30.9.14

citando Álvaro Cunhal.

23:57

Há anos que tenho na aba do meu blogue a seguinte citação de Álvaro Cunhal:

«O atraso de Portugal é grande. A economia é deficitária. Mesmo que se eliminassem todos os lucros da grande burguesia e se procedesse a uma melhor distribuição da riqueza, o produto nacional não asseguraria, ao nível actual, a acumulação necessária para um desenvolvimento rápido e uma vida desafogada para todos os portugueses. Para o melhoramento das condições de vida gerais será necessário aumentar a produção em ritmo acelerado. E isso obrigará não só a investir como a trabalhar mais e melhor.»
Álvaro Cunhal, discurso ao VII Congresso do PCP, Outubro de 1974

Parece que há muita gente a quem isto não dá que pensar. É pena.


convite.

18:01


(Clicar para ampliar.)

29.9.14

primárias.

12:36



Terminou ontem o processo que designamos por "primárias" no PS: o partido, face a uma escolha que cabe regularmente aos seus órgãos dirigentes, acerca da pessoa que será apresentada como agregadora da alternativa de governo, preferiu entregar essa opção aos militantes de base e a cidadãos eleitores que se reconhecem como simpatizantes e aceitam a declaração de princípios da agremiação. Quem me lê regularmente sabe quais foram as minhas opções neste processo e, portanto, dispenso-me de considerações específicas sobre o resultado ou sobre o conteúdo do debate travado. O que quero, agora, é deixar uma breve reflexão acerca do significado democrático do próprio método designado por "primárias".

Os defensores das primárias vêem-nas como uma forma de quebrar o gelo entre a política e a cidadania, levando os partidos a falar para fora do círculo dos militantes e a fazer um esforço de "conversa" com muitas pessoas que se interessam pelo bem comum sem se interessarem pelas especificidades da luta política quotidiana. Vejo como relevante essa preocupação de alargamento do espaço do debate político, onde as fronteiras partidárias se tornam porosas e dão lugar a mais intensas trocas entre o "interior" e o "exterior". A larga mobilização gerada por esta eleição do PS, com quase 250.000 inscritos e quase 175.000 votantes (qualquer coisa como 6 vezes o número de votantes habituais nas eleições internas), não pode ser menosprezada.
(Errado: essa larga mobilização não devia, mas pode ser menosprezada, como demonstram Jerónimo e Louçã, mas isso não abona nada a favor das esquerdas que se comportam sempre como se as outras esquerdas fossem o seu primeiro inimigo.)

Contudo, como em quase tudo na vida, é preciso olhar para o outro lado da Lua. Não faz sentido querer democratizar os partidos na sua relação com o exterior sem democratizar os partidos no seu funcionamento interno. Os processos de abertura, tipo primárias, não devem ser utilizados para substituir, mas antes para reforçar, uma democracia interna mais vibrante e mais efectiva. Dentro de um partido é preciso que os órgãos colectivos de decisão funcionem, que tenham condições para debater seriamente a orientação do partido e não sejam apenas caixas de ressonância das ideias do líder, que as várias correntes de opinião internas tenham aí o seu espaço e façam da pluralidade uma riqueza e não uma vergonha a esconder. As sociedades do nosso tempo são complexas e plurais, razão pela qual os grandes partidos têm de ser capazes de reflectir, pela sua democraticidade interna e espírito de abertura, essa complexidade e pluralidade. É sobre essa democraticidade interna em constante renovação que faz sentido juntar processos de abertura ao exterior, como as primárias. Mas não faria sentido "abrir ao exterior" uma organização que se mantivesse rígida e defensiva face à pluralidade no plano interno.

Em particular, é preciso ter muito cuidado com o recurso oportunista a mecanismos como as primárias. Convém não esquecer que, neste caso, as primárias foram convocadas por um secretário-geral acossado, que sempre tinha combatido o recurso às primárias, e que mudou subitamente de posição porque lhe venderam que esta podia ser a sua escapatória a um julgamento interno negativo. Convém lembrar isto, não tanto para avivar a memória dos que repetem loas à iniciativa de AJS a convocar as primárias, como se essa iniciativa tivesse sido um gesto de visionário e não um recurso de aflito, mas porque lembrar isto deve permitir estar atento ao seguinte: tudo o que seja atrofiar a democracia dentro dos partidos é mau, mesmo que para fazer isso se busque justificação em mecanismos alternativos de abertura à cidadania. A democraticidade interna dos partidos é um valor inestimável para a própria democraticidade da República; essa democraticidade interna pode ser reforçada com processos mais intensos de participação dos não militantes; mas é de uma conjugação desses dois mecanismos que precisamos, não da substituição de um pelo outro.

Não podemos escapar à necessidade de continuar este debate. Neste ponto, temos de reconhecer mérito àqueles que, há muito, dentro do PS, defendiam que este debate tinha de ser feito. Esses estão dispersos por todas as "correntes" dentro do PS e tiveram ontem um dia importante para alimentar essa reflexão. A democracia não é uma forma estática, é uma dinâmica que temos sempre de continuar a alimentar. Este debate continuará a ser, nos próximos anos, uma componente importante dessa dinâmica. Ainda bem.

26.9.14

"Manifesto por um país".

11:52

(Clicar na imagem para aumentar)

Sempre defendi que os partidos são necessários à democracia. E sempre defendi que os partidos não chegam para ter uma boa democracia. Há muito mundo para lá dos partidos. E entre os partidos. E naqueles que não ficam cegos por causa das fronteiras partidárias - que também os há dentro dos partidos, esses não-cegos.

Precisamos estar atentos a quem, no nosso partido ou em outros partidos, fora dos partidos ou em proto-partidos, não desiste de se bater por nós: por nós todos, mas especialmente por quem tem menos voz para defender os seus direitos. Estar atentos a quem não desiste de lutar por uma Sociedade Decente e por uma comunidade de cidadãos.

Por isso chamo a vossa atenção para este "Manifesto por um país". Tão importante pelo que diz como pela lista de cidadãos subscritores. Sim, porque também conta quem diz as coisas: porque a verticalidade, a coerência, a coragem cívica, a honestidade intelectual e pratica de quem se junta por nós todos - também conta.

Destaco, assim de repente, os seguintes excertos:

Depois destes três anos angustiantes para a maioria dos portugueses, há que recuperar o país. Há que descartar as dissensões de Esquerda desnecessárias, de modo a ser viabilizada uma convergência quanto ao rumo de Portugal e ao seu lugar na União Europeia. Há que combater todo o conformismo e subserviência para, em vez disso, serem desenhadas alternativas concretizáveis que respondam aos múltiplos problemas do país, que são alarmantes.

Em Portugal, esta ruptura só poderá ser iniciada com um pólo do vontades que mostre uma alternativa concreta, um leque de governantes capazes de cumprir um compromisso para refundar a política em termos do bem comum, com uma governação plural na sua composição, partidária e também independente, com pessoas livres de interesses pessoais e de grupo, mas convergindo nesse compromisso.

Algo novo requer uma política nova. É exactamente isto que exigimos: uma refundação da política para responder aos problemas do país. Sem perdas de tempo, sem divisões, sem demagogia. Queremos soluções e contribuiremos activamente para o seu debate.

Tantos têm, tantas vezes, a tentação de olhar para estes textos e começar logo à procura de coisas com que não concordam. Não tenho essa atitude. Estou, e acho que precisamos de estar, noutra posição: vamos conversar com todos aqueles que, sentimos e sabemos, estão na mesma pulsão cívica que nós. É com base nas diferenças que podemos construir algo melhor.

Ler na íntegra: "Manifesto por um país"

a decisão marca a hora.


"A decisão de António Costa foi corajosa e foi patriótica", Maria do Céu Guerra, ontem na Aula Magna, em Lisboa.

25.9.14

testemunho.



Quem me conhece sabe que a política, esse assunto do viver em comum entre cidadãos, nunca deixou de me interessar. Quem me conhece sabe, também, que, há décadas, não tenho actividade política militante regular. As duas coisas significam uma só: a política é, para mim, actividade cidadã. Isso mesmo e só isso. Não vejo a política como profissão, nem como carreira.

E, mesmo assim, sou militante socialista há décadas, desde que completei 14 anos. Em todo esse tempo, nunca deixei de dizer aquilo que entendi dever ser dito; nunca alienei a minha liberdade. No PS, não corro a apoiar este ou aquele. Para não falar de coisas mais antigas: quando Sócrates se apresentou, não o apoiei (embora me tenha, depois, insurgido vivamente contra a campanha de ódio que lhe foi movida e tenha defendido muitos aspectos das suas políticas). Quando Seguro e Assis se apresentaram como alternativa, não apoiei nenhum deles. Talvez por conhecer ambos desde a  juventude. Sou um pouco cínico em relação à política que existe, embora tente ser cuidadoso para nunca criticar os outros da perspectiva de que eu faria melhor (porque abomino essa perspectiva, especulativa e presunçosa, que tantos treinadores de bancada adoptam). Prezo muito a minha liberdade de opinião e pratico essa liberdade (a ponto de, há algum tempo, ter tido de informar um amigo de que não sou independente, por ele me ter assim classificado publicamente) e isso é facilmente incompreendido, porque há sempre gente a julgar que eu devo solidariedade a isto ou àquilo e a julgar que “excessiva” liberdade de opinião é falta de solidariedade.

Sinto, como muitos outros portugueses tão comuns como eu, um pesado desencanto com a política. Porque acho que a política está muito dominada por dinâmicas não democráticas e opacas. Porque acho que há falta de mais gente genuína e faltam mais comportamentos livres na política. Porque sinto que há uma “classe política” que desenvolveu características de grupo virado para si próprio e com muitos dos seus elementos a perder aderência à realidade concreta das pessoas. E, ao mesmo tempo, acho de enorme injustiça que sejam desconsiderados tantos e tão bons políticos, homens e mulheres que trabalham com denodo pelo bem comum, enfrentando demasiadas vezes o desprezo até daqueles que mais beneficiados são pelo seu trabalho. E, confesso com uma certa vergonha, não tenho apetência nenhuma para ter de suportar a incompreensão grave de que são alvo os nossos políticos, alvo de tanto populismo e de tanta demagogia.

A quem, como eu, preza tanto o seu distanciamento pessoal em relação ao poder, e a consequente liberdade, pode perguntar-se, como efectivamente me perguntaram, a propósito do meu determinado apoio a António Costa: por que te meteste tão claramente nesta história das Primárias do PS? Até me perguntaram: voltaste à política? Eis, no que segue e para terminar o meu empenhamento nesta campanha que está a findar, a resposta.

Creio que a democraticidade genuína desta república corre o risco de desagregação, por descrédito do sistema junto do povo. Vejo que, face à terrível situação económica e social que vivemos, precisamos – mais do que nunca – de política a sério. Vejo poucas pessoas que, em diferentes campos, sejam capazes de compreender o mundo e sejam capazes de agir com sabedoria e determinação, com sentido do concreto, com sentido das instituições democráticas, com capacidade para se focarem nos problemas a resolver sem se deixarem atropelar por preconceitos, mas valendo-se de valores claros e firmes para navegar nas águas mais revoltas sem perder o rumo. Temi que, a continuar como estava, o PS fosse um factor acrescido dessa desagregação, por incapacidade para fazer a diferença necessária. Neste quadro, acolhi com esperança a disponibilidade de António Costa para meter mãos à obra de construir outro caminho com o PS a pensar em Portugal. Por isso quis estar presente nestas Primárias. Isto não foi um “regresso à política”: isto é mesmo como eu vivo sempre a política, como um cidadão militante.

Muitos dizem que apoiam este ou aquele por amizade ao candidato. Não sou assim. Não deixo de ser amigo de ninguém por banais divergências políticas, mas também não apoio ninguém em política por amizade. O mesmo, agora, com António Costa: tenho-lhe amizade, mas não é por amizade que o apoio. Aliás, tudo no ciclo longo dos nossos percursos de vida tenderia para o diagnóstico de que eu seria o mais improvável dos seus apoiantes. Aliás, quando, há semanas, o Expresso escreveu que eu era o mais antigo conselheiro de Costa, houve, entre os amigos e camaradas que nos conhecem bem, uma gargalhada que se terá ouvido em Marte, de tal modo essa afirmação era, efectivamente, risível, por demonstrar uma completa incompreensão da nossa arqueologia (dos nosso desencontros passados).

Dito isto, é simples a explicação para eu me ter empenhado como empenhei na campanha de António Costa: senti que o País precisa de uma nova energia, de uma nova atitude política menos conflitual e mais construtiva, senti que António Costa é necessário para fazer do PS o factor de mobilização que Portugal precisa, senti a responsabilidade do momento e, não querendo ficar mal com a minha consciência cívica, alinhei neste “Mobilizar Portugal”. E não o fiz por amiguismo, já que o amiguismo é coisa que não consigo compreender racionalmente na política. Creio que valeu a pena. Creio que, fruto da participação de milhares como eu, no dia 28 de Setembro teremos uma esperança renovada na democracia e na possibilidade de desenvolver Portugal.

Agora, falta votar. 


24.9.14

as vistas curtas da hipocrisia dos políticos "sérios".


Ana Gomes é deputada europeia eleita nas listas do PS.
Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, Ana Gomes não deu nenhum sinal entendível de estar agastada com as escolhas do secretário-geral, António José Seguro, relacionadas com essa candidatura e eleição.
Por escolha de Seguro, António Vitorino foi mandatário nacional da candidatura às europeias.
Repito: não vi Ana Gomes fugir horrorizada dessa candidatura, que tinha em Vitorino o seu principal representante legal.
Passado pouco tempo, Ana Gomes, em nome da campanha tresloucada de Seguro contra os bandidos socialistas, parece ter descoberto qualquer coisa em António Vitorino que ainda há poucos meses ela ignorava. Essa descoberta aconteceu logo após Vitorino declarar o seu apoio a Costa. Uma coincidência temporal dos diabos.
Será isso?
Ou será apenas hipocrisia política?
Alguém explica à senhora deputada que "isto" não é o velho MRPP?


a quem me pergunta se gostei do debate de ontem.



A quem me pergunta se gostei do debate de ontem, a resposta é: não, não gostei. Os socialistas e o país mereciam outro debate.

Aliás, o debate de ontem, se preciso fosse, justificou plenamente a falta de entusiasmo de António Costa por estes confrontos com António José Seguro. Costa sabia que a estratégia de Seguro era a estratégia da lama: se eu lançar lama sobre o outro, o outro tem de escolher entre sujar as mãos para limpar o casaco ou aceitar ficar sujo. Se Costa optasse por não responder, Seguro viria dizer que quem cala consente. Assim, o que Seguro conseguiu foi envolver Costa em algo muito próximo de uma peixeirada. Se um líder da direita, digamos Passos Coelho ou Portas, apresentasse num debate com um líder do PS o estilo apresentado ontem por Seguro, todos os socialistas (e nem só) achariam esse comportamento de uma inqualificácel baixeza política. Que seja o secretário-geral do PS a fazer isso a outro socialista, só torna as coisas piores.

Dito isto, temos de reconhecer que a estratégia de Seguro para o debate de ontem resultou: conseguiu, ajudado pela forma "escolar" como o jornalista começou o encontro (perguntinhas de escopo estreito, iguais para ambos os debatentes), dar a ideia de que não há diferenças políticas entre ambos e, a partir daí, lançar-se na sua estratégia da vitimização e do insulto. Costa resvalou várias vezes para essa vala. Eu percebo: quem não se sente não é filho de boa gente. Mas esse era o terreno de Seguro e Costa não conseguiu evitar o impulso para defender a sua própria honra. Percebe-se bem a estratégia de Seguro: aquele debate em que Seguro prescindiu do ataque pessoal soez (o segundo debate), foi o debate em que Seguro foi esmagado e onde mais se notou quão frouxa é a sua preparação e quão pesada é a sua inconsistência. Seguro, ontem, mostrou que pode descer mais baixo do que podíamos imaginar - mas deve estar muito contente por ter puxado Costa para o seu terreno de discussão. Como disseram vários comentadores, Seguro suicidou-se em directo - mas Seguro deve estar contente porque guardou uma bala para Costa. É sabido, e é outro ditado popular: quem se mete com crianças, borra-se. O que tudo isto dá que pensar é o seguinte: como chegam estas personagens ao topo da República portuguesa (sim, porque ser líder do PS é um trabalho de altíssima responsabilidade na República) ?

É isto que interessa nas Primárias do PS? Não, não é.
O que interessa é que António Costa tem provas dadas a pensar e a fazer, em lugares difíceis e relevantes, enquanto António José Seguro é há décadas um político de gabinete. Começaram ambos como ministros de António Guterres e, enquanto nos lembramos de vários serviços prestados ao país por António Costa, não temos ideia de nada que António Seguro tenha feito na vida pública que não tenha sido gerir os próprios mecanismos internos da política.
O que interessa é que António Costa enfrenta situações e resolve problemas, juntando as mais inimagináveis coligações de vontades para fazer o que há a fazer, enquanto António Seguro se revelou incapaz sequer de manter unido o seu próprio partido, quanto mais mobilizá-lo.
O que interessa é que, enquanto António Seguro tira "bombas" da cartola para animar uma campanha, sem qualquer noção da responsabilidade institucional (fazer um agendamento potestativo no parlamento para discutir um papelucho vago sobre reformas políticas do país, sem sequer saber se o seu próprio partido as apoia e sem consultar os órgãos do partido sobre isso), António Costa não cede à tentação do espectáculo e não inventa propostas: apresentou umas Grandes Opções de Governo (que a maioria dos comentadores, em vez de criticar responsavelmente, faz de conta que não existem, para poder dizer que não tem proposas concretas) e assumiu que maior concretização terá de sair do trabalho colectivo de socialistas e simpatizantes, sem invenções apressadas para servir de fogo de artifício.
O que interessa é que, embora António Costa sublinhe que é natural não haver profundas diferenças programáticas entre dois candidatos do PS, há diferenças na marcação de certas prioridades (por exemplo, na questão da precariedade laboral e na questão da negociação colectiva) que revelam diferentes capacidades para perceber o que realmente tem impacte na vida concreta das pessoas.

Por que é que não gostei do debate de ontem? Porque António Seguro conseguiu evitar que se chegasse à discussão das diferenças políticas de substância. Que não são rasgões ideológicos profundos - são ambos do mesmo partido - mas são importantes para perceber o debate que atravessa a social-democracia europeia.
Ainda ninguém se deu ao trabalho de olhar para as Primárias do PS na óptica da crise da esquerda democrática europeia. Seria interessante fazê-lo, porque aí se perceberia que as questões de método são essenciais à compreensão do papel dos democratas hoje. Implícito no refrão de "Mobilizar Portugal" (e explíctio na moção política) está um ponto de método: fazer política com cidadãos participativos, respeitando as instituições, devolvendo democraticidade à democracia, devolvendo a política à comunidade de cidadãos, em vez de encarneirarmos num qualquer pensamento único. Isto é essencial e está no cerne do método político que António Costa tem praticado há muitos anos na vida pública. Esta mensagem tem valor e relevância muito para lá das fronteiras do PS e das fronteiras do país. A estratégia da lama, de que Seguro lançou mão nesta campanha para salvar o lugar a que acha que tem direito, tem impedido que esta análise se faça. O debate de ontem, mais uma vez, não permitiu que se chegasse a este plano da discussão. Por isso não gostei do debate de ontem.

23.9.14

o político sério é o político que não se ri?!




Qual é o político português que assentou toda a sua carreira em dizer que é o mais sério de todos e que ele não é político, políticos são os outros (malandros) ?
Obviamente, Cavaco Silva.
Nem preciso recordar quão ridículo isso é.
Não preciso recordar? Se calhar estou enganado. Se ainda há políticos de esquerda que optam pela cartada de dizer mal dos políticos (por exemplo, deputados quantos menos melhor) e que pretendem ser mais sérios do que os outros... se calhar ainda é preciso recordar onde essa conversa nos pode levar.
Ah, e não pensem que o populismo e a demagogia só fazem mal à direita. Fazem mal a todas as famílias onde entra esse vírus da irresponsabilidade.

22.9.14

Seguro e as inverdades com rabo de fora.




Está a decorrer um jantar de socialistas apoiantes de António José Seguro e, segundo relata em directo um amigo meu que lá está (apoiante de Seguro), o mandatário nacional, Manuel Machado, terá dito há pouco: "O golpe palaciano que Antonio Costa desencadeou no dia a seguir às eleições ... permitiu à direita disfarçar a derrota que sofreu...".
Caramba, ainda não largaram a narrativa de reduzir a magna questão política da alternativa a "um golpe"? Ainda não perceberam que "golpe" seria o que o PS receberia se continuasse a fazer de conta que tudo estava bem? Ainda não entenderam que agora é que a direita está com medo do PS que aí vem?
Faz-me confusão que seja difícil de entender o seguinte: António Costa chegou-se à frente porque muitos socialistas, muitas pessoas dentro e fora do PS, entendiam que o PS como estava não dava a resposta que o país espera. Pode estar certo ou pode estar errado, é legítimo ter opiniões diferentes. O que não é aceitável é confundir essa questão política com um "golpe", muito menos um golpe palaciano. Afinal, o discurso da "traição" e da "deslealdade" continua.

Esta forma de colocar as coisas não é obra dos apoiantes de Seguro. É orientação do próprio secretário-geral do PS. Mas é uma hipocrisia. Uma versão recente dessa hipocrisia tem a seguinte forma: Seguro pergunta a Costa porque não se candidatou no congresso anterior, Seguro pergunta a Costa porque "rasgou o acordo" contido no chamado documento de Coimbra. Ora, a resposta é o próprio comportamento de Seguro: foi ele que desprezou os esforços feitos para alcançar a unidade.

Quando, no princípio de 2013, o descontentamento com a prestação do PS levou António Costa a ponderar candidatar-se a secretário-geral, tudo acabou naquilo que geralmente foi entendido como um acordo para manter as hostes unidas até às próximas eleições legislativas. António Costa, perante os alertas de que uma disputa interna poderia fragilizar eleitoralmente o partido, assumiu o ónus de optar pelo apaziguamento e dar o seu apoio a Seguro. Para se conseguir esse acordo foi preciso negociar, isto é, essa coisa singela de se trocarem propostas à procura de um texto que pudesse ser largamente aceite como base da futura estratégia. Esse processo resultou naquilo que veio a chamar-se “documento de Coimbra”, apresentado numa reunião da Comissão Nacional realizada naquela cidade a 10 de Fevereiro de 2013.

O que se passou, então, foi realmente premonitório. Seguro, em lugar de anunciar ao país o que se tinha realmente passado, valorizando o acordo alcançado entre dirigentes que tinham antes discordado; em lugar de valorizar a negociação e a aproximação de posições, coisa positiva num partido plural; em lugar de dar o devido destaque ao contributo de António Costa para esse acordo, porque Costa foi realmente o apaziguador naquele processo – em vez disso, Seguro veio fazer de conta que tudo aquilo era um processo centrado na sua pessoa, uma espécie de soberano individual que tivera a amabilidade de ouvir uma pluralidade de vozes, de dentro e de fora do PS, e que escrevera por sua alta recreação um texto com as conclusões da sua reflexão magnânima.

Seguro disse mais ou menos isto: Acordo? Isto não resulta de acordo nenhum. Negociação? Não, eu não negociei com ninguém. Eu ouvi várias pessoas, tive conversas sobre a vida do partido e tirei estas conclusões que aqui tenho. O documento é a expressão da minha convicção e do que eu considero melhor para o PS. Ah, sim, também o António Costa deu contributos, pois.

Esta “explicação” tinha, desde logo, um problema: era mentira. Mas, politicamente, este desempenho teria consequências desastrosas na vida política do PS. Porque a direcção do PS continuou a afunilar a sua intervenção focada na meta propagandística de projectar Seguro como um grande líder, que apenas aceitava rodear-se de quem não parecesse fazer-lhe sombra, em manifesto prejuízo de um alargamento das vozes que dessem expressão à pluralidade do partido e provassem ao país que ali havia um núcleo de uma alternativa de governo.

O vídeo que deixo no início denuncia directamente a hipocrisia com que AJS tem tratado deste assunto.

Para apreciarem melhor como AJS, afinal, criou todo este problema com a sua atitude arrogante, deixo-vos um vídeo desse dia 10 de Fevereiro de 2013. Na altura, expressei neste blogue o meu desagrado com esta actuação. Eu tinha razão: esta actuação de António José Seguro prenunciava um estilo de soberano individual cercado de vozes que ele se dispõe a ouvir de modo mais ou menos inorgânico. O problema é que esse estilo talvez seja útil noutro tipo de organizações, mas não num grande e plural partido da esquerda democrática como é o Partido Socialista. Assim, uma “Moção Política Grandes Opções de Governo” apresentada no modo “Eu”, não é afinal tão inesperada como isso. Vinda de quem vem, é um estilo que estava prometido.



19.9.14

agendamentos potestativos.



Eu gostava era de ver um agendamento potestativo sobre, por exemplo, combate à precariedade no trabalho.
E, mesmo assim, não queria que isso fosse feito à revelia do grupo parlamentar e do partido.

Combater a precariedade no mercado de trabalho.



17.9.14

levar os políticos a tribunal.

15:19

A coluna de Rui Tavares no Público hoje começa assim:

Quando Léon Blum foi preso — a 15 de setembro de 1940, fez anos há dias —, a acusação que a direita pétainista fez a este antigo primeiro-ministro da Frente Popular foi, basicamente, a de ter ampliado o estado social.
É difícil acreditar, mas Blum foi considerado culpado de ter instituído a semana das 40 horas de trabalho, ter criado as férias pagas, ter aceitado a atividade sindical e permitido propaganda política aos trabalhadores. Com estes quatro “crimes” (a que se juntou um quinto, o de ter nacionalizado a indústria de armamento) Blum foi entregue aos alemães e preso em Buchenwald. Como, além de socialista, era judeu, passou a menos de dois dedos da morte.

Deixo este elemento à reflexão de quantos se batem por "levar políticos a tribunal" por actos políticos. Não estou a falar de levar políticos a tribunal por crimes tipificados na lei: os políticos não devem ter nenhum privilégio indevido, os políticos não devem ter nenhum privilégio que não seja necessário à liberdade da representação. Mas os actos puramente políticos, concordemos ou não com eles, não podem ser misturados com os tribunais criminais. Até porque, na verdade, muitos dos que clamam por isso só se atrevem a tal porque nunca tentaram decidir nada de relevante em condições de incerteza. Este exemplo vindo da história, sendo extremo, deve ajudar a compreender o ponto: como a justicialização da política pode servir o totalitarismo.

estar à janela, ou à varanda, ou lá o que é (mesmo sem ser presidente de câmara).

10:02

16.9.14

populismos.

18:29

Uma das tarefas urgentes para o tempo que aí vem será pensar o populismo. Vai ser preciso ser mais rigoroso na identificação do populismo. Porque haverá vários. Porque não serão todos iguais.

Começo por aqui:

Na essência, as armas do populismo são duas. Primeira, propalar falsas soluções fáceis e rápidas para problemas que só têm saídas complexas, demoradas e delicadas – desse modo dificultando o diagnóstico sério dos problemas, a formulação de respostas exequíveis e a convergência das forças necessárias para implementar as políticas adequadas. A segunda arma do populismo consiste em desacreditar a política desacreditando os políticos, fazendo crer que qualquer comportamento menos ético ou menos responsável de um agente político é uma característica geral da “classe política”.

Cada vez mais é importante perceber que os políticos não são todos iguais.

qual é a pressa? take 50

14:45

Em 2012, no tradicional jantar de comemoração do 5 de Outubro em Alenquer, António José Seguro anunciou que, até ao final desse ano, o PS apresentaria uma proposta de alteração da lei eleitoral para a Assembleia da República (cf. aqui). Parece que 2012 nunca mais acabava, porque a proposta nunca mais aparecia.

Finalmente, hoje, 16 de Setembro de 2014, o ano de 2012 pode acabar. Uns dias antes das eleições primárias no PS, "Líder do PS apresentou propostas de alteração à lei eleitoral do Parlamento e ao regime das incompatibilidades dos deputados", segundo leio no Público.

O uso do cargo que desempenha no partido para abrilhantar a sua campanha para as primárias é um expediente que deveria surpreender-nos. Infelizmente, já não surpreende, por já termos percebido que António José Seguro deixou de ser capaz de distinguir entre o lugar institucional de secretário-geral e o seu papel de candidato nas primárias. Já tinha dado mostras disso quando se apropriou das propostas do Partido (designadamente as "80 medidas") e as transformou em "anexo" à sua moção a estas primárias, sem para isso ter pedido autorização a qualquer um dos que deram contributos para as propostas do partido e não o apoiam agora nesta eleição.

Quanto ao conteúdo da dita proposta, transcrevo aqui as palavras de Ascenso Simões no FB: « Estava muito esperançado na iniciativa de Seguro relativa à nova lei eleitoral para a AR. Eu concordo com a redução do número de deputados mas garantindo a proporcionalidade. Também gostava de saber como conjugar a proposta de duplo voto com os círculos uninominais. E, por fim, gostava de saber quais eram os círculos. Afinal Seguro voltou aos velhos dias da sua liderança - a nova proposta é aberta, um vamos estudar e vamos falar com os outros partidos. Um projeto de resolução e não um projeto de lei. Nada como ter que concretizar para se confirmar que a mudança de estilo só é para inglês ver.
Uma decepção.»

Infelizmente, as decepções acumuladas deixam de ser decepções. Passam a ser apenas confirmações.

15.9.14

postalito ao "Sobe e Desce" do Público.


Na última página do Público de hoje, secção Sobe e Desce, apresentam-nos uma seta vermelha, para baixo, sobre Costa e Seguro. A acusação a António Costa é: "tinha por hábito recusar o anúncio de promessas, mas ontem fez o salário mínimo disparar para 522 euros". E depois escreve-se, em tiro contra ambos os candidatos: "As eleições aproximam-se e nota-se no ar a ansiedade. O que, como se sabe, não é augúrio de sensatez."
Ora, vejamos.
O "anúncio" de começar a discutir o salário mínimo na base de 522 euros para 2015 não foi feito por AC ontem, como escreve o jornalista que redige a nota. Essa proposta foi tornada pública, por escrito, a 12 de Agosto, quando AC apresentou, em conferência de imprensa no Largo do Rato, a sua moção de Grandes Opções de Governo. Esteve um jornalista do Público nessa ocasião. Passado mais de um mês, parece que a redacção ainda não assimilou a informação.
Talvez a dificuldade maior (de compreensão) esteja, não no montante, que é um número com apenas três algarismos, mas na razão dessa proposta. A benefício de quem tem de escrever apressadamente sobre coisas que não teve tempo de perceber, transcrevo o excerto da moção de António Costa que explicita e explica essa proposta:

O reforço da concertação social deve permitir definir uma política de rendimentos numa perspetiva de Trabalho Digno - e, em particular, garantir a revalorização do salário mínimo nacional. É urgente recuperar a capacidade política de diálogo social que permitiu a um governo socialista celebrar em 2006, pela primeira vez em Portugal, um acordo tripartido sobre o salário mínimo. Este acordo, que garantiu uma subida histórica em termos reais, previa que o salário mínimo atingisse os 500 euros em 2011.

Em 2010, a crise económica impediu o cumprimento integral do acordo, pelo que ao longo de todo o programa de ajustamento o salário mínimo manteve-se congelado nos 485 euros. Mesmo depois da saída da Troika, o governo PSD/CDS tem recusado juntar-se ao consenso que existe entre parceiros sociais sobre a necessidade de aumentar o salário mínimo.

É urgente recuperar o tempo perdido e garantir aos trabalhadores uma valorização progressiva do seu trabalho, conciliando o objetivo de reforço da coesão social com o da sustentabilidade da política salarial. Se o salário mínimo nacional tivesse sido aumentado para 500 euros em 2011, e posteriormente ajustado a evolução da inflação desde então, seria de 522 euros em 2015. O Partido Socialista defende, por um lado, que 522 euros deve ser o valor de referencia para o aumento do salário mínimo no próximo ano e, por outro lado, que é fundamental construir com os parceiros sociais um novo acordo de médio prazo que defina os critérios e uma trajetória para o aumento do salário mínimo nos próximos anos.

Portanto, e em resumo: a proposta não é de ontem, é pública e por escrito há mais de um mês. A proposta tem uma razão básica: recomeçar a negociação na base do respeito por um acordo que foi negociado livremente pelas partes e que foi ignorado (indevidamente) nos últimos anos. A proposta tem um fundamento claro: temos de passar a funcionar numa perspectiva de Trabalho Digno - e o salário mínimo é um elemento dessa orientação. Trabalhar tem de valer a pena.

Claro que, se fosse possível dar melhores condições de trabalho aos jornalistas, talvez todos tivessem tempo de reflectir melhor no que têm de escrever. Também os jornalistas devem ter direito a Trabalho Digno. Precisamos todos disso, até para termos menos "pérolas" nos jornais que pagamos para ler.




14.9.14

Grandes opções de governo para mobilizar Portugal.



Reproduzo aqui o artigo que publiquei no Expresso de 6 de Setembro passado.

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As Grandes Opções de Governo apresentadas por António Costa às primárias do PS assentam em três pilares: uma Agenda para a Década, um Programa de Recuperação da Economia, uma nova atitude de Portugal na Europa. Deixo sublinhados dessa proposta.

Após um governo que adotou como método político a divisão entre portugueses e o conflito institucional, a Agenda da Década será um instrumento para construir compromissos mais profundos do que as naturais divergências entre governo e oposição numa legislatura; congregar esforços, dos partidos e dos parceiros sociais, em objetivos de longo prazo que resistam às mudanças de governo – porque transformações significativas requerem coerência e persistência. É preciso tornar claro que esta é uma proposta de mudança profunda da cultura política nacional. Uma elevação da qualidade da luta política que António Costa já demonstrou querer e saber fazer.

Outro pilar da visão que António Costa propõe ao país é uma resposta de emergência ao estado a que Portugal chegou: o Programa de Recuperação da Economia. Enuncio a sua arquitetura fundamental. Por um lado, mobilizar a iniciativa empresarial, dando-lhe os sinais certos. Primeiro, identificar atividades económicas prioritárias, selecionadas pela sua elevada capacidade de promoção do emprego, pelo impacto positivo nas relações económicas com o exterior (aumentando exportações e/ou substituindo importações), por reforçarem uma economia ambientalmente sustentável. Depois, criar condições para concentrar os esforços nessas atividades priorizadas, onde um “Estado promotor” do desenvolvimento combina bem com a iniciativa privada, designadamente incrementado fatores de competitividade empresarial efetivos (como um ambiente de negócios desburocratizado e com custos de contexto reduzidos), assumindo funções estratégicas na ligação entre a investigação científica e tecnológica e a inovação empresarial, acrescentando uma visão do bem comum à (legítima) procura de valor por parte dos privados.
Mas a recuperação da economia só ganha o seu melhor significado no quadro da construção de uma sociedade decente. Para substituir a incerteza paralisante pela confiança, o Programa aposta num conjunto de linhas de ação articuladas e orientadas para a dignificação do trabalho, entre outras: reforço da concertação social, relançamento da negociação coletiva sectorial, combate à precariedade laboral, recuperação da estabilidade das prestações sociais, combate prioritário à pobreza infantil e juvenil.

A proposta nova atitude na Europa reafirma objetivos e propõe um método: escorar a nossa posição europeia em compromissos internos alargados, explorar as disposições dos tratados que nos são favoráveis, estabelecer alianças de geometria variável com países com interesses objetivos convergentes, negociar sempre e manter o rumo. Quem tem experiência de negociação europeia sabe que prometer milagres é estultícia – tanto como desistir antes de tentar, como tem feito o governo PSD/CDS.

Resta-me sugerir a leitura das duas moções apresentadas às Primárias do PS.


13.9.14

Surpresas nas primárias do PS.


Reproduzo artigo que publiquei no jornal "i" na primeira semana de Setembro.



SURPRESAS NAS PRIMÁRIAS DO PS


As próprias primárias são uma surpresa: A. J. Seguro, que as combatera porque elas seriam “reconhecer que o partido não funciona”, matavam o debate político interno e desqualificavam os militantes – converteu-se subitamente. Por razões particulares (para resolver um problema interno, como explicou na TV), o que é pena.

É uma surpresa a moção que AJS apresenta às primárias. Não tanto por serem 5 páginas e meia, vagas, mas por serem umas Grandes Opções de Governo na primeira pessoa do singular: Eu penso, Eu faço. Um estilo de soberania estranho à tradição de um partido republicano da esquerda democrática.

É uma surpresa que, para suprir a magreza da moção, AJS diga que o Contrato de Confiança e as famosas “80 medidas”, apresentadas antes em nome do PS, fazem agora parte da sua proposta: apropriar-se, como candidato, do património do partido, e dos contributos de muita gente que não foi ouvida nessa apropriação, é inédito. E denota um vício que corrói a democracia: a confusão entre as instituições e os agentes individuais. A visão de Hobbes acerca do corpo político foi assimilada com demasiada pressa.

É uma surpresa que AJS tenha feito convocar primárias, que só podem fazer sentido se refrescarem a nossa democracia, e (des)aproveite a ocasião apresentando como base do programa de um governo do PS um documento divulgado antes das passadas eleições europeias. Em tempos de incerteza, por exemplo no contexto europeu (nova Comissão Europeia, novo Parlamento Europeu, avolumar do perigo de deflação agigantado pelos dados mais recentes), o mundo avança e nós paramos com a desculpa de uma retórica de “coerência”?

É uma surpresa que AJS insista na excelência das tais 80 medidas como base de uma futura governação: a par de propostas válidas, lemos lá puras vacuidades. Exemplo: as últimas 5 são, supostamente, as "opções geoestratégicas" para Portugal. Mas o que lá se diz é mais ou menos isto: somos membros da ONU, da UE e do Euro, da CPLP e da NATO, somos um país aberto ao mundo. Que “medidas” são estas? Numa só frase, sobre a lusofonia, diz mais a moção de António Costa quanto à política externa de Portugal, quando propõe a carta de cidadania lusófona e avança com o seu conteúdo. Atente-se o estado a que chegámos na CPLP e logo percebemos a importância da questão.

É uma surpresa que as 80 medidas passem quase em silêncio questões tão relevantes como a precariedade no trabalho ou a contratação coletiva. Nenhuma menciona sequer a precariedade no mercado de trabalho. Já a moção de António Costa explica com detalhe as medidas de combate decisivo à precariedade. Nas 80 medidas, a contratação coletiva é mencionada apenas no sexto item da Medida 33: «Valorização da contratação coletiva, como quadro adequado para a promoção da melhoria da produtividade nos diferentes setores.» Então, mas esse instrumento só importa para promover a produtividade? Não, a contratação coletiva é a forma de transformar uma relação de poder, à partida desfavorável ao trabalho, numa relação mais equilibrada, onde as partes podem falar de igual para igual. A moção de António Costa assume a centralidade da questão e é bastante específica sobre o que há a fazer para que a negociação coletiva sectorial atraia tanto os empresários de progresso como os trabalhadores.

Sem surpresa nenhuma, os que clamam “traição” e “deslealdade” contra os que discordam dirão que este texto é um ataque pessoal. Não é: é um ataque político. Um ataque político contra os que põem os calendários partidários à frente das urgências do país. Contra os que são mais vigorosos a discordar dos camaradas do que a discordar do governo. Convido à leitura integral das duas moções apresentadas às Primárias do PS. Confio no juízo daí resultante. Além disso, Costa e Seguro foram ambos ministros pela primeira vez nos governos de Guterres. Se compararmos o que cada um fez desde então, e como o fez, talvez, afinal nada disto seja uma surpresa.

(Publicado aqui.)

12.9.14

Contratos incompletos e as primárias do PS


No passado Sábado, 6 de Setembro, publiquei no Público um artigo com o título acima. Reproduzo aqui esse texto. Aproveito para lembrar que, contrariamente ao que constava na publicação, eu não sou "autor da moção de António Costa"; fui, simplesmente, coordenador da redacção da moção.


CONTRATOS INCOMPLETOS E AS PRIMÁRIAS DO PS

As Grandes Opções de Governo apresentadas por A. Costa e A. J. Seguro trouxeram novas chaves de leitura às Primárias do PS. Não estando em curso uma refundação programática, encontramos aí pontos de convergência, a par de diferenças assinaláveis entre as duas moções. Não podendo analisá-las aqui, sugiro a leitura de ambas e sublinho outro aspeto da questão.

As moções são uma espécie de contrato entre forças políticas e os cidadãos. Ora, para perceber o que está em causa é importante reconhecer que todos os contratos são incompletos. Para ser completo, um contrato deveria estipular ex ante um conjunto completo de regras comportamentais de aplicação ex post capazes de resolver exaustivamente todos os problemas que pudessem surgir na implementação. No mundo real, todos os contratos são incompletos: porque nunca podemos antecipar completamente a estrutura das questões que podem surgir no futuro, certas regras darão resultados inesperados e serão mudadas, circunstâncias novas exigirão normas novas, surgirão diferentes interpretações dos compromissos assumidos e novas preferências dos agentes. Só uma visão mecanicista do mundo social poderia convencer-se de que basta um contrato (um programa) para firmar uma relação sustentável numa comunidade política. A necessária relação de confiança tem de ser suportada, além disso, no método e na história pública dos seus portadores.

E, aí, o que António Costa (AC) apresenta ao país é muito distintivo.

Primeiro, quanto ao método. Já foi assinalado que um dos pilares da estratégia de AC é um Programa de Recuperação da Economia, focado em atividades económicas priorizadas pela sua elevada capacidade de promoção do emprego, impacto positivo nas relações económicas com o exterior e reforço de uma economia ambientalmente sustentável. O que tem sido menos sublinhado é que, na proposta de AC, a recuperação da economia aparece claramente articulada com a construção de uma sociedade decente. Daí a atenção detalhada à dignificação do trabalho, à revalorização da concertação social, ao relançamento da negociação coletiva sectorial, ao combate decidido à precariedade no trabalho, à recuperação da estabilidade das prestações sociais, a uma estratégia de combate à pobreza infantil e juvenil. Como socialista, entendo que esta articulação faz toda a diferença.

Ainda quanto ao método: é notório o desassombro com que AC coloca de forma nova o problema da governabilidade à esquerda, mas tem sido menos escrutinada a sua proposta de uma Agenda para a Década. Não falo aqui pelo conteúdo, mas pela dinâmica implícita. Assumido que a próxima legislatura será de rutura com a atual governação, há que assumir também que o país precisa de convergências estratégicas a mais longo prazo, nas quais se revejam duradouramente a esmagadora maioria dos portugueses. Sem isso nunca seremos capazes das transformações mais pesadas e demoradas, como a qualificação das pessoas, das organizações e do território. E, corolário, o país precisa de ultrapassar o clima político de confronto permanente, civilizar os debates, reconhecer que as divergências são mais salutares numa democracia assente numa rede de convergências fundamentais, partilhadas à esquerda e à direita. A proposta de uma Agenda para a Década, como método político, fará toda a diferença, permitindo encontrar uma nova combinação entre mudança e estabilidade numa democracia madura.

Para o contrato político proposto conta igualmente a história pública dos seus portadores. Deixemos o falso pudor: é preciso comparar os protagonistas. AC foi o ministro do Simplex: será preciso sublinhar a importância de termos governantes que, em lugar de desorganizarem o Estado, sejam capazes de o modernizar na ótica do serviço às pessoas e às atividades? Como presidente da CML, a partir de uma manta de retalhos política (lembrar como estava dilacerada a área política do PS, e como estava em dificuldades a câmara, aquando da sua primeira eleição), AC construiu uma maioria alargada e plural, que tem dado à cidade uma governação responsável e progressiva. Em Lisboa se tem mostrado como, mesmo em tempo de crise, a governação pode respeitar a cidadania. Será preciso sublinhar a importância de políticos capazes de agregar vontades diversas para fixar e prosseguir objetivos comuns?

Quando, no início dos anos 1990, governava Cavaco Silva, o excesso de zelo do SEF provocou o escândalo Vuvu Grace (a jovem zairense que chegou ao aeroporto da Portela para visitar o marido com a filha de 6 anos, sendo ambas retidas por não terem bilhetes de regresso), AC não virou a cara. Como advogado, interpôs uma (bem sucedida) providência cautelar. Como deputado, nesses anos em que o cavaquismo dava todos os sinais errados (desalojados de Camarate, dentistas brasileiros, recusa de asilo pedido por razões humanitárias), AC foi um dos que lançaram as bases para uma pacificação da questão da imigração, designadamente através de um aturado esforço de mobilização das comunidades imigrantes para a participação política. Sabemos, olhando para países europeus onde a imigração é fator de graves dissensões, a importância de ter havido entre nós essa coragem e visão. Será preciso sublinhar a importância de termos estadistas que compreendam os grandes desafios do mundo atual e lhes respondam com inteligência global, como António Costa está de novo a fazer, nesta matéria, com a sua proposta de uma carta de cidadania lusófona?

Por tudo isto, digo: percebemos melhor o que está em causa nas primárias do PS se tivermos presente que todos os programas políticos são contratos incompletos, cuja compreensão cabal implica incluir na equação o método e a história pública dos seus portadores.

Porfírio Silva
6 de Setembro de 2014
in Público