A Joana Lopes (entre as brumas da memória), que respeito mas com quem estou frequentemente em desacordo, analisa, numa posta a propósito das últimas eleições ("a força do PCP"), o papel do PCP na contestação a esta apagada e vil tristeza. É um texto no qual vale a pena pensar: vou comentá-lo indo além do que se pode atribuir directamente ao que JL aí explicita.
Joana Lopes (JL) começa por fazer um certo tom de desprezo quando fala de um comentário que, segundo ela, esteve muito presente no rescaldo das recentes eleições autárquicas. O comentário é sobre o PCP e consiste em louvar o seu contributo positivo para "controlar" o protesto e para o manter "dentro do sistema". Aquilo que chamo "tom de desprezo" relativamente aos putativos produtores desse comentário consiste nos mimos que JL lhes dirige (cf. primeiro parágrafo do texto que estou a comentar). Ora, o que interessa é que, se JL despreza os autores do comentário, afinal a mesma JL concorda com a parte factual do mesmo, embora discorde da sua valoração. Isto é: o PCP realmente tem dado um enquadramento institucional ao protesto, mas isso, em lugar de ser bom (como dizem os "comentadores, encartados ou nem por isso", incluindo a "esquerda mole"), é mau, designadamente porque tem redundado num "enquadramento por vezes demasiado rígido das formas de protesto". JL passa depois a explicar que o PCP tem, pois, de ser complementado por outras organizações e iniciativas. Enfim, posto por palavras minhas, o carácter institucional (até legalista) da acção do PCP é visto como obstáculo ao desenvolvimento da luta contra "o sistema".
Nada disto é muito novo, nem muito original. O PCP costuma considerar estas posições como aventureirismos ou esquerdismos que não levam a lado nenhum. Não vale a pena revisitar essa linha de polémica. O que quero aqui dizer é, a meu ver, mais central à própria concepção de democracia. Eu conto-me entre os que valoram positivamente as forças que são capazes de expressar a contestação dentro do sistema. Porquê? Porque eu não concebo nenhum sistema democrático sem contestação, sem diferença, sem alternativa, sem tensão, sem oposição. E como não me consigo imaginar a viver num sistema sem essas forças de contradição, tenho de estar agradecido, como cidadão, a quem dá voz e articulação política ao desacordo e à contestação. Foi esse, aliás, o sentido profundo daquela declaração de Melo Antunes no rescaldo do 25 de Novembro, quando veio dizer, contra os revanchistas de vários quadrantes que sonhavam ilegalizar os comunistas, que o PCP era indispensável à democracia. Quer dizer: um democrata não pode viver bem sem todos aqueles que expressam a diferença dentro da democracia. Porque sem isso não haveria democracia alguma. A estória de "cair fora do sistema" reduz-se aos sonhos gémeos dos que, de um lado, convivem mal com a contestação e dos que, de outro lado, concebem a contestação como mais útil se não contribuir nada para "o sistema". Em qualquer dos lados está a ideia de que a visão dos outros é tão insuportável que nós não queremos que ela conviva com a nossa própria visão.
Pois, para mim, talvez por pertencer à tal "esquerda mole" da expressão da JL, são muito importantes as forças políticas que articulam a dissensão dentro do sistema. É que, sem isso, o sistema seria puramente totalitário. E mais: se estamos como estamos - incapazes de traçar uma estratégia minimamente nacional para sair do atoleiro - devemo-lo em parte aos dirigentes políticos (a começar no PR) que pensam que podem traçar "planos de salvação nacional" excluindo à partida o PCP e o BE e os parceiros sociais na sua pluralidade. Infelizmente, os que concebem a democracia como uma coutada do "arco da governação" encontram um útil aliado naqueles que prezam mais "estar fora do sistema" do que aprofundar a própria democraticidade do sistema.