13.3.14

as memórias vivas em "Ilusão".


Como saberão alguns, andámos nas últimas semanas envolvidos num projecto do Teatro da Cornucópia: levar à cena o espectáculo "Ilusão", a partir de textos vários do muito jovem Lorca, com encenação de Luis Miguel Cintra (que também participou como actor), envolvendo a demais estrutura-base da companhia, sendo o elenco composto por estudantes e amadores de teatro (com a excepção assinalada). Já por aqui explicámos o projecto, já falámos sobre o sentido do próprio espectáculo, já demos conta da grande experiência que tudo isto representou para quem teve a oportunidade de participar. Para fechar este ciclo de testemunho, deixo agora uma nota sobre o mergulho na memória que nos foi proporcionado por esta experiência.

Uma sociedade sem memória é uma impossibilidade humana. Nós não somos os calculadores racionais que alguns pensam que os humanos são, tomando furiosamente decisões para optimizar o lucro ou alguma vantagem equivalente. As sociedades de humanos são construções históricas, enraizadas numa experiência transmitida e partilhada, cujo respeito é o chão a partir do qual se levanta a possibilidade de mudança e de melhoramento. Este viver dentro de uma memória (que se espera seja dinâmica, não apego ao imobilismo) tem de traduzir-se em muitos processos separados, "regionais", específicos. Mas, em qualquer caso, actualizar a memória faz sempre parte da vida de uma comunidade humana que não tenha sido reduzida à escravatura do imediato sobreviver. Esta "actualização da memória" tomou um aspecto muito concreto nesta levada à cena da "Ilusão". Como? Pois, simplesmente, porque a base material da encenação e dos figurinos foi o reaproveitamento de elementos que já tinham servido espectáculos anteriores. O próprio encenador explicou à comunicação social que o piano vertical que está sempre em cena (e toca) é um elemento que está ali ao serviço desde a primeira peça apresentada pela companhia no Teatro do Bairro Alto (depois de ter sido oferecido por sua avó). Mais do que isso: cada um de nós vestiu algo herdado de outros espectáculos. Pessoalmente, mesmo se esta opção é uma forma de não encarecer o espectáculo (e isso não me choca nada), a circunstância traduziu-se num bonito mergulho na história e na memória da Cornucópia.

Como exemplo deste processo, vou dizer-vos de onde vieram os elementos que, vestindo-me e calçando-me, me ajudaram a compor a personagem "a sombra de Sócrates". (Agradeço à Cristina Reis e ao Luís Santos as indicações que suportam o restante deste texto.)



O que se trata é de identificar por onde andaram antes a túnica, o manto e as sandálias.

A túnica foi usada por Luis Miguel Cintra no espectáculo A Cidade, com base numa colagem de textos de Aristófanes. Esteve em cena no Teatro Municipal São Luiz, entre 14 de Janeiro e 14 de Fevereido de 2010. (Mais elementos no historial da Cornucópia. Eu escrevi sobre esse espectáculo aqui.)


(Fotografia de Pedro Soares)

O manto foi usado por Manuel Romano, no papel de Júpiter, no espectáculo Esopaida ou Vida de Esopo, de António José da Silva (O Judeu). Esteve em cena no Teatro do Bairro Alto entre 11 de Novembro e 19 de Dezembro de 2004. Esteve depois em Faro (2005) e no Porto (2006). (É aqui referido no sítio da companhia.)


Manuel Romano, como Júpiter, na Esopaida. (Fotografia de Luís Santos)

As sandálias foram usadas por João Grosso, no espectáculo Tito Andrónico (William Shakespeare), no papel de Saturnino. Esteve em cena no Teatro Nacional D. Maria II, entre 24 de Junho e 27 de Julho de 2003. É referido aqui no historial da companhia.

João Grosso em Tito Andrónico (Fotografia de Francisco de Almeida Dias)

E assim fomos conduzidos à memória de uma casa com memória. Um privilégio, porque sem memória não há futuro. Porque só com raízes faremos futuro.