A notícia é, basicamente, esta: A imagem de Nossa Senhora de Fátima, viajando para Roma, vai «ocupar um lugar como um passageiro» durante a viagem de avião, em vez de ir no porão.
Esta notícia provocou "por aí" (redes sociais, blogosfera) reacções de escândalo ou escárnio. Sendo sério o assunto - quero dizer, sendo sério que este facto provoque estas reacções - deixo aqui uma breve opinião que escrevi noutro lugar. (Declaração de interesses: sou agnóstico.)
Muitas tradições tratam certos objectos como entidades especiais devido ao significado que esses objectos acumularam no processo de partilha de uma história comum das pessoas nessa tradição. Muitas tradições religiosas fazem isto, mas muitas tradições não religiosas não se distinguem delas neste aspecto. Só alguém que despreze profundamente o carácter histórico e simbólico da cultura humana pode espantar-se com isto.
Em nome da "razão", muitas correntes de pensamento desprezam esse carácter histórico (esse carácter institucional) das sociedades humanas. Por exemplo, o chamado "neoliberalismo" em economia comete esse erro, porque pretende que somos "calculadores de oportunidades", egoístas racionais instantâneos, em vez de perceber que somos membros de comunidades com história e tradição. E, como membros de comunidades com história e tradição, partilhamos símbolos e os seus significados, os quais vão sempre muito além da materialidade imediata e míope.
Do ponto de vista do debate interno às religiões, a única questão relevante aqui é a da idolatria. Adorar uma estátua de uma santa pode ser classificado como idolatria, mas esse é um debate interno ao universo religioso. Querer entrar nesse debate a partir de uma posição anti-religiosa é uma pretensão que me escuso a qualificar, para não ter de explicar o meu entendimento do conceito de má-fé.
A nossa sociedade está a ser destruída pelo aviltamento do simbólico. Os símbolos da república estão a ser conspurcados pelo desprezo dos valores republicanos. Algumas pessoas, empurradas por esse generalizado desprezo pelo valor do simbólico, só vêem objectos-sem-nada-mais-que-matéria à sua volta. Merecia um novo ensaio sobre a cegueira.