que ainda percebem muito pouco das sociedades humanas, sociedades com instituições, que só existem por terem instituições e por terem política. Porque sem política não há sociedades humanas - o que, de modo nenhum, significa que a política chegue; o que, de modo nenhum, significa que a ética deixa de fazer falta a todas as dimensões da vida humana.
Uma vez que sem política não há sociedades humanas, afirmar que podíamos prescindir da política é namoriscar com os inimigos da civilização. Fazer isso em nome da ética é correr o risco de alimentar os falsos moralistas praticantes de baixa política. Lamento que tenha sido precisamente o padre Anselmo Borges a correr esse risco inútil.


Porfírio Silva, 5 de Abril de 2019
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