22.9.17

A Fábrica de Nada.

18:58


O filme A Fábrica de Nada pode querer ser uma homenagem a uma experiência de auto-gestão iniciada em 1975. Mas, para quem se senta na sala de cinema a ver o filme, ele começa por ser sobre a crise. É preciso estar relativamente bem informado acerca de certas coisas, e muito atento, para não estar a ver aquilo e a pensar nesta crise mais recente. Isto estabelece um olhar que dificulta a compreensão do filme como estando a dizer algo sobre um episódio que começou há muito tempo.

Olhando assim, o filme parece uma colagem de dois meios-filmes etnográficos. Uma metade sobre a crise. A outra metade sobre uma certa esquerda. O meio-filme etnográfico sobre a crise nunca será demasiado realista, apesar de tudo. O meio-filme etnográfico sobre uma certa esquerda é cruel. Injustamente cruel. Se alguém pretendesse fazer um filme para ridicularizar uma certa esquerda alternativa, não faria melhor do que este filme.

Qualquer um tem direito a fazer filmes cruéis sobre uma certa esquerda. Mas duvido que as pessoas envolvidas neste filme tivessem querido fazer precisamente isso.

Porfírio Silva, 22 de Setembro de 2017


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E pur si muove

11:22


A nova realidade que é a esquerda plural como maioria parlamentar dá imensas dores de cabeça a pessoas habituadas a ter os partidos à esquerda do PS arrumados na prateleira (como era nos tempos do "arco da governação").
Recentemente, a evidência, pelas declarações públicas dos mais altos dirigentes do PCP e do BE, de existir um debate em curso acerca do futuro da esquerda plural, terá convencido alguns de que isso é sinal de trovoada na maioria.
Não concordo.
Apesar de algumas dessas declarações terem o aspecto inabitual de uma troca de "mimos" entre PCP e BE (talvez especialmente compreensível em período eleitoral), o que se está a passar à vista de todos é um debate em curso. Começou a ser evidente que esta maioria parlamentar conseguiu fazer imenso pelo país, razão pela qual não pode simplesmente descansar sobre o que está feito e precisa pensar como nos organizamos no futuro. Não há nunca fórmulas que se possam simplesmente repetir, quando as águas passaram quatro anos sob as pontes e o país é outro. Sim, a esquerda plural como maioria parlamentar mudou o país: não terá resolvido imensos problemas que estão por atacar, mas abriu novas janelas e novos caminhos - e, por isso, novas ambições para quem trabalha e sonha por um país mais justo.
Qualquer debate sobre o futuro da esquerda plural terá o aspecto de uma luta - porque é uma luta. Uma luta política. Já que ninguém está acomodado; já que PS, PCP e BE continuam a bater-se pelas suas próprias contribuições e quererão que elas sejam relevantes no que finalmente acabará por fazer-se. Mas, mesmo assim, esse debate terá de fazer-se, de preferência a tempo e horas, mesmo que tenhamos de esperar pelo tempo certo para tirar conclusões.
Pela minha parte, que nunca hesitei em defender este caminho, também há muito que defendo a necessidade de um debate sobre os caminhos que há a percorrer para um prazo mais longo.
(Deixo, a este propósito, a entrevista que dei ao DN há algum tempo: "A esquerda tem de pensar uma agenda para a década".)

Porfírio Silva, 22 de Setembro de 2017


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18.9.17

Um novo ano lectivo, a meio da legislatura

17:43

Deixo aqui a Declaração Política que pronunciei hoje, 18 de Setembro de 2017, na Assembleia da República, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. (Em geral, não escrevo segundo o novo Acordo Ortográfico - mas uso-o em declarações oficiais.)





Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,

Neste ano letivo teremos no ensino superior público mais 10% de estudantes do que no ano passado.
Na 1ª fase do Concurso Nacional, tivemos o maior número de candidatos desde 2009, os colocados em primeira opção no ensino politécnico aumentam 16%, e os colocados em regiões de menor densidade demográfica aumentam 13%.

Voltamos a acreditar que estudar vale a pena, deixando para trás a triste narrativa dos que propalavam que temos graduados a mais.

Na Ação Social Escolar, entrou em funcionamento a renovação automática das bolsas: menos burocracia e bolsas pagas atempadamente. É um avanço importante, depois de no ano passado termos tido o maior número de bolsas atribuídas desde 2010.

Fruto de iniciativa legislativa do PS, a partir deste ano todos os estudantes de licenciatura e mestrado integrado poderão pagar as suas propinas em pelo menos sete prestações, ou num esquema mais flexível, sendo que as propinas só poderão ser cobradas aos beneficiários de bolsas quando estas já tenham sido efetivamente pagas.

E entrará este ano em vigor o novo sistema de bolsas de estudo para estudantes do ensino superior com incapacidade igual ou superior a 60%.

Conhecemos recentemente resultados do inquérito ao potencial científico e tecnológico nacional. Os números mostram que, enquanto a diminuição do investimento público em Investigação e Desenvolvimento arrasta uma quebra ainda maior do investimento privado, como aconteceu na legislatura anterior, o aumento do investimento público em I&D arrasta um aumento ainda maior do investimento privado, como mostram os dados relativos a 2016.

Regista-se também um reforço dos recursos humanos em Ciência e Tecnologia, com a permilagem de investigadores na população ativa a subir de 7,4 em 2015 para 7,9 em 2016.

Olhemos agora para outros níveis de ensino.

O país continua a avançar no pré-escolar. Em dois anos letivos abrem mais de 170 novas salas. No fim da Legislatura, quando comemoramos os dez anos do alargamento da escolaridade obrigatória ao 12º ano, teremos universalizado a oferta do pré-escolar aos 3 anos. Duas metas em que o Partido Socialista deixa a sua marca.

O país continua a avançar na educação de adultos. Com a abertura concretizada de 42 novos Centros Qualifica, cumpre-se a meta de 300 centros a funcionar em 2017.

Continuamos a investir no edificado. Há obras de reabilitação e de modernização a decorrer por todo o país.

Continuamos a investir nos recursos humanos. Em dois anos letivos, no passado e neste, teremos um reforço de mais de 2000 assistentes operacionais nas escolas. E no próximo ano letivo, mais 500. Trata-se de melhorar em muito o apoio aos alunos com Necessidades Educativas Especiais e o apoio no pré-escolar, com um assistente por sala.

Pela primeira vez este ano, foi autorizada a renovação dos contratos de técnicos especializados que já estavam nas escolas, como psicólogos, terapeutas da fala ou intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, mais de 1500 que, assim, estão a tempo e horas onde fazem falta.

Continuamos a valorizar os professores. Os planos de formação contínua dos centros de formação dos agrupamentos estão todos a avançar, porque sabemos bem que os professores são essenciais para o sucesso educativo e confiamos no seu trabalho - enquanto na governação anterior quem queria formação tinha de a pagar.

Só este ano vincularam mais de 3.400 professores. A maior vinculação de sempre num só momento. É um passo importante no combate à precariedade.

A 6 de setembro estavam colocados todos os professores que tinham sido pedidos pelas escolas. É um sinal importante de prontidão do sistema.

Continua a ser reforçada a Ação Social Escolar. Que volta a apoiar as visitas de estudo. Que alargou ao 3º escalão o apoio na compra de manuais. Que alargou o serviço de refeições nas pausas letivas. Que a partir deste ano entregará gratuitamente manuais escolares a todos os alunos do 1º ciclo.

Continuamos a valorizar as escolas e a sua autonomia. Está a avançar o projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular, com a adesão voluntária de mais de 200 escolas, públicas e privadas, dando mais espaço às escolas e aos professores para promoverem melhores aprendizagens.

Continua o reforço da rede do ensino profissional.

Continua o programa de promoção do sucesso escolar, para que todos, e não apenas alguns, possam aprender mais e melhor.

Também na educação, muito há ainda por fazer, sabemos isso. Mas o muito que está a ser feito é, claramente, mobilizador das melhores energias de professores, alunos e famílias.


Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,

O Grupo Parlamentar do Partido Socialista assumiu nesta Câmara o compromisso de aguardar pela conclusão dos trabalhos do Conselho Nacional de Educação sobre avaliação da Lei de Bases do Sistema Educativo nos seus 30 anos de vigência e, a partir daí, contribuir para que a Assembleia da República adote uma metodologia para um diálogo sistemático e aberto à sociedade sobre as perspetivas da atualização da Lei de Bases.

A durabilidade da primeira Lei de Bases assentou na profundidade e largueza do debate que a construiu. Não podemos esquecer esse ensinamento. E, sem tirar uma vírgula aos méritos políticos da atual maioria parlamentar da esquerda plural, é preciso afirmar que uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo não deveria ser fruto apenas da estrita maioria parlamentar de cada momento. Outros já tiveram essa tentação, o PSD e o CDS já tiveram essa tentação, mas o PS entende que, uma vez que a educação pulsa mais ao ritmo das gerações do que dos anos letivos, devemos trabalhar para alargar as convergências produtivas que sejamos capazes de construir.

Assim, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista apresentará proximamente as suas propostas para uma metodologia que abra a Assembleia da República a um diálogo plural e alargado acerca dos desafios a que terá de responder uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo. Sendo certo que, para os socialistas, também em matéria educativa, a linha de rumo passa sempre por melhor cumprir e honrar a Constituição da República Portuguesa, promovendo uma efetiva igualdade de oportunidades no acesso e no sucesso educativo.



Porfírio Silva, 18 de Setembro de 2017

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13.9.17

Fernando Medina e a ventoinha.

10:57


Fernando Medina trocou de casa. Embora estejamos em campanha eleitoral e não faltem assuntos para debater Medina e a Câmara de Lisboa, há uma pessoa que escreve num quotidiano e que decide tentar sujar Medina com a troca de casa. Pelo que passo a escrever a seguir, parece-me a velha história da ventoinha e da lama.

Em primeiro lugar, parece que Medina comprou uma casa no centro de Lisboa (Rua Viriato) em 2006 e a vendeu em 2016, tendo arrecadado mais-valias no montante de 130 mil euros. A tal pessoa que escreve no tal jornal parece achar isso estranho, porque se rebola de gozo escrevendo que Medina “é daqueles que não se podem queixar do apetite voraz que a capital portuguesa está a despertar junto de muitos estrangeiros endinheirados”. De facto, Medina vendeu um apartamento a um casal francês. Não sei se o casal francês está contente por ser considerado endinheirado por comprar um apartamento, num prédio Prémio Valmor, por 490 mil euros. O que sei é que tenho um familiar próximo que vivia a poucos metros de Medina e sabe como aquele período de compra e venda, designadamente naquela zona, permitiu negócios interessantes para quem precisava mudar para outro tipo de casa. Ao ponto de se conseguir o preço pedido de um dia para o outro. Aparentemente, a tal pessoa que escreve no tal jornal não sabe disso. Talvez não lhe interesse.

Mas, aos olhos da tal pessoa que escreve no tal jornal, Medina tem outro pecado: além de um pecado de venda, tem também um pecado de compra.
Medina é suspeito porque comprou o seu actual apartamento a Isabel Teixeira Duarte por um valor/m2 inferior ao que esta tinha comprado o mesmo apartamento. Mas a tal pessoa que escreve no tal jornal sabe que Isabel Teixeira Duarte tinha comprado aquele apartamento por um valor/ m2 muitíssimo mais alto do que aceitaram pagar os vários outros compradores de fracções no mesmo prédio no mesmo período. Aparentemente, a tal pessoa que escreve no tal jornal acha que Medina é que tinha de se prontificar para corrigir os prejuízos do negócio anterior. Talvez perguntar à senhora: “por acaso não fez nenhum disparate quando comprou este apartamento, talvez pagando mais do que devia? É que se foi o caso, eu pago mais para a senhora não ficar a arder…”.

Cabe lembrar, entretanto, que, segundo a mesma notícia, Isabel Teixeira Duarte tinha comprado aquele apartamento, por um valor aparentemente inflacionado, ao grupo Teixeira Duarte, detido pela sua própria família. Mas isso a tal pessoa que escreve no tal jornal não acha que tenha de ser explicado – achando, sim, que Medina é que tinha de se preocupar com isso ou explicar o facto.

Sim, porque se Medina pagou o que lhe pediram, e ainda teve de subir a oferta porque havia concorrência (havia mais quem quisesse comprar o mesmo apartamento, pelos vistos Medina não era o único a achar o negócio normal), não se percebe o que pretende a tal pessoa que escreve no tal jornal: que Medina protestasse que queria pagar mais? Há muitos anos que não compro nada no mercado da habitação, mas não conheço ninguém que, pretendendo comprar um apartamento, exija ao vendedor que informe quanto está a ganhar em mais-valias relativamente ao negócio antecedente.
A tal pessoa que escreve no tal jornal sabe (porque o escreve) que a última transacção de apartamentos naquele prédio antes da compra de Medina tinha sido feita a um valor por m2 inferior ao preço pago por Medina. Mas insiste que Medina pagou, suspeitamente, pouco.

Dito isto, a tal pessoa que escreve no tal jornal não se considera satisfeita e vai buscar uma história de uma relação da Câmara Municipal de Lisboa com o grupo Teixeira Duarte. A tal pessoa que escreve no tal jornal não deixa de dizer que “não [é] conhecido nenhum dado objectivo que permita relacionar as condições em que Fernando Medina comprou o duplex da Luís Bivar com esta adjudicação” – mas essa pessoa sabe que, para publicação em cima da campanha das autárquicas, não é preciso ter dado objectivo nenhum para conseguir um belo efeito com um texto que serve de ventoinha mesmo sem “nenhum dado objectivo”. Convenientemente, a tal pessoa que escreve no tal jornal não acha relevante que Medina tenha negociado a casa com a imobiliária, nunca com a proprietária.

Definitivamente, há pessoas que não compreendem as pessoas normais, que vivem a sua vida sem atropelar ninguém. Que não compreendem as pessoas honestas. Já não me lembro quem é que inventou uma história de casas em Lisboa com António Costa antes das últimas eleições legislativas. História essa que, obviamente, era lama. E assim morreu. Mas, para certas pessoas, vale sempre a pena ligar a ventoinha e largar alguma lama a ver se se consegue sujar quem está e quem é limpo.

Sobre o que está dito, estamos conversados. Mas há mais: se o texto que tenho vindo a referir merecesse a qualificação de notícia, seria ainda de questionar qual o interesse noticioso de trazer a mulher de Medina ao escrito, dizendo de quem é filha, que cruzamentos teve antes com o seu actual marido, que profissão tem e onde trabalha. Ah, e claro, qual, no meio de todo esse emaranhado, é o fio que liga alguém a José Sócrates - esse é elemento que não poderia faltar neste enredo.


Porfírio Silva, 13 de Setembro de 2017
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8.9.17

As eleições em Angola e os terçolhos.

10:28


Ricardo Paes Mamede, pessoa com quem não privo mas que respeito na sua figura de intelectual público, escreve um texto no blogue Ladrões de Bicicletas sobre as eleições em Angola. Nesse texto escreve muitas coisas com as quais concordo, inclusivé coisas que se afastam de algumas abordagens "a preto e branco" que têm dominado as reacções lusas às eleições angolanas.
Contudo, escreve a certa altura algo que, além de me tocar directamente, cai - agora sim - nas tais apreciações a preto e branco. É, aliás, quando chegam ao momento das simplificações abusivas que mais facilmente caem em erros os pensadores que produzem melhor quando mantêm as coisas complexas na sua complexidade própria. Julgo ser este o caso.
No último ponto do seu texto, escreve Paes Mamede: «Os observadores internacionais (incluindo os deputados portugueses) que acompanharam as eleições angolanas têm seguramente conhecimento do processo eleitoral em todas as dimensões acima descritas. Ao darem o seu aval aos resultados das eleições, classificando-as como livres e justas, estão a compactuar com práticas que seriam inaceitáveis num Estado de Direito Democrático. Os motivos que os levam a fazê-lo podem ser vários: estão economicamente comprometidos com o regime; acreditam que num país africano não é possível fazer melhor; ou consideram que nenhuma das alternativas está em melhores condições para assegurar um futuro de paz e desenvolvimento para Angola (acredite-se ou não, estes mesmos observadores estrangeiros apelidam de neocolonialista e paternalista quem se atreve a questionar o processo eleitoral angolano a partir do exterior). Seja qual for o motivo para se prestarem ao papel que desempenham neste processo, uma coisa é certa: ao fazê-lo, esses observadores estão a revelar pouco respeito pelos eleitores angolanos, por quem luta pela democracia naquele país e também pelos cidadãos do seu país de origem.» (Encontra-se este texto no ponto 5 deste post: Todo o mundo saúda o novo poder de Luanda (cinco ideias sobre as eleições em Angola) )

Pela minha parte, integrei uma Missão de Observação Eleitoral da CPLP, que fez uma pronúncia sobre as eleições que em nada ultrapassa aquilo que vimos. Não fala do que não vimos, nem fala do que aconteceu depois de termos acabado a Missão - mas também não inventamos problemas que não vimos. Como a declaração da Missão é uma declaração colectiva, eu acrescentei um testemunho pessoal, em artigo publicado no Diário de Notícias (que pode ser lido aqui: Angola, as eleições e depois ).

Face a isto, tenho que dizer ao Ricardo Paes Mamede que a sua apreciação é tão enviesada, pelo menos no meu caso, como enviesadas são todas as leituras a preto e branco das eleições angolanas. O pior que um intelectual público pode fazer face às suas responsabilidades é ser simplista em questões complexas. E, infelizmente, nem sequer tira todas as lições do que o seu próprio texto mostra saber (por exemplo, não basta à oposição dizer que houve batota, é preciso apresentar dados que suportem consistentemente essa afirmação: e isso pode ser feito, porque os partidos têm as actas das mesas de voto). Quando um intelectual público cede à tentação de querer parecer mais "limpo" do que toda a gente no resto do mundo, podemos desconfiar de que algum terçolho o esteja a impedir de ver tudo o que há para ver no espaço do fenómeno em observação.

***
Adenda.
Este debate continuou no FB. Aqui. Retenho a seguinte frase de Ricardo Paes Mamede: "O Porfírio não é susceptível das críticas que faço no meu texto. Entendeu que a crítica o abrangia e sentiu necessidade de se defender. É justo, fez bem." Chegados aqui, por mim esta conversa está resolvida.


Porfírio Silva, 8 de Setembro de 2017
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4.9.17

Podemos negociar com uma lotaria?

11:25


Encontram-se pessoas, até muitas pessoas, que, sendo apoiantes deste governo e desta maioria parlamentar, entendem que é favorável ao governo e à maioria ter uma oposição destemperada - especificamente, ter um PSD zangado com o país, incapaz de propor e debater alternativas, embrulhado num azedume de curto prazo e sem horizontes. Os resultados das sondagens parecem dar razão a essas análises, na medida em que a actual irrelevância do PSD para os debates do futuro paga-se cara em termos de intenções de voto e de popularidade, permitindo sondagens onde o PS sobe sem ser precisamente à custa dos seus parceiros mais à esquerda. Alguns resumem essa apreciação da conjuntura com um "a esquerda já vai em 60 e não sei quantos por cento das intenções de voto".

Ora, eu discordo absolutamente dessa ideia de que esta situação tenha aspectos positivos.

O que mais mina a democracia representativa é a incapacidade da política para responder aos desafios de longo prazo das nossas sociedades. Porque, ao fim de algum tempo, o que era de longo prazo tornou-se assunto premente, de hoje. Acaba mesmo por tornar-se assunto de ontem. E, rapidamente, as pessoas percebem que não podem deitar a culpa só para este ou aquele partido, só para este ou aquele líder, porque os problemas colectivos nunca são só responsabilidade de alguns: os problemas colectivos são sempre resultado de, entre todos, os agentes desse colectivo não terem sido capazes de se coordenar para engendrar uma solução. Alguns podem ter apenas a responsabilidade de não terem conseguido "obrigar" os outros a cooperar, o que é diferente de obstruir deliberadamente a cooperação - mas, de modos diferentes, pelos fracassos colectivos todos no colectivo têm a sua quota de responsabilidade. E todos pagarão. Todos pagaremos. Basta chegar um populista da espécie dos que fazem carreira por esse mundo fora. Ora, o comportamento destrutivo que Pedro Passos Coelho adoptou como rumo é, só por si, um elemento dificultador de qualquer racionalidade e eficiência na acção política democrática.

Sejamos mais precisos. Não defendo nenhuma forma de "governo pelo consenso". O trabalho das forças políticas é construir respostas políticas diferenciadas para interesses diferenciados, para grupos diferenciados, para visões do mundo diferenciadas, para situações sociais e económicas diferentes em que vivem as pessoas concretas. A ideia do "governo pelo consenso" é uma ideia antidemocrática na sua essência, porque desvaloriza a pluralidade em acção como dinâmica de sociedades livres na sua diversidade. Mas as diferenças ideológicas não têm necessariamente de incluir discordâncias irredutíveis acerca do traçado de umas quantas estradas e sobre a localização de umas quantas infraestruturas do país... Mesmo em áreas cuja governação implica uma forte carga ideológica no mundo actual (educação ou saúde, por exemplo), é possível isolar opções que não têm que ser abrangidas pelas importantes diferenças de pensamento acerca do desenho global das políticas públicas nesses sectores. Por essa razão, estão errados aqueles que dizem "se o governo quer acordos estratégicos numa área, tem de aceitar incluir tudo nessa negociação". Não tem e não deve.

Só forças políticas maduras, com programas consistentes e com capacidade política para distinguir os diferentes planos de um contínuo convergência/divergência (que sempre terá de acontecer em democracia), só forças políticas com essa solidez podem prestar ao país o serviço deste tipo de negociação. Aí reside um dos mais delicados calcanhares de Aquiles do PSD de Passos Coelho. E da nossa democracia no momento presente.


A questão pode colocar-se assim: pode negociar-se com uma lotaria, cujas posições dependem de algo que, por não sermos nós a dominar, chamamos sorte e azar? Pode chegar-se a algum entendimento com uma roleta russa, que na maior parte dos ensaios será inofensiva mas pode, por uma vez, ser fatal, sem alívio e sem retorno? A essência da negociação em democracia é tentar alargar as convergências entre posições diferentes, começando pelas diferenças não essenciais ou que podem ser satisfeitas por vias alternativas, deixando de fora aquilo que permenece irredutível graças às legítimas diferenças políticas e ideológicas, mas trabalhando intensamente naquela margem de sobreposição de posições que sempre deve resultar do facto de vivermos numa mesma comunidade nacional e de nem todos os interesses serem contraditórios. Esse trabalho, que não é de "consenso" mas de alargamento das convergências razoáveis, é uma construção baseada em posições que reflectem interesses - e essa construção tem sempre uma componente racional, argumentativa. Ora, não há como argumentar com uma lotaria, não há como debater com uma roleta russa. Tal como não há modo de negociar com um partido que se comporta como uma lotaria ou uma roleta russa. Aqui reside a principal razão para não podermos estar satisfeitos com o actual estado do PSD - e para não nos deixarmos iludir pela passageira compensação de isso produzir sondagens simpáticas para a maioria da esquerda plural e para o governo. O actual estado do PSD é um problema para Portugal.

Porfírio Silva, 4 de Setembro de 2017
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2.9.17

Angola, as eleições e depois

10:16




Reproduzo aqui o meu artigo de opinião que o Diário de Notícias publicou ontem (1/09/1017). O original pode ser encontrado aqui.


* * *

ANGOLA, AS ELEIÇÕES E DEPOIS


1. Ao aterrar em Angola como observador internacional para as eleições de 23 de Agosto sabia que os processos eleitorais não começam nem acabam nos dias de votação, e que a vida democrática de um país não se esgota nos atos eleitorais.

2. Antes da votação, a generalidades das missões de observação eleitoral internacionais partilhavam a convicção de que Angola tinha feito um grande esforço para que estas eleições fossem não apenas mais organizadas do que as edições precedentes mas também mais fiáveis como expressão da vontade dos eleitores. Ao mesmo tempo, era geralmente partilhada a preocupação com o muito desigual acesso dos partidos concorrentes aos meios de comunicação social. É claro que alguns interlocutores nos referiram a importância do uso parcial do aparelho estatal e do poder económico na conformação da vontade do corpo eleitoral.

3. O dia da votação produziu uma impressão fortemente positiva: organização, serenidade, ausência de coação, transparência. Se alguém menospreza a importância política da boa organização de umas eleições, faz mal: é na desorganização que mais facilmente se desrespeitam as regras, a desordem é o caldo de cultura da fraude. Neste caso, pelo contrário, a organização permitiu às pessoas votar facilmente e com rapidez, favorecendo uma grande participação: a abstenção desceu cerca de 14% de 2012 para 2017. O Estado investiu nas eleições, Angola levou as eleições a sério.

4. Aspeto crucial para ajuizar da limpeza da votação: a julgar pelas informações disponíveis, na generalidade das mesas de voto havia delegados dos partidos concorrentes, raramente todos, mas usualmente vários. Os relatos convergem: foram respeitados os direitos dos delegados à fiscalização de todas as operações da votação, corrigindo até alguma tensão dos dias anteriores sobre esse ponto. No final, cada delegado de partido levou cópia da ata com os resultados. No que presenciei, o respeito pelos delegados dos partidos nas mesas de voto contribuiu para o clima de normalidade e calma em que decorreu o voto.

5. Cabe também anotar que, segundo relatos das missões de observação, não se registaram quaisquer obstáculos ao trabalho dos observadores (internacionais ou nacionais).

6. Quando escrevo, já estamos na fase seguinte: apuramento dos resultados. Conhecidos os resultados e os vencedores provisórios, transparece para a opinião pública o espectro de uma não-aceitação dos resultados por todos os concorrentes. A Comissão Nacional Eleitoral poderá não ter respeitado rigorosamente todos os procedimentos previstos, talvez até anunciando cedo de mais resultados provisórios que podiam não estar completamente consolidados. Tal como algumas vozes da oposição terão sido precipitadas a tentar lançar a suspeita de fraude sobre o processo. Alguns reagiram como se só pudessem ser democráticas eleições que o MPLA perdesse. Julgo, no entanto, que existem os meios (nomeadamente as atas e demais documentação das mesas de voto) para garantir um apuramento rigoroso e incontestado dos resultados verdadeiros destas eleições. O trabalho continua e já há províncias cujos resultados definitivos são aceites como fidedignos pelos partidos da oposição. É esse acerto de contas que tem de continuar e ser levado até ao fim, porque as dificuldades operacionais não podem ser consideradas (nem ser transformadas em) desvirtuamento dos resultados.

7. Vários fenómenos positivos acompanharam estas eleições. Desde logo uma forte mobilização cidadã, não só direcionada para as candidaturas mas também para o controlo democrático do processo eleitoral. Isso poderá ajudar os partidos a reforçar a sua capacidade de construir alternativas e equipas que os angolanos reconheçam como credíveis possíveis governantes, algo que não está automaticamente conquistado. Ao mesmo tempo, o MPLA, pelo simples facto de apresentar um novo candidato, aparece aos olhos de muitos como fator de mudança. Será agora preciso saber se a coragem do candidato, ao introduzir certos temas melindrosos e em recuperar pessoas antes tornadas dissidentes, é suficiente para garantir uma transição bem-sucedida na perspetiva do progresso do país. Até porque são grandes os desafios, em maior ou menor grau partilhados por muitas sociedades, designadamente o de uma relação adequada entre poder político e poder económico e o de um necessário combate às desigualdades excessivas, através da expansão dos direitos sociais efetivos à generalidade da população.

8. Há quem olhe para Angola e só veja negócios. Há quem olhe para Angola e só pense numa preferência partidária. Procuramos que não seja esse o nosso caso: porque os investimentos mútuos são importantes, mas a prazo não podem prosperar num deserto moral; porque antes do valor próprio de cada força política vem o valor do pluralismo e dos direitos fundamentais.



Porfírio Silva, 2 de Setembro de 2017
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