23.2.07

Machina Speculatrix (2)


Continuamos (e terminamos) a explicação do que vem a ser isso de "Machina Speculatrix".


As entranhas electromecânicas anteriormente descritas traduzem-se num reportório de comportamentos das "tartarugas": exploração; fototropismo positivo; fototropismo negativo; evitamento de obstáculos.

No decurso do comportamento de exploração, o motor de tracção está a meia velocidade, fazendo avançar a máquina devagar na direcção em que esteja a roda da frente. O motor de direcção está na máxima velocidade, fazendo rodar continuamente a estrutura frontal, que inclui a roda motora – há por isso uma mudança contínua de direcção – e a célula fotoeléctrica, que assim está sempre a “esquadrinhar” o ambiente. A combinação de movimento linear e rotação confere uma trajectória cicloidal à máquina. Este comportamento ocorre no escuro ou enquanto não houver luz suficiente para activar a célula fotoeléctrica.

O comportamento de fototropismo positivo tem lugar quando, na presença de uma fonte de luz moderada, a célula fotoeléctrica é activada e o motor de direcção deixa de receber corrente (pelo que não pode fazer rodar a estrutura central, mantendo-se assim inalterada a direcção e a posição do “olho”). O motor de tracção recebe corrente máxima e acelera a máquina em direcção à fonte luminosa detectada. Frequentemente, porém, no momento em quer a célula fotoeléctrica capta luminosidade a máquina não está virada exactamente para a fonte luminosa. O desvio progressivo daí resultante acaba por reduzir a intensidade da luz recebida abaixo de um determinado limiar. Provoca desse modo uma passagem ao comportamento de exploração, que resulta numa reorientação e regresso ao comportamento de fototropismo positivo (o que pode repetir-se várias vezes).


Ilustração do comportamento de fototropismo positivo.


O comportamento de fototropismo negativo tem lugar quando a máquina se aproxima muito da fonte luminosa e a célula fotoeléctrica é impressionada acima de um certo limiar. Nessas circunstâncias, o motor que faz rodar a direcção passa a trabalhar a meia corrente e o motor de tracção opera à velocidade máxima, provocando uma “fuga” da fonte luminosa.

O comportamento de evitamento de obstáculos é despoletado quando a carapaça da “tartaruga” toca num obstáculo e o desequilíbrio resultante faz com que ela toque nos sensores de contacto. Isso provoca uma alteração no circuito eléctrico, fazendo com que passe a funcionar como um oscilador, abrindo e fechando os relés 1 e 2 alternada e rapidamente (fazendo alternar o funcionamento dos dois motores). Isso faz com que a máquina vire, recue e avance repetidamente, por vezes empurrando mesmo o obstáculo. Enquanto está nesta condição, a máquina não reage à luz (enquanto funciona como oscilador, o circuito eléctrico é praticamente insensível a outros sinais). Esta condição dura, de cada vez, cerca de um segundo.

Poucos anos depois de ter construído as suas primeiras “tartarugas”, Grey Walter fornece uma elaboração dos princípios da sua investigação com vista a uma “imitação” razoável de um animal simples. Nessa altura acrescenta mais alguns comportamentos aos seus “animais artificiais”. Por exemplo, o auto-reconhecimento e o reconhecimento mútuo entre dois animais artificiais, que se explica como segue.

Comportamento de auto-reconhecimento. Uma vez que são dotadas de uma lâmpada piloto (que só permanece acesa quando funciona o motor de direcção), as “tartarugas” desenvolvem um comportamento de auto-reconhecimento. Quando, com a lâmpada acesa, enfrentam um espelho, dirigem-se para a fonte luminosa que assim detectam. Uma vez que passam ao comportamento de se dirigirem directamente para a luz, o motor de direcção pára e a lâmpada apaga-se. Como a lâmpada se apaga, cessa o comportamento de tropismo positivo e volta a funcionar o motor de direcção, para recomeçar a exploração. Com o motor de direcção de novo a funcionar, a lâmpada acende-se de novo – e recomeça o ciclo. E assim sucessivamente. Walter diz que isto é um comportamento de auto-reconhecimento, de que mesmo muitos animais superiores não são capazes.

Comportamento de reconhecimento mútuo. Pelo mesmo mecanismo descrito anteriormente, duas “tartarugas” desenvolvem um comportamento “social” específico da sua “espécie”. Trata-se de um “desejo” que não pode ser consumado: cada “tartaruga” vê a lâmpada da outra e dirige-se para ela, mas quando está nesse comportamento (tropismo positivo) apaga a sua lâmpada e, assim, desorienta a outra.


Comportamento de reconhecimento mútuo.


Grey Walter também considera que os seus animais artificiais zelam pela sua própria sobrevivência. Sendo as tartarugas “alimentadas” por baterias, existe uma “cabana” onde está o recarregador de baterias. Essa “cabana” está sinalizada por uma luz intensa. Durante a operação normal, as “tartarugas” não se aproximam muito desse local (fototropismo negativo) – mas, quando as baterias descarregam para lá de um certo ponto, o comportamento dos circuitos eléctricos é modificado de modo que “a moderação dá lugar ao apetite”: a máquina dirige-se à luz intensa, entra na cabana, liga-se ao recarregador de baterias, os motores e os sensores são desligados e só voltam à operação normal depois de ter terminado o período de “refeição” das “tartarugas”.


“…moderation gives place to appetite.” Machina speculatrix finds her way home.


Grey Walter, com os seus “animais artificiais”, opunha-se ao nascente império dos computadores electrónicos digitais como instrumento para realizar uma “Inteligência Artificial”. Pioneiro da robótica inspirada na biologia, Walter descarta, como desinteressantes para a investigação que prosseguia, os computadores. Os computadores, tal como os autómatos baseados em “mecanismos de relojoaria”, são vistos como máquinas de “comportamento predestinado” ao estilo do século XIX, cujo comportamento está limitado a uma série de movimentos planeados com antecedência. A variedade de movimentos proporcionada pela programação não dota a máquina de qualquer autonomia, de qualquer movimento espontâneo, de qualquer forma de auto-regulação. Walter, que pertencia ao círculo dos cibernéticos britânicos, critica aos cibernéticos americanos neste ponto. Escreve Walter que a programação de máquinas para fins específicos pode resultar em máquinas muito úteis, capazes de suplantar o humano em certos trabalhos – mas essas máquinas não serão de interesse para o fisiologista e nada nos ensinarão sobre o cérebro. Em seu entender, era tempo de começar a pensar em máquinas que, além de responderem “sim” ou “não” ou vomitarem séries numéricas (como os computadores), também soubessem responder “talvez” (como as suas tartarugas, sem mecanismos de cálculo, apenas dotadas de mecanismos para comportamentos corporais).

Eis, pois, de onde vem a designação deste blogue, Machina Speculatrix. Esta muito actual encruzilhada entre natural e artificial será inspiração das nossas reflexões sobre as ciências do artificial – mas também não deixará de nos interrogar acerca daquilo que ameaça tornar-nos máquinas de carne no nosso próprio mundo.

[Para uma exposição mais técnica do que foi o trabalho de Grey Walter, pode aceder-se com facilidade ao seguinte texto: Owen HOLLAND, “Exploration and high adventure: the legacy of Grey Walter”, in Philosophical Transactions of the Royal Society of London, Parte A, 361, pp. 2085-2121. Versão electrónica deste artigo no sítio http://www.journals.royalsoc.ac.uk/. ]