30.1.13

o que interessa se podemos ou não matar o sinal de trânsito?


No passado dia 24 de Janeiro, foi apresentado no Porto o meu último livro, "Podemos matar um sinal de trânsito?". Foi na Livraria Leitura, Shopping Cidade do Porto. Já aqui deixei a apresentação do livro pela Professora Conceição Soares (Universidade Católica Portuguesa, Porto). Hoje, deixo o vídeo e o texto de base da minha intervenção nessa ocasião.




Há várias leituras possíveis deste livro, leituras a vários níveis (como, aliás, acontece com muitos livros). O próprio autor não lê o livro todas as vezes da mesma maneira. No dia de hoje tenho uma leitura deste livro, uma leitura influenciada pelos tempos que correm; é essa leitura que partilharei agora convosco.
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Wittgenstein termina o seu Tractatus Logico-Philosophicus com a famosa proposição 7, que foi assim traduzida para português pelo Professor Manuel Lourenço: “Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio”. Sem entrar aqui numa interpretação dessa proposição, importante no pensamento do chamado “primeiro Wittgenstein”, sempre quero lembrar-vos que termino este meu livro com o parágrafo 134, talvez o mais curto de todos, mas que contém a minha razão para o ter escrito. Reza assim: “Acerca daquilo de que se não pode ficar em silêncio, tem que se falar.”

Quer pelo título, que alguns já pensaram ser o título de um policial, quer pelo subtítulo, que anuncia um “divertimento”, embora um divertimento “político-filosófico”, pode parecer que este livro não pretende ser sobre coisas sérias. Pelo que já aqui foi dito hoje, penso que se percebe que o livro, afinal, pretende ser sobre coisas sérias. Sobre coisas acerca das quais tem, mesmo, que se falar.

O livro aborda aspectos da vida em sociedade de que muitas vezes não nos apercebemos, fala de como podemos pesar muito sobre os outros, sobre a vida de todos, sem sequer nos darmos conta. Mas neste livro não quis fazer um sermão aos leitores, não quis arvorar-me em moralista, não pretendi dar lições e renunciei à forma pesada, sisuda, teórica, ou abstracta, com que por vezes se confunde a seriedade. Optei por uma abordagem leve, com muitas situações práticas, tentei até alguma boa disposição. É que me parece que podemos pensar em coisas sérias sem fazermos necessariamente um ar sorumbático. Podemos fazer desse acto de pensar as coisas da cidade uma festa do pensamento, uma festa da cidadania, em vez de um aborrecimento desértico e frio. E estamos tanto a precisar disso, porque estamos tanto a precisar de pensar outra vez, abertos a outros pressupostos e a outras premissas.

Escolhi, sempre que consegui, pontos de ataque ao meu problema que partissem de situações mais ou menos inesperadas, às vezes até um pouco estranhas. E fiz isso por quê? A ideia foi abordar certos problemas sem recorrer a exemplos polémicos. Não é que eu tenha medo da polémica, que não tenho. Mas se apresentarmos às pessoas uma questão e essa questão já estiver claramente ligada a uma polémica, a certos confrontos presentes na praça pública, a divergências instaladas e recorrentes, o interlocutor provavelmente já escolheu a sua trincheira e, em vez de pensar livremente na questão que lhe pões, coloca-se imediatamente à defesa (ou ao ataque), resguardado na sua posição habitual, conhecida, talvez confortável. Pelo contrário, se colocarmos às pessoas casos que elas não encaixem imediatamente nas suas ideias firmes, isso liberta-as para pensarem com menos preconceitos, mais livremente. E estamos muito a precisar de pensar mais livremente, mais ancorados nas solidariedades e menos enterrados em trincheiras.

Este livro, pode não parecer, mas é um livro político. Se a política é uma actividade onde se tenta encontrar respostas para a pergunta “como fazemos para termos uma vida boa nesta terra onde vivemos todos?”, se a política é essa busca partilhada, então devo reconhecer que este livro é um livro político. Não é, claro, não é de todo, um livro partidário. Até porque, feliz ou infelizmente, o que mais genuinamente importa na política no seu sentido mais nobre, não é coisa que se possa sempre acantonar nas fronteiras partidárias. E, entenda-se, isto não é dizer mal dos partidos; quem me conhece sabe que prezo muito o papel dos partidos; mas a riqueza da nossa cidadania, o espectro largo da nossa liberdade, não pode limitar-se a nenhuma forma particular. E isso é algo que também quero dizer com este livro: há muita coisa para pensar fora dos formatos habituais. Nesse sentido, este livro é um gesto de um cidadão que quer partilhar com outros cidadãos um certo diálogo.

Sendo um divertimento, nos termos em que expliquei acima, este meu trabalho quer ser um manifesto contra a infantilização das pessoas que partilham connosco a pertença a esta comunidade. Contra a infantilização, quer dizer, contra que nos digam que tem de ser mesmo assim e só assim, contra a teoria de que a teoria do momento é a única teoria possível de levar à prática, contra a tentativa de simplificar o que é complexo, ou de mistificar o que é simples. Ser contra a infantilização da cidadania é mostrar que o mundo é mais subtil, mais intrincado, do que as versões correntes e propagandísticas desta ou daquela verdade. Ser contra a infantilização que por vezem se quer impor às pessoas é reafirmar, e tento fazer isso neste livro com casos concretos, é reafirmar que nós somos responsáveis pelo mundo, somos pessoalmente responsáveis pelo mundo, mesmo que cada um de nós não possa ser responsável sozinho.

Deixem-me dar um exemplo simples e prático do que quero dizer com isto. Imaginem que tenho agora aqui na mão uma nota de banco, digamos, uma nota de 10 euros. O sistema monetário, no seu sentido mais simples, em que a moeda é um sistema de equivalência universal para mercadorias, depende de que nós participemos. Depende de que nós reconheçamos num determinado tipo de pedaços de papel, com um certo formato, com uma determinada tintagem, com determinados sinais, que todos funcionem com esses pedaços de papel como sendo notas. Portanto, o sistema da moeda só funciona porque nós nos mantemos aderentes. Depende de nós.

No entanto, contrariamente ao que algumas pessoas parecem pensar, nem tudo o que depende de nós é subjectivo. Ou seja, não está dado ao nosso livre-arbítrio sair ou entrar em esquemas que dependem da nossa participação colectiva. Se eu pegar numa nota de 10 euros, e a deitar fora, dizendo “eu não reconheço nisto o valor de 10 euros”, eu perco mesmo os 10 euros. Aqueles 10 euros não deixaram de ser 10 euros por eu negar esse valor àquele pedaço de papel. Porque aquele pedaço de papel faz parte de algo muito mais vasto, que não se esgota naquela instância particular que tenho na mão. É certo que, se toda uma comunidade política deixar de reconhecer aquela moeda, abandonar o respectivo sistema monetário, aquela nota deixa de ser uma nota para passar a ser apenas um papel. Portanto, o significado daquela nota como nota depende de nós, depende de nós colectivamente, mas não depende de nós individualmente, e nós individualmente não podemos tratar esses factos como se fossem subjectivos, como se estivessem à disposição da nossa vontade.

Este aspecto da realidade, assim explicado de forma tão corriqueira, de que estamos juntos em aspectos fundamentais da nossa vida nesta terra, e temos a nossa parte, embora a nossa parte não substitua a parte dos outros, este aspecto está no cerne da encruzilhada entre as melhores e as piores possibilidades da nossa vida em comum. Nós fazemos, juntos, o nosso mundo comum. E não podemos renunciar a isso. Mau grado a arrogância dos ideólogos dos individualismos radicais, quer se pretendam muito liberais ou muito anarquistas, se há espécie onde a vida individual só faz sentido em relação, tensa ou harmónica, com a vida em comunidade, é a espécie humana.

Mas há quem insista em fechar os olhos.

Lévi-Strauss conta o caso de uma tribo que conseguia ver Vénus à luz do dia, à vista desarmada, o que astrónomos profissionais lhe confirmaram ser possível e estar relatado como uma prática corrente por tratados de navegação ocidentais antigos. Que isso hoje nos pareça estranho não vem de nenhuma mudança nos planetas, mas de uma mudança das nossas práticas e condições, das nossas formas de vida. É, pois, bem certo que não basta ter os olhos abertos para ver.

O mais difícil de ver é o que está perto. As coisas próximas. “Podemos matar um sinal de trânsito?”, a pergunta que dá título a este livro, procura levar o vosso olhar para esse lado. Como se adivinha, este “matar” não está em sentido literal, está em sentido figurado, é uma tentativa de falar gentilmente de coisas importantes na vida de todos nós. Podemos matar uma instituição de muitas maneiras. Podemos matar o esforço de um grupo com a nossa má-fé ou com a nossa deslealdade, por exemplo. Matar aqui é desvitalizar, desagregar.

Precisamos ter muito cuidado para não matar o que importa à nossa vida em comum. Precisamos ser suficientemente delicados para não matarmos as ferramentas da nossa vida em sociedade com instituições. A este propósito, e para terminar, quero recordar-vos um episódio relacionado com Barack Obama, que tomou posse esta semana do seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos. Obama protagonizou uma história curiosa aquando da sua tomada de posse do primeiro mandato, que ocorreu a 20/JAN/2009. Publicamente. Com cerca de 2 milhões de pessoas nas ruas de Washington para presenciar o primeiro negro a jurar como presidente dos EUA. Inúmeras cerimónias e festas. Contudo, no dia seguinte, Obama voltou a prestar juramento, numa cerimónia quase secreta, não publicitada previamente, na Casa Branca, uns breves trinta segundos perante apenas nove pessoas.

Porquê? Porque no dia da tomada de posse pública, o presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, a quem compete administrar o juramento, enganou-se e enganou Obama, que não terá pronunciado correctamente a fórmula de 35 palavras exactamente como previsto na Constituição. Temeu-se que viesse a ser questionado que tivesse havido juramento segundo a Constituição e, portanto, que se pusesse em dúvida que tivesse havido tomada da posse em boa e devida forma. E a repetição serviu para garantir que se tinham respeitado todos os preceitos. Isto é levar a sério a Constituição. Por muito ridículo que possa parecer dar valor a “um pormenor”, o que lá está, enquanto lá está, enquanto não decidirmos em conjunto que se muda, é para ser respeitado. Isto, claro, se não quisermos avariar as ferramentas da nossa vida em comum.

Porque, numa sociedade com instituições, como, aliás, muitas vezes na vida pessoal, o que é importante leva muito tempo e muito esforço a construir, mas pode ser destruído, de forma irrecuperável, em pouco tempo e com uns poucos empurrões. E, digo-vos, precisamos mesmo de evitar isso. Foi, também, para vos falar sobre isto que escrevi este livro.

Esta foi a minha leitura de hoje deste livro. É a minha parte, para a troca, com as vossas leituras.

Obrigado pela vossa atenção, pela vossa leitura, pela vossa participação. Obrigado também por passarem a palavra.