(Fotografia de Rui Carlos Mateus)
O mundo é estranho. Estava zangado comigo por ainda não ter conseguido escrever sobre o Hamlet que, trazido de Shakespeare para português pela vida poética de Sophia, Luis Miguel Cintra encenou na e para a Cornucópia. Começou, ainda em Julho, no Festival de Almada, e eu não consegui ver. Estreou no Teatro do Bairro Alto, e consegui ver. Regressou a Almada, e voltei. (Há muito que tive de reconhecer que perco muito do que Cintra quer dizer se não vir os seus espectáculos mais de uma vez.) Entretanto, chegara o anúncio de que Cintra termina a sua (noção desconfortável para o próprio) “carreira de actor” com esta peça e, portanto, sobe amanhã ao palco pela última vez. E eu ainda não encontrara tempo para alinhar as ideias que trazia na cabeça sobre este senhor Hamlet. Inesperadamente, os atentados terroristas de ontem, 13 de Novembro, em Paris, provocaram a anulação da conferência política do PSOE, em Madrid, que decorria hoje, Sábado, tornando inútil a minha deslocação e abrindo uma clareira de horas bastantes para escrever estas parcas reflexões que ora partilho quase só por uma homenagem pessoal ao Luis Miguel, e às nossas diferenças.
Como não sou crítico, embora goste de teatro e goste de escrever sobre o trabalho da Cornucópia, há muitos aspectos de cada espectáculo que não costumo comentar, como o trabalho dos actores ou o cenário. Mais uma vez desta vez, não vou dizer nada do atrevimento tão falado de escolher um actor de 22 anos para fazer a personagem Hamlet, em vez de um consagrado (com um resultado que me agradou francamente). Mas, uma vez sem exemplo, vou falar do cenário.
A Cristina Reis costuma encontrar fantásticas atmosferas poéticas para os espectáculos da sua companhia, com uma sensibilidade que ultrapassa a minha compreensão e só se entende por ela ser tão da casa que todos os seres inanimados que lá dormem lhe pagam tributo com a cumplicidade que só os objectos na sua quietude sabem como se faz. Senti, desta vez, que o cenário fez mais, foi mais activo; criou, não apenas uma paisagem e um solo onde pousassem as acções e se escorassem as intenções das personagens, mas, muito mais do que isso, uma máquina do mundo que labutou, secreta mas intensamente, para mover a verdade ali em causa e fazer acontecer. É um castelo, ou mais precisamente um esquema de um castelo, sem mudanças de cenário em quatro horas de acontecimentos, mas um castelo tão complexo como o mundo: com vários níveis, interior e exterior, salas e salões e janelas e escadas e passadiços e pátio e cemitério e longe e perto, com vários modos de acesso e circulação capazes de criar movimentos e formas de estar diferentes no que estaticamente podia ser igual, recriando numa casca de noz uma série rica de diferenciações espaciais e significativas essenciais a Elsinore. O castelo do mundo, da luta pessoal pela descoberta do próprio caminho, da luta contra os outros ou com os outros, está aqui todo dado naquela caravela voadora que é o cenário da Cristina Reis, que, se nos costuma dar poesia material, desta vez nos deu filosofia prática. Creio, aliás, que a diferença de intensidade que senti entre a primeira e a segunda partes do espectáculo (e senti-o das duas vezes que o vi) se deve à exploração mais intensa que a segunda parte faz das possibilidades dinâmicas do castelo.
No seu habitual texto “Este Espectáculo”, Cintra, indo pela tese de ser o Tempo o protagonista de Hamlet, repete que o Tempo e a Morte são o mesmo tema. Insistindo sempre que não percebe nada da filosofia, Cintra volta a ser aqui muito heideggeriano, pensando o “ser do homem” como “ser para a morte” num plano de sentido essencial. Contudo, e porque Cintra não é de todo um pensador individualista (coisa que, a meu ver, Heidegger foi), relevo a sua aproximação entre o tema da morte e o tema da efemeridade da vida. Ora, se a aproximação ao tema do tempo pelo lado da morte nos pode encerrar no indivíduo (o indivíduo que morre), já a aproximação pelo lado do efémero deixa espaço, em meu entender, à entrada em jogo dos outros: morrendo eu ou não, o que persiste para além do efémero é o que fica nos outros, o que lancei à terra dos outros e aí germinou. E, para mim, faz sentido pensar que Cintra, que tanto batalha contra uma civilização do efémero, prefira trabalhar no Tempo por esse lado, precisamente a frente de batalha em que podemos vencer a Morte, vencendo o efémero para lá da morte.
(Aparte. Aliás, não há só esse escoar do tempo absoluto a que tanto nos prendemos. O grande e heterodoxo evolucionista Stephen Jay Gould escreveu, num dos ensaios inseridos em O Polegar do Panda, que não devíamos ser tão fascinados pelo tempo astronómico, absoluto, newtoniano, que numa concepção do mundo racional e objectiva nos parece o único válido, mas não é: devíamos dar mais atenção ao tempo biológico. Que é um tempo interno, orgânico, ligado ao ritmo do corpo. Assim, por exemplo, todos os mamíferos duram aproximadamente a mesma quantidade de tempo biológico, quer dizer, tendem a respirar cerca de 200 milhões de vezes e os seus corações a bater cerca de 800 milhões de vezes numa vida individual. Umas espécies vivem mais do que outras? Sim; os animais mais pequenos vivem mais depressa, os animais mais corpulentos mais devagar; a taxa metabólica, o “fogo da vida”, diminui relativamente com o aumento do tamanho: “Os pequenos musaranhos movem-se freneticamente, comendo durante quase toda a sua vida de vigília para manterem o fogo metabólico à taxa máxima de todos os mamíferos; as baleias azuis deslizam majestosamente, com os batimentos cardíacos mais lentos de todas as criaturas activas de sangue quente.” Em tempo astronómico, os mais rápidos vivem menos tempo, os mais pesados mais tempo: mas, “visto de dentro”, o que corre mais apenas está pressionado pela sua pequenez.)
Ora, o efémero, mais do que a morte, interessa tudo ao tema maldito de Cintra, a política. Tema, porque Cintra sente uma responsabilidade política, pelo menos a responsabilidade de detestar e combater uma certa política, sob o nome, por exemplo, de “política do possível”, que normaliza os espectáculos de teatro a formatos contabilizáveis para efeitos de dinheiros. Tema maldito, porque para Cintra toda a política está manchada pelo poder – e poder é poder de oprimir. Escuso de repetir (já falámos disso neste espaço) que discordo fortemente de Cintra nesse ponto, mas isso não importa agora nada. O que importa é que, repito, há uma questão da política em Cintra, questão que volta neste Hamlet.
Gonçalo Frota, num texto publicado no Público a 17 de Setembro p.p., regista Cintra a dizer que o contacto de Hamlet com a morte o “liberta da possibilidade de ser rei, adquirindo uma lucidez completamente diferente”. Pois que o poder é prisão, é embotamento dos sentidos e da razão, para os outros e para o próprio. Eunice Tudela de Azevedo, naquela das críticas a este espectáculo que mais me aproveitou entre a estreia e a repetição em Almada, evoca a leitura freudiana do texto e exemplifica com dois momentos. Primeiro, a tentativa de Hamlet para subjugar sexualmente a própria mãe (depois da cena da trupe de comediantes). Segundo, mais um substrato permanente do que um momento, a relação de homo-erotismo latente entre Hamlet e Horácio. Ora, em comentário a esse texto, Cintra lança uma outra luz sobre o sentido dessa relação: Horácio, em ser “um Homem que não quer conhecer poder”, é um contrário de Hamlet. Mais decisivo ainda: esse é o contrário “que sempre dialoga com o pensamento de Hamlet”. Uma e outra vez, aqui outra vez, Cintra percorre o mundo à procura de algo, de quem, que seja capaz de desconstruir o poder, as relações de poder, a vontade de poder.
Os espectáculos com dramaturgia de Cintra são sempre homenagens laboriosas à palavra, à linguagem, ao Verbo que fez e faz o mundo e trabalha todos os sentidos que podem na vida ser dados ou tirados. Estas quatro horas são, ainda e outra vez, um sopro de palavra na vida do pensamento. Um quase integral de uma obra maior da história do teatro, um clássico naquele sentido de continuar a interrogar-nos de modo tão actual passados tantos séculos. E isso tem uma razão, que se dá em palavras do próprio Luis Miguel. Numas palestras que proferiu no âmbito do Festival de Almada, trazidas neste 2015 para livro (Cinco Conversas em Almada), Luis Miguel Cintra diz “Os actores devem ter como principal objectivo tornarem-se pessoas interessantes”. E explica: o que o espectador vê da plateia não é a personagem: é o actor, mascarado, a fazer ora isto ora aquilo, de peça para peça. O que o espectador vê é essa pessoa que é actor; se essa pessoa for banal, só pode aborrecer olhar para ela; se essa pessoa for interessante, é mais provável que seja prazeroso olhar para ela e ver o que faz. Por isso é que o actor deve trabalhar para ser uma pessoa interessante.
E assim se explica o grande actor que Luis Miguel Cintra é.