24.9.14

a quem me pergunta se gostei do debate de ontem.



A quem me pergunta se gostei do debate de ontem, a resposta é: não, não gostei. Os socialistas e o país mereciam outro debate.

Aliás, o debate de ontem, se preciso fosse, justificou plenamente a falta de entusiasmo de António Costa por estes confrontos com António José Seguro. Costa sabia que a estratégia de Seguro era a estratégia da lama: se eu lançar lama sobre o outro, o outro tem de escolher entre sujar as mãos para limpar o casaco ou aceitar ficar sujo. Se Costa optasse por não responder, Seguro viria dizer que quem cala consente. Assim, o que Seguro conseguiu foi envolver Costa em algo muito próximo de uma peixeirada. Se um líder da direita, digamos Passos Coelho ou Portas, apresentasse num debate com um líder do PS o estilo apresentado ontem por Seguro, todos os socialistas (e nem só) achariam esse comportamento de uma inqualificácel baixeza política. Que seja o secretário-geral do PS a fazer isso a outro socialista, só torna as coisas piores.

Dito isto, temos de reconhecer que a estratégia de Seguro para o debate de ontem resultou: conseguiu, ajudado pela forma "escolar" como o jornalista começou o encontro (perguntinhas de escopo estreito, iguais para ambos os debatentes), dar a ideia de que não há diferenças políticas entre ambos e, a partir daí, lançar-se na sua estratégia da vitimização e do insulto. Costa resvalou várias vezes para essa vala. Eu percebo: quem não se sente não é filho de boa gente. Mas esse era o terreno de Seguro e Costa não conseguiu evitar o impulso para defender a sua própria honra. Percebe-se bem a estratégia de Seguro: aquele debate em que Seguro prescindiu do ataque pessoal soez (o segundo debate), foi o debate em que Seguro foi esmagado e onde mais se notou quão frouxa é a sua preparação e quão pesada é a sua inconsistência. Seguro, ontem, mostrou que pode descer mais baixo do que podíamos imaginar - mas deve estar muito contente por ter puxado Costa para o seu terreno de discussão. Como disseram vários comentadores, Seguro suicidou-se em directo - mas Seguro deve estar contente porque guardou uma bala para Costa. É sabido, e é outro ditado popular: quem se mete com crianças, borra-se. O que tudo isto dá que pensar é o seguinte: como chegam estas personagens ao topo da República portuguesa (sim, porque ser líder do PS é um trabalho de altíssima responsabilidade na República) ?

É isto que interessa nas Primárias do PS? Não, não é.
O que interessa é que António Costa tem provas dadas a pensar e a fazer, em lugares difíceis e relevantes, enquanto António José Seguro é há décadas um político de gabinete. Começaram ambos como ministros de António Guterres e, enquanto nos lembramos de vários serviços prestados ao país por António Costa, não temos ideia de nada que António Seguro tenha feito na vida pública que não tenha sido gerir os próprios mecanismos internos da política.
O que interessa é que António Costa enfrenta situações e resolve problemas, juntando as mais inimagináveis coligações de vontades para fazer o que há a fazer, enquanto António Seguro se revelou incapaz sequer de manter unido o seu próprio partido, quanto mais mobilizá-lo.
O que interessa é que, enquanto António Seguro tira "bombas" da cartola para animar uma campanha, sem qualquer noção da responsabilidade institucional (fazer um agendamento potestativo no parlamento para discutir um papelucho vago sobre reformas políticas do país, sem sequer saber se o seu próprio partido as apoia e sem consultar os órgãos do partido sobre isso), António Costa não cede à tentação do espectáculo e não inventa propostas: apresentou umas Grandes Opções de Governo (que a maioria dos comentadores, em vez de criticar responsavelmente, faz de conta que não existem, para poder dizer que não tem proposas concretas) e assumiu que maior concretização terá de sair do trabalho colectivo de socialistas e simpatizantes, sem invenções apressadas para servir de fogo de artifício.
O que interessa é que, embora António Costa sublinhe que é natural não haver profundas diferenças programáticas entre dois candidatos do PS, há diferenças na marcação de certas prioridades (por exemplo, na questão da precariedade laboral e na questão da negociação colectiva) que revelam diferentes capacidades para perceber o que realmente tem impacte na vida concreta das pessoas.

Por que é que não gostei do debate de ontem? Porque António Seguro conseguiu evitar que se chegasse à discussão das diferenças políticas de substância. Que não são rasgões ideológicos profundos - são ambos do mesmo partido - mas são importantes para perceber o debate que atravessa a social-democracia europeia.
Ainda ninguém se deu ao trabalho de olhar para as Primárias do PS na óptica da crise da esquerda democrática europeia. Seria interessante fazê-lo, porque aí se perceberia que as questões de método são essenciais à compreensão do papel dos democratas hoje. Implícito no refrão de "Mobilizar Portugal" (e explíctio na moção política) está um ponto de método: fazer política com cidadãos participativos, respeitando as instituições, devolvendo democraticidade à democracia, devolvendo a política à comunidade de cidadãos, em vez de encarneirarmos num qualquer pensamento único. Isto é essencial e está no cerne do método político que António Costa tem praticado há muitos anos na vida pública. Esta mensagem tem valor e relevância muito para lá das fronteiras do PS e das fronteiras do país. A estratégia da lama, de que Seguro lançou mão nesta campanha para salvar o lugar a que acha que tem direito, tem impedido que esta análise se faça. O debate de ontem, mais uma vez, não permitiu que se chegasse a este plano da discussão. Por isso não gostei do debate de ontem.