31.1.14

esse bicho que morde as entranhas da esquerda.

19:05

Liderança, supermulheres, mitos e contraditórios, por Sara Falcão Casaca.

A unidade da esquerda, ou lá como se chama esse bicho, transformou-se num animal sem alma: é já largamente uma figura geométrica estudada para arremessar à cabeça dos concorrentes. Por isso (e porque, desde a minha bancada de social-democrata do PS sempre me bati por essa unidade alargada e plural) é preciso encontrar outros caminhos.

Deixem-se de paleio orgânico (quantos braços terá o bicho e qual o tamanho das pernas, nome que se poderia dar a coisas que se andam para aí a discutir) e escolham causas concretos e fundamentais. Dou quase sempre o exemplo da Europa: enquanto as esquerdas portuguesas não tiverem sobre a Europa uma posição comum que possa ser a melhor voz para um Portugal ao mesmo tempo sem sonhos nacionalistas e isolacionistas, aberto ao mundo e, também, sem ilusões acerca da "amizade" dos grandes, enquanto isso não existir não haverá esquerda capaz de governar esta terra.

Acrescento outra causa, grande e concreta ao mesmo tempo: a condição da mulher. A discriminação mais abrangente, mais profunda e mais enraizada culturalmente, e também mais violenta, é a persistente e resistente discriminação de múltiplas formas em desfavor das mulheres. E, do mesmo passo, contra todas as pessoas inteiras, que se sentem também atacadas por essa discriminação.

Caramba, ainda há quem duvide de que a Esquerda pode servir para alguma coisa, desde que lute por causas e não pelo formato do bicho?



30.1.14

o inconseguimento de Assunção Esteves.

16:30



Vai por aí um tsunami de escândalo e espanto com os termos usados por Assunção Esteves numa entrevista. O vídeo inserido acima é um dos exemplos das escolhas de palavras que têm dado pasto a esse barulho do diz-que-disse. Desculparão os meus amigos que muito se têm rido e gozado com estas palavras de Assunção Esteves, mas atrevo-em a perguntar: estão aborrecidos por a senhora falar difícil? Acho que deveriam estar mais preocupados com os disparates que por aí se dizem em substância.

Claro, já ninguém quer ler um livro de Heidegger porque é difícil, ou de Habermas, ou de Sartre, vindo depois que também há artigos de jornal que são difíceis (e dizemos mal) e poemas que são difíceis (e não lemos) e puxamos para baixo, para que todos falem fácil, escrevam fácil... pensem fácil.

Se há um demagogo qualquer (há vários) a dizer tolices semanalmente na TV, criticamos se vai contra as nossas opiniões. Mas até somos capazes de aceitar se gostamos das teses... porque é preciso ler a cartilha ao povo. O que queremos é conversa fácil.

Eu não falo como Assunção Esteves, sabe quem me conhece. Ela adora rodriguinhos. Pode não ser o meu estilo - não é. Mas isso não devia merecer o escárnio que por aí tem andado. Seremos já tão incapazes de ouvir um discurso com conteúdo que tropeçamos nas palavras e somos por isso impedidos de chegar às ideias propriamente ditas? Ou será que simplesmente nos vingamos de não percebermos os conceitos com piadas torcidas acerca do estilo?

Em questões de gosto, podemos ter preferências por este ou aquele estilo, mas não cabe diabolizar uma pessoa ou um discurso por questões de estilo. Principalmente em tempos de grande exigência como estes que vivemos, acho que devemos poupar as nossas raivas para as questões de fundo, de substância, em vez de gastar as energias em ataques vulgares contra a forma como uma pessoa coloca rendilhados no seu falar. Acresce que anda por aí muita gente, até com responsabilidades, que se calhar ficou irritada por não perceber toda a extensão do que ela disse - e depois vingam-se fazendo barulho. Estou cansado dos que exigem que se fale barato e se pense barato. E estou cansado de que, quando não se gosta de alguém, tudo vale para a achincalhar.

Acresce que, em minha opinião, a segunda figura do Estado diz, nestas breves palavras, coisas muito acertadas. O que nem sempre é o caso, ainda em minha opinião. Contudo, abomino estes "campeonatos de boxe": quando entendemos que alguém não está do nosso lado da barricada, tudo o que ela diga serve de pasto ao escárnio.

Pronto, podem começar a insultar-me.

27.1.14

ensaio sobre as teorias da inovação.

RECEITA PARA RELÓGIO DE PULSO COM MOSTARDA
(produto pluridisciplinar mítico).


1. Tome-se um relógio de pulso perfeitamente clássico. Acrescente-se mostarda. Em caso de um ataque de fome, o novo produto é indiscutivelmente muito mais útil do que o produto clássico. Trata-se de uma inovação. As mentes esclarecidas dar-se-ão imediatamente conta da sua valia, com base na adesão ao princípio geral da superioridade intrínseca das inovações. Contudo, dada a raridade crescente dessas mentes esclarecidas, deve prever-se um processo de demonstração da superioridade desta inovação particular em concreto (método delineado nos pontos seguintes).




À esquerda: Relógio de pulso clássico.
À direita: Relógio de pulso com mostarda.


2. Constrói-se um relógio de pulso com mostarda degenerado (isto é: sem mostarda). Torna-se trivialmente patente que mesmo o relógio de pulso com mostarda degenerado, apesar de não ser tão completo como o relógio de pulso com mostarda original, é tão útil para medir o tempo como um relógio de pulso clássico.





À esquerda, relógio de pulso com mostarda.
À direita, relógio de pulso com mostarda degenerado.



3. Considerando:
(a) que os novos relógios de pulso com mostarda são pelo menos tão bons como os relógios de pulso clássicos a fazer a única coisa que fazem os relógios de pulso clássicos (medir o tempo);
(b) que os novos relógios de pulso com mostarda têm uma valência completamente ausente nos relógios de pulso clássicos (culinária);
deve concluir-se pela superioridade dos relógios com mostarda.


Anexo: Cuidados a ter com indivíduos pouco sensíveis à inovação.
Parte I - Se ao cozinheiro se fizer notar o ligeiro gosto metálico que tomou o condimento, responda-se que há que atender ao facto de que nunca antes a mostarda se vira assim associada à medição do tempo.
Parte II - Se ao relojoeiro alguém apontar que os ponteiros estão parados, faça-se ver quão notável contributo deu o pertinente cozinheiro à nouvelle cuisine.


(Publiquei este texto pela primeira vez no Turing Machine a 14/nov/03, mas o passamento desse blogue deu-se há muito.)

o nosso país está a carburar muito bem.

Mas para onde está a ir?

Eis a resposta:

Somewhere, de Sofia Coppola; cena de abertura.
(Volume a 90%, por favor.)


24.1.14

Quererá Miguel Seabra ser o Lysenko português ?


Miguel Seabra: avaliadores não souberam das alterações para evitar mais atrasos nas bolsas da FCT.

Será que o desejo secreto de Miguel Seabra é ser o Lysenko português ?

É que os pontapés na legalidade que ele parece praticar sem remorsos nem vergonha não podem ser apenas irracionalidade. Têm ar de traduzir um desígnio qualquer. Sendo um cientista ao serviço de uma visão estreito-ideológica, esse desígnio pode bem ser do tipo "político-científico". Dai lembrar-me Trofim Lysenko.

(Lysenko Seabra)

o método Crato para elevar a qualidade da ciência.


Aviso: esta posta é humorística. Do princípio ao fim.

Crato diz na AR que a aposta do Governo é na ciência de “grande qualidade”.

Para elevar a qualidade da ciência, Crato recomenda que se exterminem os cientistas. Os investigadores, desde que não sejam "úteis às empresas", são apenas impurezas nos laboratórios. (Quanto aos concursos e suas irregularidades, senhores deputados, perguntem ao sargento de turno.)





o trabalho não é uma mercadoria.

11:08



(Fotografado por Porfírio Silva numa rua de Lisboa.)

23.1.14

O chupismo e o futuro das Inutilidades.

16:20


Sem aparecerem muito nos jornais, mesmo nos blogues aparecendo pouco, mais acobertados nas caixas de comentários daqui e dali, e no Facebook, andam por aí os adeptos da teoria de que, no fundo, os bolseiros de investigação científica (essa maltosa que recebe dinheiro público para investigar) são um grupelho de chupistas. Quer dizer, tipos e tipas que são pagos por todos nós para fazerem coisas que, as mais das vezes, não interessam nada ao país. Há muitas modalidades dessa conversa dispersa. E é para essa gente que falam os Rui Ramos deste país.

Há os que dizem "ah, bolsas, querem viver de bolsas", esquecendo que "bolsas" são, muitas vezes, a forma de ter quem trabalhe sem lhes dar direitos, nem carreira, nem protecção social inerente ao trabalho, nem sequer subsídio de desemprego quando ficarem pendurados. Claro que, fazendo uso do anti-intelectualismo larvar da nossa "opinião", muitas vezes toma-se como premissa implícita a "ideia" de que nada se deve a quem investiu a escolaridade obrigatória, o secundário, uma licenciatura, um mestrado, um doutoramento e, depois, é tratado como se tudo isso não devesse fazer diferença nenhuma. Afinal, quem passou todo esse tempo a estudar e a investigar deve ser um pequeno monstro. Aliás, fazer um mestrado ou um doutoramento é coisa de crianças: isso não custa nada, é quase uma brincadeira, um desporto caro (isso parecem pensar mesmo alguns que se propuseram à coisa mas nunca pariram o resultado, talvez por ser demasiado fácil para a sua imensa bravura).

Há os que dizem “se essa investigação vale a pena, que não corra por conta do Estado, mas por conta das empresas, para que só se gaste dinheiro no que seja realmente um investimento e não despesismo”. Curiosamente, esquecem-se de criticar as empresas por investirem pouco em investigação: afinal, quem impede as empresas de investirem? Ou, afinal, trata-se apenas de canalizar tudo para as empresas e para o investimento no imediato? Claro, não se comovem nada com o facto de que, nos países com sistemas científicos mais desenvolvidos e com aparelhos produtivos mais poderosos, a estratégia não é perguntar todos os meses pela “mais-valia económica” da investigação, mas antes investir fortemente na investigação fundamental e deixar que, com o tempo, parte dos resultados tenham impacte económico. Há dias, na televisão, o Prof. António Coutinho lembrava que a Suíça, para alcançar o seu alto desempenho económico e científico, não financia as empresas para elas tratarem da ciência, antes financia fortemente a investigação fundamental nas instituições de investigação – sem merecer contestação do presidente da FCT, que estava sentado à sua frente. Em artigo recente no Público, o Prof. Carlos Fiolhais repisava «o que recordou há semanas no Porto, numa conferência sobre Ciência, Economia e Crise, o físico espanhol Pedro Echenique. Em 1995, quando se discutia nos Estados Unidos uma diminuição do financiamento público à investigação científica, os CEO de 15 das principais empresas de base científico-tecnológica, como a IBM e a General Electric, subscreveram uma carta aberta pedindo o reforço da ciência fundamental. Queriam que o Congresso continuasse o apoio "a um vibrante programa de investigação universitária com visão de futuro"». Por cá, entretanto, as velhas teorias de “virar a investigação para a valia económica” continuam alegremente a fazer de conta que esse imediatismo deu resultado em algum lado. E não deu. Mas isso não interessa nada a quem não percebe que isto não é uma questão de nível do défice público este ano, mas antes uma questão de projecto para o país, para o país que nos sobreviverá.

Entretanto, a sustentação deste “discurso sobre os chupistas” assenta muito numa ideia de destruição da cultura e num ódio populista às “elites”. O ódio às elites é de consumo fácil e amplamente praticado. Medra bem na cultura da inveja (“a mim também cortaram, eles não são mais do que eu, de que se queixam”) e reforça-se na vingança contra “os grandes”: esses senhores, lá por serem doutores, pensavam que escapavam? A ideia é que um doutorado é um privilegiado e, portanto, alvo automático da justa fúria popular. Quem tem essa bizarra mania de gostar de estudar e investigar só pode ser um pedante – pois que pague pelo seu pecado. E, claro, tudo fica muito mais negro quando se deixam as “áreas nobres” e se começa a falar nas Inutilidades (antigamente conhecidas por Humanidades). Que se gaste dinheiro em engenharias, em biologias, em ciências da saúde e outras de “interesse visível”, concordamos, visto o evidente ganho social expectável. Quando se passa para as ciências socias, já a conversa muda: o que interessa a antropologia? o que interessa estudar história, se isso não dá para fazer empresas rentáveis? Obviamente, quando chegamos à filosofia o escândalo é máximo: se já é corrente a ideia de que é uma inutilidade, a coisa pia ainda mais fino quando se trata de “investir” nesses domínios especulativos. No concurso de 2013 para Investigador FCT, João Gomes André contou as cabeças e afirmou: «Em Filosofia ganharam... dois estrangeiros. E ambos na área da Filosofia da Linguagem. Portugueses, népia. Restantes áreas da filosofia, népia.» Neste último concurso para bolsas, segundo André Barata (na sua página FB), "A nível nacional, foram aprovadas apenas 4 bolsas de doutoramento em filosofia." A ideia geral é esta: para muita opinião que por aí anda, que se gaste em Ciência com maiúscula ainda vá lá, mas muitas áreas de investigação são desperdício: a área das Inutilidades é a cultura e isso vende menos do que um estábulo de treinos reprodutivos em canal aberto na TV.

Este “pensamento” anda por aí. Como tal, é o caldo de cultura dos Rui Ramos que perderam a vergonha. E isso é grave. Não deixa, contudo, de ser mais preocupante que alguns investigadores cedam mentalmente a este enquadramento e comecem a “pensar” à moda corrente. Por exemplo: se calhar vai ser impugnado o concurso Investigador FCT de 2013. A impugnação será avaliada na justiça, provavelmente. Trata-se de conhecer a extensão das faltas contra os regulamentos que terão sido da responsabilidade da FCT. Entretanto, entre os que “ganharam” o seu contrato, espalha-se a ideia: que aborrecimento, a impugnação vai prejudicar-nos, podemos perder esta oportunidade, em vez de se conformarem… Isto é: os que (alguns dos que) ficaram de dentro sentem-se incómodos, não por terem ficado “de dentro” à custa de um concurso com contornos estranhos, mas por protestarem os que, eventualmente, foram prejudicados. Este governo, nisso, é excelente: tem jogado sistematicamente em que umas vítimas sejam os polícias das outras. E alguns alinham. E, não esqueçamos isso, muitos praticantes de “ciências sérias” também aprovam que se reduzam os financiamentos para as supracitadas “Inutilidades”: afinal, quando a manta é curta, mais vale que fiquem destapados os teus pés do que fiquem os meus ao frio.

Não vale a pena fugir ao assunto: na batalha da investigação, o governo tem do seu lado o sentimento populista contra as elites (ou “elites”, se preferirem) e joga essa cartada, porque é mais uma oportunidade de mobilizar “as massas” contra um “grupo restrito” que interessa domesticar. O interesse daquelas declarações de Rui Ramos, onde o homem nos faz passar por parvos (escondendo que em Portugal se seguiram as melhores práticas ao nível internacional na promoção do sistema científico), é mostrar isso mesmo: nada disto é falta de jeito, esta é mais uma política deliberada para torcer o braço a sectores importantes da cultura nacional.

Entretanto, há por aí quem se meta nesta guerra só porque "defender o governo é necessário". Isso não é novo e não acabará depois deste governo. Também há por aí quem diga "ah, eu também já passei muitas dificuldades, não estou impressionado com o vosso projecto de vida interrompido". A miséria humana não acabará nunca, claro. A miséria exterior. Mas também a miséria interior. Também isso esta crise ajudou a compreender. E, por vezes, isso é o mais difícil de engolir.



ciência aplicada: desenvolver estudos na área do engarrafamento.



Carlos Fiolhais no Público: Educação, ciência e economia: um ministro pouco sábio. Deixo alguns recortes:

Pires de Lima, no seu mundo Superbock, acha que a escola tem de formar muitos meninos e meninas para alimentar os quadros empresariais. Olha para uma criança do 1.º ciclo e vê nela um gestor em potência. Não lhe interessa se ela vai dominar o Português, a Matemática ou a Física, para as quais as actuais horas lectivas parecem não chegar: tem é de dominar o Empreendedorismo.

Percebemos agora a razão dos cortes na ciência, com a redução drástica do número de bolsas: os investigadores não estão virados para o mundo das empresas. Estão a estudar linguística, topologia ou óptica quântica, em vez de se virarem para o fomento da indústria cervejeira. O ministro Pires de Lima vê um doutorando e acha um desperdício ele não estar a desenvolver estudos na área do engarrafamento.

Em 1995, quando se discutia nos Estados Unidos uma diminuição do financiamento público à investigação científica, os CEO de 15 das principais empresas de base científico-tecnológica, como a IBM e a General Electric, subscreveram uma carta aberta pedindo o reforço da ciência fundamental. Queriam que o Congresso continuasse o apoio "a um vibrante programa de investigação universitária com visão de futuro".

Acontece que o futuro costuma chegar pela mão de cientistas inovadores, em geral muito longe da “economia real”. Não faltam exemplos. O laser foi inventado há mais de 50 anos, numa equipa de ciência fundamental (ora cá está: a óptica quântica!) que trabalhava nos Bell Labs. Na altura foi chamado uma invenção à procura de aplicações. Hoje é o que se sabe: está por todo o lado, nos cabos ópticos, nos CD, nas cirurgias, no corte de materiais, nas luzes das discotecas e até nas caixas de supermercados, por onde passam os códigos de barras das cervejas. Com a orientação de Pires de Lima jamais teria havido lasers.

Fiolhais diz que Crato sabe disto tudo e quer que Crato explique tudo a Pires de Lima. Não. Crato sabe bem para que serve o que se está a fazer sob a sua tutela. Ouçam-se os seus guarda-costas ideológicos.


22.1.14

começa a perceber-se melhor como funciona esta FCT.


Do comunicado da Coordenadora e membros do Júri do Painel de Sociologia da FCT destaco este ponto:

Vimos por este meio comunicar a V. Exa. o nosso profundo desagrado e indignação em relação a alguns aspectos relativos ao processo de avaliação e à respectiva publicação dos resultados das bolsas atribuídas em 2013, que nos dizem respeito como membros do Júri:
(...)

2 - A alteração do resultado da avaliação por nós efectuada e aprovada em Ata a 6 de Dezembro de 2013. A ordenação das candidaturas assinada no dia 6 de Dezembro de 2013 não corresponde à ordenação dos candidatos divulgada pela FCT. Na etapa Pós-avaliação (período compreendido entre o fim da reunião e a divulgação dos resultados aos candidatos), foram introduzidas alterações irregulares à ordenação discutida e consensualizada durante a reunião final do júri, a qual foi feita em presença de duas técnicas da FCT. Esta alteração tem consequências graves porque o Júri não pode ser responsabilizado por uma avaliação que não realizou, para além de eventuais prejuízos ou injustiças daí recorrentes. Por outro lado, o Coordenador não pôde assumir uma das suas responsabilidades, tal como indicado no Guião, “Colaborar com a FCT na resolução de possíveis problemas e/ou imprevistos que possam ocorrer antes, durante ou após a reunião de Painel de Avaliação.”, visto que não foi chamado a participar em eventuais dúvidas ou problemas e é alheio a posteriores decisões à reunião final do Júri.

O comunicado completo pode ser lido aqui (pdf).

não seremos cúmplices.


João Teixeira Lopes, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publicou há pouco na sua página no Facebook uma transcrição de carta que enviou à Fundação para a Ciência e Tecnologia. Copio para aqui.

Ex.mo Senhor Presidente da FCT

As anomalias várias registadas no último concurso de atribuição de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento configuram um atentado grave à transparência e mesmo ao princípio de reconhecimento do mérito em igualdade de circunstâncias.
Para além dos resultados desmentirem o que foi oficialmente transmitido aos avaliadores de ciências sociais, letras e humanidades, pela anterior responsável do departamento de avaliação da FCT, em reunião plenária no Hotel Altis (nomeadamente a de que a linha de aprovação seria, em todas as áreas, correspondente a 10% do total de candidaturas apresentadas), constatou-se uma disparidade por domínios que penaliza claramente as ciências sociais, incluindo a sociologia, em cujo painel de avaliação estava inserido.
Mais grave ainda, vários resultados foram alterados pela FCT (conforme se poderá verificar pelo contraponto entre a ata assinada por todos os membros do painel e os resultados oficiais), prejudicando gravemente inúmeros candidatos.
Entendo que a política científica tenha referenciais e orientações que se alteram com o quadro do poder. Mas não posso ser cúmplice de processos de atropelo à transparência, ainda que legitimados por um qualquer fanatismo ideológico que perpassa o discurso da FCT.

Assim, enquanto a atual direção da FCT se mantiver em funções, recuso-me a desempenhar o papel de avaliador, por aquela não me merecer as condições mínimas de confiança.

Com os melhores cumprimentos
--
João Teixeira Lopes
Professor Catedrático da FLUP

(fonte)

CARTA ABERTA SOBRE A CIÊNCIA.


Disponibilizo aqui a CARTA ABERTA SOBRE A CIÊNCIA divulgada ontem pela Comissão Executiva do Conselho dos Laboratórios Associados. 2. O Conselho dos Laboratórios Associados reúne 26 laboratórios de investigação científica classificados como excelentes em avaliações internacionais e aos quais foi atribuído o estatuto de laboratório associado pela sua função de referência no sistema científico nacional. Os Laboratórios Associados reúnem cerca de 4300 doutorados.

CARTA ABERTA SOBRE A CIÊNCIA

Os resultados do concurso nacional de bolsas de doutoramento e pós doutoramento lançado em 2013 pela FCT foram agora tornados públicos.

Por decisão da FCT e do governo, foram atribuídas apenas metade das bolsas de doutoramento habitualmente concedidas, e menos de um terço das bolsas de pós-doutoramento. Depois de há poucas semanas de terem sido excluídos mais de 1000 investigadores doutorados enviando-os para o desemprego ou para o exílio forçado, esta nova decisão apenas parece confirmar a vontade de reduzir a comunidade científica portuguesa.

Tais medidas não resultam de cortes no orçamento da FCT, que se mantém quase idêntico ao do ano anterior. A questão não está pois na falta de recursos financeiros mas sim numa absoluta falta de conhecimento das regras elementares do desenvolvimento científico.

Reduzir drasticamente, como se pretende, a formação avançada de recursos humanos em ciência, e mandar embora grande número de cientistas qualificados, tem como consequência imediata reduzir a capacidade científica do País e a sua cultura científica e conduz ainda, inevitavelmente, à quebra de capacidade tecnológica do tecido empresarial português, atrasando a sua renovação e penalizando a sua competitividade.

Dois argumentos foram finalmente apresentados em defesa destas medidas, tomadas à revelia das instituições científicas e académicas.

O primeiro argumento, ditatorial, afirma sem vergonha que, tendo o sistema científico crescido muito haveria que “podá-lo”, isto é, mandar para o desemprego e para o exílio, a maioria dos mais jovens e mais capazes, há poucos anos recrutados por concurso público internacional.

O segundo argumento, contudo, tenta convencer-nos que nada mudou. O desemprego e emigração forçada de cientistas agora impostos pela FCT seria apenas, como ouvimos estupefactos, “uma mudança de paradigma”. O que eram dantes bolsas e contratos pagos pela FCT seriam doravante bolsas e contratos pagos por projectos científicos dos laboratórios, a financiar pela FCT. A ser verdadeira essa intenção teriam sido, primeiro, financiados projectos com fundos suficientes para contratar investigadores e, seguidamente, se alteraria o financiamento de bolsas e contratos. Mas nada disso aconteceu. Aconteceu, sim, termos hoje grupos científicos decapitados e muitos mais investigadores à procura de emprego no estrangeiro.

O CLA não quer acreditar que estas medidas tenham sido aprovadas pelo primeiro-ministro, ou pelo governo no seu conjunto, nem que tenham a concordância do parlamento ou o apoio do Presidente da República.

Acreditamos sim que todos os quadrantes políticos, sem excepção, designadamente os partidos hoje responsáveis pelo governo, estão unidos na aposta no desenvolvimento científico do País.

Por isso apelamos hoje de forma veemente a todos os responsáveis para a urgentíssima e indispensável inversão das medidas tomadas.

Comissão Executiva do Conselho dos Laboratórios Associados (CLA)
21 de Janeiro de 2014



NOTA (incluída na carta). Para além do facto de, no caso das 298 bolsas de doutoramento agora atribuídas, se destinarem a programas de doutoramento (nacionais e internacionais) que se iniciaram em Setembro/Outubro de 2013 e que se arriscam a ficar sem alunos, o que de mais grave decorre da análise rigorosa dos números é o brutal desinvestimento na formação avançada de recursos humanos (doutoramento e pós-doutoramento), sector em que o país é ainda fortemente deficitário. Se às 298 bolsas de doutoramento atribuídas no concurso nacional (3433 candidatos) adicionarmos as 431 bolsas de doutoramento dos novos Programas de Doutoramento FCT, resulta o número de 729 a comparar por exemplo com 872 em 2002, 2031 em 2007, 1640 em 2010 ou 1378 em 2011. Quanto às bolsas de pós-doutoramento que no presente concurso se ficaram pelas cerca de 210 (2100 candidatos), só em 1999 tiveram valor igual, pois de então para cá foram sempre atribuídas em número superior, mesmo muito superior como em 2006 (737), 2007 (914), 2008 (634), 2009 (690), 2010 (718), 2011 (mais de 670). Também os 1200 contratos de investigadores recrutados por concurso público internacional há 5 anos, já terminados ou em vias de terminar, foram até agora substituídos por apenas cerca de 400 contratos novos.

Proposta de errata ao programa de ciência do XIX Governo Constitucional.



Gonçalo Calado, que se identifica como "eleitor e biólogo", tem um texto de opinião no Público que assenta numa leitura do programa do actual governo. Dada a monstruosa desconformidade entre o programa e a prática deste governo, também agora em matéria de investigação, Gonçalo Calado supõe a existência de "erros tipográficos" no texto com que este governo se fez mandatar e sugere as respectivas erratas. No conjunto, o exercício demonstra bem o que está Crato a fazer: à ciência e à democracia. Deixo longas citações do texto (com o meu antecipado pedido de desculpas ao Público, que cito frequentemente de forma breve, mas que hoje tenho de abusar um pouco).


Fui ver o programa deste Governo e detectei algumas imprecisões às quais modestamente proponho uma correcção, a bem da coerência que tal documento impõe:

1. Página 122, terceiro parágrafo, onde se lê “Graças às políticas de investimento de sucessivos governos, a ciência em Portugal representa uma das raras áreas de progresso sustentado no nosso país, tendo vindo a dar provas inequívocas de competitividade internacional” deverá ler-se “A ciência, à semelhança de outras áreas de progresso do nosso país é despesista e tem de ser recalibrada, apesar de ter vindo a dar provas inequívocas de competitividade internacional”.

2. Página 122, quarto parágrafo, onde se lê “O programa deste Governo inclui, portanto, o compromisso de manter e reforçar o rumo de sucesso da ciência em Portugal”, deverá ler-se “O programa deste Governo inclui, portanto, o compromisso de reajustar e podar o rumo de sucesso da ciência em Portugal”.

(...)

4. Página 123, segundo objectivo estratégico, onde se lê “Investir preferencialmente no capital humano e na qualidade dos indivíduos, particularmente os mais jovens, sem descurar as condições institucionais que lhe permitam a máxima rentabilidade do seu trabalho” deverá ler-se “cortar preferencialmente no capital humano e na qualidade dos indivíduos, particularmente os mais jovens, em linha com os ajustamentos noutros sectores da sociedade, de modo a que estes últimos não se sintam inferiorizados, rumo à equidade laboral”.

5. Página 123, quarto objectivo estratégico, onde se lê “Assegurar a permanência dos melhores investigadores actualmente em Portugal e atrair do estrangeiro os que queiram contribuir neste percurso de exigência qualitativa” deverá ler-se “Assegurar a saída da zona de conforto dos melhores investigadores actualmente em Portugal e atrair do estrangeiro os que queiram contribuir neste percurso de precariedade colectiva”.

(...)

(...)

8. Página 123, terceira medida, onde se lê “Abrir anualmente, em data regular, concursos para projectos de investigação em todas as áreas científicas, permitindo assim um adequado planeamento de actividades e financiamento estável aos mais competitivos” deverá ler-se “Evitar abrir anualmente, em data regular, concursos para projectos de investigação em todas as áreas científicas, impedindo assim um adequado planeamento de actividades e financiamento estável a todos”.

9. Página 124, última medida, onde se lê “Apoiar a formação pós-graduada de técnicos e investigadores” deverá ler-se “Recalibrar a formação pós-graduada de técnicos e investigadores, em linha com os ajustamentos de outros sectores da sociedade”.


Por vezes, basta deixar falar este Governo para perceber o que é este Governo. Aconselho a leitura integral de Proposta de errata ao programa de ciência do XIX Governo Constitucional.

21.1.14

Programa Doutoral FCT "Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade".


As candidaturas ao Programa Doutoral FCT "Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade" estarão abertas a partir do dia 15 de Fevereiro de 2014 e o concurso para as 2 bolsas nacionais e 3 bolsas mistas, a atribuir no âmbito deste Programa, estará aberto de 15 de Fevereiro a 15 de Abril de 2014.

Aviso de abertura - Atribuição de bolsas de doutoramento: aqui (em pdf).

17.1.14

a distância entre a ciência e as empresas.


Pires de Lima lamenta distância entre a ciência e as empresas. Pires de Lima disse não ser possível “alimentar um modelo que permita à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real”, referindo o elevado nível de doutorados “per capita” em Portugal por oposição ao baixo número de doutorados nas empresas.

Claro que, falando de casos ainda mais graves, e perigosos para a calmaria nacional, como a Filosofia - mas a Filosofia não é ciência! é "conversa", razão pela qual nem nos devia fazer perder tempo... tal como a História, ou o Latim ou Grego...

Segundo André Barata (na sua página o FB), "A nível nacional, foram aprovadas apenas 4 bolsas de doutoramento em filosofia."

Quando ao episódio anterior do Investigador FCT, João Gomes André contou as cabeças e afirmou: «Em Filosofia ganharam... dois estrangeiros. E ambos na área da Filosofia da Linguagem. Portugueses, népia. Restantes áreas da filosofia, népia.»

E o Ministro da Economia, em socorro do Ministro Crato, quer mandar-nos para as empresas: que tal formar filósofos em sistema dual, entre a escola e a empresa, para se habituarem ao mundo da realidade?


Deixo-vos um texto que publiquei aqui há algum tempo, antecipando este discurso dos "empreendedores" para nos calcar a pedra em cima.

***

PEÇO IMENSA DESCULPA DE NÃO SERVIR DEVIDAMENTE O EMPREENDEDORISMO

Peço imensa desculpa de não ser operário qualificado. Sei lá, metalúrgico, talvez. Ainda há empregos para metalúrgicos? Não sei, mas metalúrgico parece-me uma profissão sólida, um operário à séria, um aristocrata da classe operária.

Pois, mas eu não sou metalúrgico. Um metalúrgico deve fazer falta à economia, não é? Já um médico, provavelmente não. Um médico é apenas uma ocasião de despesa: pessoas que querem cuidar da saúde, ou tratar a doença, ou minorar as penas, acabam por ocasionar mais despesa, coisa que só podem concretizar com a ajuda de médicos, enfermeiros, especialistas nisto e naquilo. Mas, enfim, apesar da despesa, há sempre quem não dispense um profissional da saúde, talvez médico ou enfermeiro seja uma boa profissão para fazer pela vida.

Só que eu, além de não ser metalúrgico, também não sou médico, nem enfermeiro, nem operador de nenhuma daquelas máquinas que fazem parte da parafernália dos meios auxiliares de diagnóstico. Podia ser advogado, que fazem sempre falta, nem que seja contra a nossa vontade, porque há sempre contendas e necessidade de nos desembaraçarmos delas. E um advogado é um especialista nas partes mais recônditas do Estado, uma espécie de meio médico e meio engenheiro da grande máquina da vida colectiva. Coisa em grande, portanto, além de ser coisa a que temos de recorrer em tanta tralha miúda.

Má sorte a minha: também não sou advogado. E, a esta altura, além dos advogados que pensam que eu não faço ideia do que eles sofrem (mas faço), e dos arquitectos que queriam construir o mundo e estão todos desempregados porque não há dinheiro para colar dois tijolos, e dos metalúrgicos que pensam que eu penso que a vida deles é fácil, e dos médicos e dos enfermeiros que pensam que eu brinco com a saúde, há uns tantos outros que imaginam que eu sou um inútil para a sociedade.

E pensam bem. Um tipo que diz que é filósofo, mas o que vem a ser isto. Para já, em Portugal ninguém é filósofo. Um tipo que estudou engenharia e se inscreveu na Ordem é engenheiro. Que estudou medicina e deu os passinhos necessários até estar nos registos centrais do império, é médico. E por aí adiante. Um tipo que estudou filosofia e se dedicou à filosofia é… “doutorado em filosofia”, ou “professor de filosofia”, mas não filósofo. Filósofo é só para os mortos de respeito. Só um delirante diz que é “filósofo”. É isso mesmo que eu sou e digo que sou. Mau, decerto, mas filósofo.

E é esse o problema. Como filósofo – e apesar de respeitar os colegas que fazem pela vida e tentam arranjar ocupações que sejam vendáveis – não me dá jeito nenhum criar uma empresa para vender filosofia. O empreendedorismo, comigo, está tramado. Aí tenho logo um diploma de inútil. Nada do que eu faço dá exactamente para ganhar dinheiro na praça – e quem não serve para “mexer a economia” é um parasita. Já o outro dizia que os historiadores não servem para nada. Mas a filosofia ainda serve menos para coisa alguma. É pior ser filósofo do que ser teólogo, porque pelo menos o teólogo trabalha com um assunto graúdo: mesmo que não exista, o assunto é graúdo. Já o filósofo trabalha com assuntos com que qualquer comentador televisivo se desembaraça bem sem mais demora. Se o outro tivesse escolhido fazer o curso por equivalências em filosofia, faria uma lista de discursos como material de equivalência e encontraria alguém para lhe dar razão.

Talvez eu devesse enviar currículos a propor-me para empregos na economia real. Se não fizer isso, nem sequer posso mostrar que estou interessado na vida activa e sou considerado um parasita sem emenda. Estou a percorrer a lista telefónica à procura de empresas que me pareçam potencialmente interessadas em recrutar filósofos. Já vou na letra Z e ainda não catei nada que me cheire. Faltará muito para chegar ao fim da lista?

Então, só me resta, mais uma vez, pedir desculpa por não ser operário metalúrgico. Não, que disparate, operários metalúrgicos são gente que até poderia fazer greve se fosse o caso. Indiferenciado. Indiferenciado é que é: a máxima flexibilidade, a máxima disponibilidade, a máxima liquidez: ir pelo cano é a ocupação preferida do indiferenciado… e como isso é agradável a quem tem de “fazer mexer a economia” (a sua economia). Porque a filosofia, vendo bem, nunca serviu para nada. Claro, podemos suportar o Sócrates e o Platão, o Hobbes e o Hume, o Russell e o Heidegger, e, vá lá, mais meia dúzia, para enfeitar o mundo: mas doze ou treze por milénio chegam bem. Agora, andar por aí e não ser pessoa que possa, ao menos, criar uma PME, isso é que não se compreende.

Má sorte a minha não terem fechado a tempo os cursos de filosofia.

(Publicado originalmente aqui)


16.1.14

uma ideia para Portugal.



Anselm Kiefer, Volkszählung (1991) [fotos de Porfírio Silva]

aposta na ciência ?


Espero que não seja disto que estão a falar.



Zico e o filósofo.

14:09


Pedro Galvão e a ética e os animais e nós. Uma pequena entrevista que é uma grande demonstração da utilidade de ter filósofos a pensar nos problemas da cidade: serenidade; capacidade para identificar as partes de um problema e olhar para o assunto sem amálgamas; critérios para olhar para o mundo que, podendo até não ser os nossos critérios, fornecem um padrão de razoabilidade.

Entrevista a Pedro Galvão: 'A preocupação com o destino do Zico foi absolutamente desproporcionada'.

e não se pode estrangulá-los?

11:27

Claro que pode:

"A nível nacional, foram aprovadas apenas 4 bolsas de doutoramento em filosofia."

(leio na página FB do André Barata; ontem deixei dados globais; estamos à espera que a FCT explique o que quer dizer com aquela história de que até aumentou o investimento)

15.1.14

se querem investigar, emigrem para as Maurícias.


A Fundação para a Ciência e a Tecnologia divulgou ontem os resultados do concurso nacional de bolsas. Aos poucos vamos percebendo quais são os números agregados e o que significam.

Parece que a mancha geral tem este aspecto:

Quanto a bolsas de doutoramento, dos 3433 candidatos foram aprovados 9% (298).
No que toca a bolsas de pós-doutoramento, de cerca de 2100 candidatos terão sido aprovados 210 (10%).

Para termos a noção do que isto significa: nas bolsas de doutoramento, se for correcta a suposição de que serão este ano atribuídas todas as cerca de 400 bolsas previstas no primeiro concurso para Programas Doutorais (o que não é de todo certo), o resultado global significa um retrocesso a números de 2003. Sem essas bolsas, este é o pior número de sempre (desde 1994).

(Acrescento. O Público tem números ligeiramente diferentes, mas não muda nada na substância.)

12.1.14

Coriolano: Shakespeare e a nossa crise.

13:23

(Foto de Victot Hugo Ponte no sítio do TNDMII)

Ontem fomos ao Teatro Nacional D. Maria II ver "Coriolano", de William Shakespeare, peça escrita nos primeiros anos do século XVII e que agora é apresentada como uma reflexão pertinente sobre as nossas crises actuais. É dito que as escadas onde tudo se passa nesta encenação são como as escadas do Palácio de S. Bento, onde funciona o nosso parlamento. Ainda bem que disseram, porque não se nota: mas anota-se a intenção.

Um texto do programa, depois de citar uma frase da peça - "A fome é grande, o povo está revoltado" -, diz que Coriolano é o "protagonista antipático que a genialidade de Shakespeare torna simpático a nossos olhos". Duvido que Shakespeare tenha querido tornar Coriolano simpático ou antipático aos nossos olhos: acredito mais que tenha querido baralhar os dados para nos obrigar a pensar, em vez de nos quedarmos sentados nos preconceitos habituais. De qualquer modo, a tentativa de dar um aspecto "subversivo" a este espectáculo neste momento, parece-me uma leitura claramente desajustada: se esta peça, em vez de ser entendida como uma reflexão sobre os perigos que corremos, fosse entendida como um programa, ou como um desafio, seria uma peça anti-democrática. Se há ideia central em "Coriolano" é a ideia de que a representação do povo na assembleia é pura demagogia e manipulação, acompanhada da ideia de que o povo é fraco e deita tudo a perder quando não se deixa conduzir pelas classes mais astutas que sabem como as coisas se fazem. Mesmo que o texto de partida seja mais complexo, a encenação reforça este elemento anti-democrático: ridiculariza a populaça e os seus representantes. Daí que, francamente, estranhe que o espectáculo esteja a ser entendido como uma espécie de oportuna reflexão sobre a nossa crise. Quer dizer: o espectáculo pode até ser uma reflexão sobre a nossa crise, mas, nesse caso, será mais um aviso contra os perigos de deixar o povo falar do que um apelo a uma melhor participação do povo. E, isso, se é sobre as nossas crises actuais, seria uma reflexão atirando bastante ao lado do alvo.

Quanto ao resto: gostei das interpretações que dão vida às personagens que se destacam individualmente e gostei do movimento geral, que não se perde em rodriguinhos e trata apenas do essencial, sem distracções inúteis.

11.1.14

Actas da delegação paduana.

13:14


ACTAS DA DELEGAÇÃO PADUANA (EXCERTO EUSÉBIO)


I

Quando as televisões espalharam a notícia
da morte de Santo António de Lisboa
e as mais perras das línguas se soltaram
por comoção mais do povo que cardinalícia
vieram primos, afilhados e toda a espécie de parentes
de cada canto da terra,
uns mais gentios, outros mais crentes,
a maioria assim-assim, gentes
de planetas longínquos, santos de outras religiões,
que são planetas ainda mais remotos
dentro das pessoas, vieram paixões,
variados praticantes da meditação, cada um com sua pose,
até um descendente de Fernão Mendes Pinto,
só não vieram adeptos da gnose,
um chinês – minto: um mongol dos antigos,
um mestre de uma ordem militar de um século anacrónico
(Dom Paio Peres Correia, por poucos anos torto neste filme
qual daltónico em fitas a pretos e brancos,
os mesmos que bebiam em suaves solavancos
todo o cálice de absurdo, como se o tempo fosse achatado
entre uma carpideira e um surdo),
e já Nuno Brandão inventava, à pressa, aquela peça
moderna e arrojada, credo, sem teologia nem nada,
de santos antónios em barros de várias cores,
alinhados nas prateleiras do el corte inglés
a fazer a bandeira garrida dos novos amores,
e entrou um peixe dizendo que vinha a recado
do Padre António Vieira, por via de seu testamento,
e que, sendo peixe miúdo, era legado
também dos graúdos e dos que mais devoram,
como se o sermão tivesse convertido alguém,
e estávamos neste clímax de raridades metafísicas,
castigando os poucos cépticos que restavam,
que nestes tumultos as dúvidas ficam sempre tísicas,


II

quando entrou sisudamente
na cidade uma delegação:
do Reino de Pádua mandavam dizer
que os conventos de São Vicente de Fora, em Lisboa,
e de Santa Cruz, em Coimbra, estavam muito atrasados
na pessoal história do santo,
já face à pregação contra os albigenses,
a sua mais espinhosa coroa de glória,
quanto mais comparados com a primavera
do teólogo, do místico, do asceta e do notável orador e taumaturgo
que verdadeiramente Lisboa não sabia quem era
se saber de alguém não é agarrá-lo pelos fundilhos
à porta da morte, a última porta de uma vida séria,
e olhá-lo com os nossos pobres olhos cansados de tanta dor e miséria
que são os olhos que olham sempre primeiro
para os pés do seu próprio dono.


III

Vista a afronta da paduana delegação
– um santo formoso, se o é, afinal, nunca renega o solo natal –
o povo, preclaro, expulsou a representação

hospes hostis
(não sendo para trabalhar a bem da nação,
já Eusébio o ouvira da boca do Professor Salazar,
não há cá Inter nem Milão, você é nosso não é para abalar,
– Santo António teve sorte, foi para Pádua –,
ir enriquecer para o estrangeiro, ora, não lembra ao demo,
não o faça o dinheiro olvidar que Moçambique é Portugal,
a pátria, pantera, a Pátria, o clube, Pantera,
o clube, que é a pátria da segunda circular – eh, mainato!)

o povo, pois claro, guardou em escuras caves seguras
as bandeiras dos visitantes,
«não fossem molhar-se desfraldadas,
nem com gotas! nem por instantes!»
mas rasgou os tratados ecuménicos
e iniciou subscrição para uma estátua
no exacto centro do terreiro do paço, de costas para as águas,
uma estátua que abençoasse os que partiam
à conquista, e travasse o passo, à conta de mágoas,
aos que chegavam ignorando as palavras secretas da irmandade do panteão.


IV

Vou rever o meu testamento vital:
tinha-me esquecido do problema do panteão:
isto ainda acaba mal: também o grego Ulisses ainda hoje ignora
que Joyce, my name is Joyce, James Joyce,
meteu a Odisseia num dia só, mais hora menos hora.
Que é quanto dura a vaidade, a nossa e toda.




10.1.14

um filósofo entre engenheiros.


O primeiro número de 2014 da Newsletter do DEEC (Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores) do Instituto Superior Técnico, que está agora em distribuição, diz que “pela primeira vez (…) entrevistamos alguém cuja formação de base não é em ciência ou tecnologia”. E acrescenta: “Porfírio Silva, doutorado em Filosofia, colabora num grupo de investigação em engenharia, no ISR. Temos oportunidade de entrever as ideias em que tem trabalhado, concretizadas na Robótica Institucionalista, uma abordagem para a robótica colectiva. Com exemplos simples, Porfírio Silva torna clara a relevância dessas ideias, quer para a robótica, quer para a filosofia. Finalmente, fala-nos da forma como vê a sua experiência de colaboração numa comunidade que não é (era?) a sua.”

Para facilitar a leitura, transcrevo aqui a dita entrevista. No final, deixo o link para o formato original deste número da Newsletter.

***

Porfírio, o que faz um filósofo num grupo de investigadores em engenharia?

A minha investigação de doutoramento procurou compreender como é que certas concepções acerca dos humanos se infiltraram em algumas práticas científicas, designadamente na Inteligência Artificial e em certos ramos da robótica. Por exemplo, nos primórdios da IA havia uma concepção demasiado intelectualista da inteligência, dando menos atenção a factores como as emoções ou o controlo do corpo situado num certo ambiente físico. Curiosamente, certos preconceitos científicos acerca do humano correspondem a preconceitos filosóficos muito enraizados. Pude verificar, com entusiasmo, que houve um avanço notável nessa matéria, em poucos anos, por exemplo na robótica colectiva ou na robótica do desenvolvimento. Isto levou-me a concluir a tese de doutoramento (em filosofia da ciência) com um atrevimento, que consistiu em propor uma nova abordagem para a robótica colectiva, aquilo que chamei Robótica Institucionalista: gerir colectivos de robôs com “instituições” inspiradas nas instituições das sociedades humanas. Isso levou o Pedro Lima a propor-me tentar, aqui no ISR, contribuir para tentar transformar essa ideia filosófica em alguma coisa de concreto em termos de robótica colectiva. Foi assim que vim aqui parar.

Antes de te pedir para exemplificar em que pode consistir essa concretização, gostaria que clarificasses a ideia filosófica. Vês o objectivo último de um colectivo de robôs como sendo a replicação de um colectivo de humanos? Ou vês a replicação de um colectivo de humanos como um meio, isto é, como uma possível solução para problemas que envolvem colectivos de robôs com os mais variados objectivos?

O que mais me interessa são os cenários mistos: humanos e robôs que partilham o mesmo espaço social. Nesse cenário, a ideia é procurar que os humanos possam comportar-se informalmente (quer dizer, sem precisarem de nenhuma preparação especial, porque os seus comportamentos habituais servem para a interacção com os robôs). Só assim os robôs podem sair de ambientes de especialistas e podem entrar no mundo quotidiano. Ora, isto implica conhecer os humanos, tanto como controlar os robôs. Creio que este problema terá aplicação corrente dentro de não muitos anos.

Podes então exemplificar o que seria um cenário real para a Robótica Institucionalista? Existe já algum colectivo de robôs a funcionar nesses termos ou é trabalho em progresso?

Estou a dar uma pequena contribuição para um projecto europeu liderado pelo ISR (MOnarCH), iniciado em 2013, que constitui exactamente o tipo de cenário que nos interessa: robôs, a funcionar na ala pediátrica de um hospital oncológico, respeitando os exigentes constrangimentos físicos de um cenário real desse tipo e respeitando os apertados critérios éticos dessa situação. Espera-se que os robôs se envolvam em situações com os pacientes (por exemplo, colaborando em jogos ou na escolinha que funciona no hospital), de tal modo que melhorem a qualidade de vida daquelas crianças. Claro que a minha abordagem é um contributo muito pequeno, mas procura usar conceitos institucionalistas (como normas sociais e papéis sociais) para conceber o controlo dos robôs nesse ambiente social. Quem tem dado um desenvolvimento robótico mais específico a esta abordagem é o José Nuno Pereira, que está no programa doutoral conjunto com a EPFL, e que só está à espera de defender a tese. Ele concebeu uma metodologia, a partir das redes de Petri, para construir controladores robóticos que combinam o controlo do comportamento individual dos robôs com o controlo do enquadramento institucional. Portanto, há uma direcção clara: usar conceitos institucionais para gerir ambientes mistos muitos robôs para muitos humanos, em cenários que tenderão a tornar-se correntes no futuro.

Os robôs actuais são (ainda?) muito diferentes dos que a imaginação humana foi criando. As limitações nas tarefas que podem ser realizadas automaticamente são claras para os engenheiros mas nem sempre para alguém de fora do meio. Foste surpreendido neste sentido? Estas limitações foram/são de alguma forma impedimentos para experiências que tinhas/tens em mente realizar?

Uma das coisas que me surpreenderam foi exactamente isto: é tudo tão difícil de fazer, especialmente com robôs reais! Há muita coisa que não se pode experimentar ao nível que me interessa (tendencialmente, populações de agentes encorpados, naturais e artificiais, heterogéneos e em grande número), porque não é fácil nem barato ter um grande número de robôs, nem é fácil fazer o controlo básico dos mesmos, especialmente se os queres a interagir com humanos. Do ponto de vista institucionalista não me interessam muito, por exemplo, os problemas de navegação ou de manipulação, mas sem isso é difícil fazer experiências de mais alto nível que tenham sentido. Por vezes temos de passar para a simulação, mas aí perde logo grande parte do realismo e facilmente atiras problemas para baixo do tapete.
Este parece-me, aliás, um problema mais geral. Acho que a “propaganda científica” (divulgação, para ser mais simpático) dá aos leigos uma imagem demasiado cor de rosa do que já se pode fazer, certamente para atrair o interesse das pessoas e o apoio à robótica, mas com potenciais efeitos perversos. Foi-me contado no Japão que, após as complicações com a central nuclear de Fukushima, a Honda recebeu uma quantidade enorme de mensagens protestando por eles não mandarem o robô ASIMO, um humanóide muito popular, para os locais contaminados, em vez das pessoas. Qualquer técnico sabia que isso não era possível, nem útil, mas o público tinha sido induzido em erro. Ao mesmo tempo, claro que havia imensa robótica envolvida na situação, mas as máquinas que interessavam naquele cenário não eram humanóides nem nada que se parecesse. Quer dizer: a percepção pública está contaminada por uma comunicação errada, que distorce a compreensão dos avanços reais e das dificuldades. Há imensa interferência dos algoritmos na vida real, mas em aspectos menos vistosos: por exemplo, a negociação automática já é responsável por cerca de metade da actividade nos mercados financeiros electrónicos globais, de tal modo que em muitos casos não é possível saber se estás a negociar com pessoas ou com computadores, mas isso tem menos impacto no imaginário das pessoas porque não envolve robôs fantásticos. Acho que é preciso reconverter o imaginário popular para o tornar mais compatível com o que os cientistas realmente pensam seja realista ou irrealista.

Achas que o ir além da simulação, o procurar situações realistas (preocupações naturais em investigação em engenharia), são mesmo importantes para a filosofia? Isto é, o desenvolvimento de ideias filosóficas depende deste tipo de concretização?

É provável que a maioria das pessoas acreditem que em filosofia o pensamento é “livre”, no mau sentido: pode pensar-se o que se quiser, desde que não se entre em contradição. Eu acredito, pelo contrário, que a maior parte dos cenários teoricamente concebíveis (acerca de como funciona o mundo) não passam de cenários; acredito na importância da contingência: há imensas coisas que podiam ser de inúmeras maneiras diferentes, mas na realidade são apenas de uma determinada maneira. Assim sendo, creio que qualquer ideia acerca do mundo só tem a ganhar se aceitar confrontar-se com a prática, com o teste do material. Claro que não pretendo reduzir a filosofia à experimentação, até porque a filosofia tem, com a sua especulação ordenada, contribuído para incentivar a exploração de caminhos muito úteis à ciência. Mas acredito que todo o pensamento ganha em encontrar espaços onde a experiência o pode colocar em causa. Há imensas soluções que parecem funcionar em simulação, mas passam mal o teste de serem aplicadas no real físico. Julgo ser um enorme privilégio para um filósofo ter um espaço de investigação onde se procurem dar concretizações “de engenheiro” a pelo menos alguns aspectos das suas ideias filosóficas.

Para terminar, gostaria de saber como vês, dessa tua posição que me parece de charneira, o relacionamento humanidades / ciências. As dificuldades de comunicação entre as duas culturas apontadas pelo C. P. Snow há meio século continuam actuais? Como tem sido a tua experiência?

A comunicação continua a ser difícil, não só entre as humanidades e as ciências, mas mesmo entre diferentes disciplinas científicas. E acho que a situação só tem vindo a piorar. O enorme terreno da investigação é cada vez mais dividido em talhões diferentes, cada vez mais especializados, com linguagens cada vez mais divergentes. Estando a trabalhar numa zona de fronteira tenho tido a experiência, por exemplo, de como é difícil escrever um artigo usando ao mesmo tempo conceitos da filosofia, das ciências sociais e das ciências da computação, porque o resultado é de difícil leitura para toda a gente. Tal como é difícil fazer passar projectos que se coloquem nessa intersecção. Julgo que se trata de um problema grave, porque a excessiva especialização e a separação das linguagens limita até certo ponto a exploração de abordagens alternativas. Creio que as dificuldades de comunicação entre as duas culturas de Snow é um problema que não está em vias de se resolver, mas de se agravar. E, falando agora contra a minha dama, vejo com preocupação que haja muita gente das Humanidades pouco consciente da utilidade e da beleza da investigação científica. Mas também me preocupa que alguns espíritos mais científicos revelem um certo desprezo por disciplinas como a filosofia. Felizmente, há, em todos os lados, quem quebre barreiras, mas a lógica das organizações e das carreiras joga a favor de um certo fechamento dentro das especialidades, desincentivando os cruzamentos mais sistemáticos. O que é uma pena.





9.1.14

Eusébio, «mainato».

O Totem Máquina.


As formas concretas de sociabilidade dos humanos são crescentemente influenciadas por novos tipos de objectos. Agentes artificiais ou «objetos inteligentes» estão cada vez mais presentes nas relações entre humanos no contexto social. Fenómenos como a «especulação automatizada» ou a «Internet das coisas» exemplificam a metamorfose de objetos com crescente impacto em domínios específicos da interacção social. Neste estudo interroga-se esta realidade com os instrumentos do debate em Antropologia sobre o totemismo e animismo nas sociedades não-Ocidentais ditas primitivas. Este debate, que teve início há algumas décadas e ainda prossegue, fornece conceitos que ajudam a questionar ideias e experiências históricas das Ciências do Artificial (especificamente a Inteligência Artificial). A partir deste ponto de vista são também postos em questão fenómenos mais recentes.

Este é o resumo do meu artigo "O Totem Máquina. O Futuro da Identidade e o Futuro da Comunidade na Máquina Universal", publicado na Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Série de Filosofia, no volume de 2012 (apesar de escrito e publicado em 2013), que passou agora a estar disponível gratuitamente em linha: basta clicar aqui.

Este texto teve origem numa palestra que dei na Universidade de Coimbra, a 31 de Maio de 2012, no Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, a convite do Professor Luís Quintais, a quem agradeço ter-me levado para estes cruzamentos (que, aliás, tiveram muito a ver com a minha posterior ida e estadia para o Japão durante cinco meses de 2013).


8.1.14

Tal pai, tal filho.


Fomos ver "Tal pai, tal filho", do realizador japonês Hirokazu Koreeda. O filme é apresentado como o desenvolvimento dramático de uma troca de bebés à nascença, só esclarecida por volta dos seis anos de idade das crianças envolvidas. Toda a dialéctica entre natureza e cultura está envolvida nas duras opções entre sangue e amor que esta situação coloca em jogo. Já por esse lado o filme valeria a pena, sendo que tudo é tratado com fina sensibilidade, sempre rodeada pelos perigos da delicadeza japonesa (espécime que pode tornar-se cortante facilmente).
Contudo, conhecendo um pouco dos actuais debates e dilemas da sociedade japonesa, nota-se que o verdadeiro tema do filme é outro: o desequilíbrio das relações familiares, com os homens a tornarem-se estranhos às suas famílias, especialmente aos seus filhos, em nome da carreira e do sucesso. Apesar de uma certa "preocupação burocrática" não desarmar, dando a ideia de que os pais continuam a ser (bons) pais mesmo assim. O filme é, para o Japão do momento, um verdadeiro filme de intervenção: um grito pela humanidade da família, "pais, precisam-se". Desse ponto de vista, o episódio narrado não é uma curiosidade, é antes uma questão para todos. Também por cá.
O único enviesamento grave do filme é fazer de conta que esta dificuldade só conta para os homens, quando ela é cada vez mais um factor decisivo no estatuto social da mulher e nas relações entre homens e mulheres no país do sol nascente.
Um filme a ver. Com olhos de ver,  não com olhos de crítico apressado.

licença para caçar drones.

7.1.14

melhorar a democracia.

13:40

Porque «o sistema português (...) é porventura o sistema nas democracias consolidadas que menos liberdade de escolha dá aos eleitores» e porque acho que esse é um grande problema da nossa democracia, acho que esta ideia é um bom ponto de partida: “A proposta do Pedro Magalhães”.

6.1.14

a morte de uma celebridade.


Quando as televisões começaram a espalhar a notícia
da morte de Santo António de Lisboa,
abrindo o rio de respostas electrónicas enredadas
que embrulham sempre estes novelos colectivos,
e chegaram primos, afilhados e toda a espécie de parentes
vindos de cada canto da terra, do mar e do ar,
de planetas longínquos, santos de outras religiões,
que são planetas ainda mais longínquos mesmo quando
dentro das pessoas humildes se encontram,
praticantes da meditação em variados tons,
um descendente de Fernão Mendes Pinto, um mongol dos antigos,
um mestre de uma ordem militar de um século anacrónico
(estranho que tantos tenham notado que Dom Paio Peres Correia
ficava, por poucos anos, mal neste filme,
os mesmos que bebiam piamente todo o cálice de absurdo
naquele momento, naquela gente, naquela conversa
como se o tempo fosse achatado),
e entrou um peixe dizendo que vinha a recado
do Padre António Vieira, por via de seu testamento,
e que, sendo peixe miúdo, trazia delegação
também dos grandes e dos que mais devoram,
como se o sermão tivesse convertido alguém,
e estávamos neste clímax de raridades metafísicas,
num ponto bacanal de tristezas sortidas,
pensavam os poucos cépticos, ou cínicos, que sejam,
quando entrou sisudamente
na cidade uma delegação:
do Reino de Pádua mandavam dizer
que os conventos de São Vicente de Fora, em Lisboa,
e de Santa Cruz, em Coimbra, estavam muito para trás
na história pessoal do santo, muito atrasados
até face à pregação contra os albigenses,
a sua coroa de glória mais espinhosa,
quanto mais quando comparados com a primavera
do teólogo, do místico, do asceta e do notável orador e taumaturgo
que verdadeiramente Lisboa não sabia quem era
se saber de alguém não é agarrá-lo pelos fundilhos
do pequeno quadrado de terra que compreendemos
e vemos com os nossos pobres olhos cansados de tanta dor e miséria.
Que são os olhos que olham sempre primeiro
para os pés do seu próprio dono.

quantos Eusébios vivos vale um Eusébio morto?

11:47

Agora está toda a gente a chorar pelo Eusébio, mas uma equipa de artistas e empreendedores andou anos a querer montar um espectáculo de teatro multimédia para contar a história de Eusébio e não encontrou vontades suficientes para criar as condições para tal. Como diz o Carlos Fragateiro, talvez agora se consiga, porque os portugueses gostam mesmo é de mortos.

Isto diz muito sobre nós, sobre o que somos colectivamente - e sobre a mascarada mediática em que se transformou parte da nossa vida pública. Parece que tendemos a achar lindíssimas as celebrações dos mortos, tanto quanto tendemos a não ligar peva às celebrações dos vivos. Eusébio merecia menos a celebração enquanto era vivo? Que coisa estranha. E que coisa tão bizarra que, em nome da celebração do morto, apareça quem se incomode por se querer falar de quem quis celebrar o vivo sem esperar que ele morresse. Claro, a celebração dos mortos dá sempre mais lucro, ou mais juro, ou lá o que é. Felizmente, Eusébio não era Prémio Nobel da Literatura, causando assim menos engulhos aos que têm óculos especiais (ideológicos) para medir o calibre da celebridade...

Também estive (mínima, remotamente) implicado (como "apoiante" promitente) naquela iniciativa de festejar Eusébio em vida. Embora agora não ande por aí a reclamar-me como grande admirador de Eusébio. Simplesmente, respeito mais os que se lembram de celebrar as pessoas em vida do que sou capaz de respeitar os guardiões dos mortos famosos.

5.1.14

"se não tem onde deixar a criança, arranje outro emprego".

16:54


Eu não vou explicar a história toda, porque outros já a contaram com todos os episódios. Deixo o link vindo de Aveiro, para o texto de Miguel Pedro Araújo: leiam e sigam os pormenores, ficarão a perceber como aquela frase foi dita a uma mãe que trabalha - neste Portugal que já foi de Abril.

Sim, o Portugal de Abril foi um país onde as pessoas tinham vergonha de ser tão más, tão despudoradamente más. Não conheço nenhum dos intervenientes, não há nada de pessoal em sublinhar esta história. Leio tudo como quem lê uma peça de teatro onde as personagens são tipos, não vizinhos concretos. Onde não se conta uma historieta, mas uma moral. Ficarão assim a saber que a língua portuguesa permite escrever barbaridades, permite mostrar o esplendor da desumanidade.

Leiam e façam os vossos cartões: precisamos conhecer os rostos dos nossos inimigos, dos bárbaros que nos invadiram pelas portas grandes, cheios de honrarias e títulos profissionais, para mais desprevenidos nos apanharem e destruírem.


Oração de Domingo.

António tem uma licenciatura em pintura por uma grande escola. Fez um curso de teatro de um ano. Faz teatro amador. E trabalha num café para ganhar a vida. António não parece ter muitas teorias acerca da competitividade da economia nacional. António não conhece muita gente que justifique tudo com a competitividade da economia nacional. António faz pela vida, mas faz pouco por quem faz todos os dias a pequena teoria dos instalados. António talvez nem se aperceba de que há gente a receber boas reformas protegidas da ganância governamental que não se coíbe de protestar contra as reformas dos demais. António persegue um sonho de artista, sabendo como isso é desprezado pelos arautos da competitividade nacional, os arautos encastrados nos seus privilégios sempre a berrar contra os privilégio dos outros. António é um bom nome para nome de português. Contracenar com António é uma aprendizagem da gente que persegue um sonho desprezado pela arrogância dos propagandistas, desprezado pela insensibilidade dos inimigos aquartelados do lado de dentro das nossas próprias muralhas. Tem um bom domingo, António.

4.1.14

análise do pântano.

12:28

À ESPERA DOS BÁRBAROS
por Constantino Cavafy



O que esperamos nós em multidão no Forum?

          Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

          É que os Bárbaros chegam hoje.
          Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
          Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

          Porque os Bárbaros chegam hoje.
          E o Imperador está à espera do seu Chefe
          para recebê-lo. E até já preparou
          um discurso de boas-vindas, em que pôs,
          dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?


          Porque os Bárbaros chegam hoje,
          e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

          Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
          e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

          Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
          E umas pessoas que chegaram da fronteira
          dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.

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(tradução de Jorge de Sena)

3.1.14

a essência da política governamental.

16:17

A essência da política deste governo nem sequer é empobrecer-nos.

A essência da política governamental é que vivamos em incerteza. É transformar-nos em seres da terra do arbítrio.

Eles sabem que o medo é a arma mais extensa.