Em editorial no DN de hoje, intitulado “O PS e a dívida”, Nuno Saraiva escreve:
«Hoje, porém, o responsável pelas relações externas do PS vai mais longe. Ao DN, salvaguardando que "toda a estratégia do programa do PS é dentro da União Europeia", acrescenta que não quer dizer "que não se estude". Numa altura em que o país está suspenso da decisão de Cavaco Silva sobre a indigitação ou não de António Costa como primeiro-ministro, era bom que o PS não descarrilasse e conferisse pretextos ao Presidente da República para ter dúvidas e hesitações sobre a sua solução governativa. Ao contrário do que se possa pensar no Largo do Rato, a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou. A doutrina, concorde-se ou não, continua a ser, sem transigências, a que foi definida por Schäuble e Dijsselbloem.»
Há um aspecto retórico nesta peça que tem o seu interesse: não dizendo quem é o tal responsável pelas relações externas do PS (dá o caso de ser eu, Porfírio Silva), Nuno Saraiva sente-se assim escusado do exercício de comparar a sua leitura de uma frase minha com aquilo que sempre disse e escrevi sobre a matéria. De facto, quando alguém se dedica ao exercício de extrair de uma frase todo um manancial de consequências que vão contra aquilo que a mesma pessoa disse repetidas vezes em vários textos e declarações, é razoável que nos espantemos com a veia interpretativa.
Mas, já que o editorialista não acha que tenha de se preocupar com isto, então vejamos as minhas declarações ao mesmo DN publicadas na edição de hoje. É na página 4. Começa, logo no primeiro parágrafo, por enquadrar: está-se a falar de um ponto do acordo entre o PS e o BE, relativo à constituição de um grupo de trabalho para avaliação da sustentabilidade da dívida externa.
Aí se diz que eu disse que “Toda a estratégia do programa do PS é uma estratégia dentro da União Europeia”; que isso não quer dizer que “não se estude” a sustentabilidade da dívida (lembrando, como exemplo, um dos estudos produzidos nos últimos anos sobre o assunto, aquele em que participou Pedro Nuno Santos); que o PS tem uma “posição claramente pró-Europa”, embora os socialistas sejam “críticos de alguns aspectos do funcionamento da União Europeia”, como “a arquitectura do euro” ou a falta de equilíbrio na União Económica e Monetária. Aí se escreve também que eu disse que “isto não é tabu em lado nenhum”, porque esse debate existe nas várias famílias europeias “à direita e à esquerda”, tal como disse que “o PS tem uma solução integrada em que tem em conta o enquadramento internacional e os processos de política interna”. E, nessa ligação entre a política interna e a política europeia, ainda sou citado assim: o PS não pretende “converter os outros partidos” com que assinou posições conjuntas: “Há é uma oportunidade de fazer outra política alternativa sem rutura”.
Dito isto, o que posso dizer do que Nuno Saraiva escreveu, para ser o mais imparcial possível, é que se trata de “uma tempestade num copo de água”. Seria ainda mais claro se Miguel Marujo tivesse mencionado outro aspecto que lhe sublinhei, a saber: António Costa sempre disse que não faz sentido colocar a exigência de renegociação da dívida à cabeça. Mas, mesmo sem isso ter aparecido, não há matéria nenhuma nas minhas declarações publicadas pelo DN que justifique a pretensão do editorialista, que é a pretensão de que eu abri qualquer linha de novidade na nossa posição sobre a dívida. Se nós concordamos vir a fazer um grupo de trabalho para estudar a questão da dívida, como o próprio editorialista escreve, qual é a novidade de dizer que a questão pode ser estudada?
Com toda a franqueza, se a ideia é dizer que alguém está a dar desculpas ao Presidente da República, seria melhor procurar-se qualquer coisa de substantivo, em lugar de inventar novidade ou diferença onde ela inexiste absolutamente. Se, pelo contrário, a ideia é o já batido mantra de que não se pode discutir aquilo que os bonzos da ortodoxia querem que não se discuta, aí o caso é mais sério: a tentativa de evitar que a política discuta todos os assuntos que possam influenciar as decisões políticas – essa é uma tentativa que passa ao lado da democracia. Que passa ao lado do que a democracia exige de nós.
Já para não falar da afirmação, também de Nuno Saraiva, segundo a qual “a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou”. É que, aí, é preciso não ter sequer reparado que o presidente da Comissão Europeia já não é Durão Barroso para insistir em não ver as fissuras abertas na ortodoxia que vinha desse tempo. Aí, é preciso ter perdido de vista que, ainda antes de Juncker ter introduzido a leitura inteligente e flexível do Tratado Orçamental, já António Costa tinha defendido a mesma linha, usando a mesma expressão. Mas, enfim, essa matéria realmente substantiva fica para outro dia.
Não nos esqueçamos: para podermos escolher, temos de estudar os caminhos. Quem queira impedir que estudemos o mundo, ou desconhece a complexidade do mundo ou desconhece a complexidade da democracia. As ditaduras são mais simples - mas não estamos acomodados a essa maldita simplicidade.