29.4.19

Espanha, Portugal, opções e caminhos




Espanha e Portugal têm um debate similar em curso: que parceiros querem os socialistas?

O Ciudadanos podia ser um parceiro do PSOE? Em laboratório, talvez. Em laboratório até podia ser interessante ter um governo que amaciasse o fosso histórico entre uma esquerda e uma direita que se mataram numa guerra civil, ferida que não sarou com uma transição sem ruptura. Ferida que precisava de ser tratada.

Mas a realidade está muito longe do laboratório. Depois de o senhor Rivera se ter metido na mesma foto do líder dos fascistas, não me parece pensável que os socialistas se ofereçam para servir de máquina de lavar ao senhor Rivera e a todos os que querem derrotar os independentistas com os métodos neo-franquistas do senhor Rajoy (e, note-se, digo isto sendo eu contra qualquer dos nacionalismos radicais em presença). A ferida da guerra civil não pode ser tratada usando de contemplações com os que vivem ainda dos mesmos ódios da guerra civil.

E, se o PSOE o fizesse, creio que estaria no plano da infidelidade ao que se passou na campanha. É uma situação paralela ao que se passou em Portugal a seguir às legislativas de 2015, quando alguns no PS queriam dar a mão a Passos e a Portas, contra quem obviamente tínhamos feito campanha. Esses achavam pensável que o PS traísse tudo o que tinha andado a dizer e isso era insuportável politicamente. Felizmente, tarde ou cedo as traições pagam-se caro.

Creio que Espanha precisa de um acordo entre os socialistas e as várias esquerdas "mais duras" que compõem o Unidas Podemos. Alguns dirão: mas eles são radicais. Pois são. E, por isso mesmo, julgo que é preciso "pactar" com eles (como se diz em Espanha).

Há, como sempre houve, uma esquerda anti-sistema (aquilo a que alguns gostam de chamar extrema-esquerda ou esquerda radical). E há, como sempre houve, uma esquerda que quer mudar as coisas sem ter de romper com o sistema. Até porque, pensamos nós os socialistas democráticos, é este o caminho para podermos construir a maioria política e a maioria social capaz de dar passos no sentido de menos desigualdade, mais direitos e mais democracia social. Ora, se há essa duas esquerdas (ou melhor, várias esquerdas), o que devemos fazer neste mundo onde as esquerdas têm sempre tantos obstáculos à efectivação dos seus programas? Devemos desperdiçar energia a acirrar as nossas diferenças? Ou devemos valorizar antes as convergências e concretizar políticas de progresso? A minha resposta, sendo um apoiante convicto da Esquerda Plural em Portugal, é clara: temos de valorizar as convergências e agir - sem deixar de respeitar as diferenças e as divergências.

Aos que detestam a pulsão anti-sistema de alguma esquerda, direi: essa não é a minha esquerda, mas é preciso encontrar pontes com todos os que se movem nas margem de contestação ao sistema, se queremos que o sistema se renove e integre os desafios daqueles que se sentem excluídos. Não vou converter-me às ideologias das esquerdas anti-sistema, mas essas esquerdas podem ajudar a alargar o espaço da representação democrática, o espaço dos que olham para a política democrática com a expectativa de que ela melhore as suas vidas concretas.

Não faz muito sentido berrarmos contra os populismos, e temermos a erosão das democracias abertas, e depois recusarmos as oportunidades de construir respostas políticas que tragam mais cidadãos para o combate político no quadro das nossas instituições democráticas. Em vez de alimentarmos a desesperança dos que se sentem de fora, mais vale criarmos as oportunidades para que sejam de dentro. E isso pode fazer-se, até certo ponto, com o que alguns chamam partidos da esquerda radical.

O vício intelectualista que continua a minar muitas análises políticas ainda é capaz de nos querer convencer de que é tudo uma questão programática - e aí vem a ideia de que os programas dos socialistas e social-democratas é muito diferente dos programas da esquerda radical, o que tornaria impossível uma acção política conjunta. Se, em vez desse vício intelectualista, dermos mais atenção às emoções democráticas - por exemplo, as emoções que nos posicionam dentro e as emoções que nos posicionam fora do círculo de empenhamento nas instituições democráticas - podemos entender melhor o ganho que representa trazer mais cidadãos para uma política que possa fazer a diferença nas suas vidas, em vez de uma política que eles sentem que os deixa sempre de fora. Afinal, aquilo que em Portugal dissemos ser o necessário "fim do arco da governação".

A situação espanhola tem, além de muitas diferenças, muitas parecenças com a situação portuguesa. Claro que é aos espanhóis que cabe definir o seu caminho. Mas, sendo eu um internacionalista, nada do que se passa lá fora me é indiferente.


Porfírio Silva, 29 de Abril de 2019
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5.4.19

Ética contra a política?

09:59


"Se fossemos todos éticos não precisávamos da política."
O padre Anselmo Borges proferiu esta afirmação, ontem ao fim da tarde, na inauguração de uma exposição na Assembleia da República.
Dificilmente posso imaginar afirmação mais errada.
A política é o trabalho de vivermos muitos em comum. Isso implica muitos problemas difíceis de coordenação. Esses problemas não se resolvem pela vontade de cada um, mesmo que essa vontade seja boa, seja inteligente e seja esclarecida.
Viver em comum tem muitas dificuldades, desde logo porque é correcto termos diferentes visões do mundo - mas seria difícil mesmo que tivéssemos todos as mesmas opiniões. Porque é difícil saber como fazemos para sermos muitos e agirmos bem, mantendo a liberdade de todos. A ideia de que esse trabalho, que é o trabalho da política, pode ser substituído pela ética, é um grave erro. Talvez fosse possível se a opção fosse por uma ética autoritária - mas uma ética autoritária já não seria verdadeiramente uma ética. Esse erro podia ser justificado se tivéssemos um Deus para nos impôr uma ética - mas, mais uma vez, isso não seria propriamente uma ética.
Portanto, a minha opinião é que a afirmação de Anselmo Borges está fortemente errada - e, sendo ele um homem atento às ciências, ter dito aquilo só se pode justificar pelo atraso das ciências sociais, que ainda percebem muito pouco das sociedades humanas, sociedades com instituições, que só existem por terem instituições e por terem política. Porque sem política não há sociedades humanas - o que, de modo nenhum, significa que a política chegue; o que, de modo nenhum, significa que a ética deixa de fazer falta a todas as dimensões da vida humana.
Uma vez que sem política não há sociedades humanas, afirmar que podíamos prescindir da política é namoriscar com os inimigos da civilização. Fazer isso em nome da ética é correr o risco de alimentar os falsos moralistas praticantes de baixa política. Lamento que tenha sido precisamente o padre Anselmo Borges a correr esse risco inútil.


Porfírio Silva, 5 de Abril de 2019
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