O primeiro número de 2014 da Newsletter do DEEC (Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores) do Instituto Superior Técnico, que está agora em distribuição, diz que “pela primeira vez (…) entrevistamos alguém cuja formação de base não é em ciência ou tecnologia”. E acrescenta: “Porfírio Silva, doutorado em Filosofia, colabora num grupo de investigação em engenharia, no ISR. Temos oportunidade de entrever as ideias em que tem trabalhado, concretizadas na Robótica Institucionalista, uma abordagem para a robótica colectiva. Com exemplos simples, Porfírio Silva torna clara a relevância dessas ideias, quer para a robótica, quer para a filosofia. Finalmente, fala-nos da forma como vê a sua experiência de colaboração numa comunidade que não é (era?) a sua.”
Para facilitar a leitura, transcrevo aqui a dita entrevista. No final, deixo o link para o formato original deste número da Newsletter.
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Porfírio, o que faz um filósofo num grupo de investigadores em engenharia?
A minha investigação de doutoramento procurou compreender como é que certas concepções acerca dos humanos se infiltraram em algumas práticas científicas, designadamente na Inteligência Artificial e em certos ramos da robótica. Por exemplo, nos primórdios da IA havia uma concepção demasiado intelectualista da inteligência, dando menos atenção a factores como as emoções ou o controlo do corpo situado num certo ambiente físico. Curiosamente, certos preconceitos científicos acerca do humano correspondem a preconceitos filosóficos muito enraizados. Pude verificar, com entusiasmo, que houve um avanço notável nessa matéria, em poucos anos, por exemplo na robótica colectiva ou na robótica do desenvolvimento. Isto levou-me a concluir a tese de doutoramento (em filosofia da ciência) com um atrevimento, que consistiu em propor uma nova abordagem para a robótica colectiva, aquilo que chamei Robótica Institucionalista: gerir colectivos de robôs com “instituições” inspiradas nas instituições das sociedades humanas. Isso levou o Pedro Lima a propor-me tentar, aqui no ISR, contribuir para tentar transformar essa ideia filosófica em alguma coisa de concreto em termos de robótica colectiva. Foi assim que vim aqui parar.
Antes de te pedir para exemplificar em que pode consistir essa concretização, gostaria que clarificasses a ideia filosófica. Vês o objectivo último de um colectivo de robôs como sendo a replicação de um colectivo de humanos? Ou vês a replicação de um colectivo de humanos como um meio, isto é, como uma possível solução para problemas que envolvem colectivos de robôs com os mais variados objectivos?
O que mais me interessa são os cenários mistos: humanos e robôs que partilham o mesmo espaço social. Nesse cenário, a ideia é procurar que os humanos possam comportar-se informalmente (quer dizer, sem precisarem de nenhuma preparação especial, porque os seus comportamentos habituais servem para a interacção com os robôs). Só assim os robôs podem sair de ambientes de especialistas e podem entrar no mundo quotidiano. Ora, isto implica conhecer os humanos, tanto como controlar os robôs. Creio que este problema terá aplicação corrente dentro de não muitos anos.
Podes então exemplificar o que seria um cenário real para a Robótica Institucionalista? Existe já algum colectivo de robôs a funcionar nesses termos ou é trabalho em progresso?
Estou a dar uma pequena contribuição para um projecto europeu liderado pelo ISR (MOnarCH), iniciado em 2013, que constitui exactamente o tipo de cenário que nos interessa: robôs, a funcionar na ala pediátrica de um hospital oncológico, respeitando os exigentes constrangimentos físicos de um cenário real desse tipo e respeitando os apertados critérios éticos dessa situação. Espera-se que os robôs se envolvam em situações com os pacientes (por exemplo, colaborando em jogos ou na escolinha que funciona no hospital), de tal modo que melhorem a qualidade de vida daquelas crianças. Claro que a minha abordagem é um contributo muito pequeno, mas procura usar conceitos institucionalistas (como normas sociais e papéis sociais) para conceber o controlo dos robôs nesse ambiente social. Quem tem dado um desenvolvimento robótico mais específico a esta abordagem é o José Nuno Pereira, que está no programa doutoral conjunto com a EPFL, e que só está à espera de defender a tese. Ele concebeu uma metodologia, a partir das redes de Petri, para construir controladores robóticos que combinam o controlo do comportamento individual dos robôs com o controlo do enquadramento institucional. Portanto, há uma direcção clara: usar conceitos institucionais para gerir ambientes mistos muitos robôs para muitos humanos, em cenários que tenderão a tornar-se correntes no futuro.
Os robôs actuais são (ainda?) muito diferentes dos que a imaginação humana foi criando. As limitações nas tarefas que podem ser realizadas automaticamente são claras para os engenheiros mas nem sempre para alguém de fora do meio. Foste surpreendido neste sentido? Estas limitações foram/são de alguma forma impedimentos para experiências que tinhas/tens em mente realizar?
Uma das coisas que me surpreenderam foi exactamente isto: é tudo tão difícil de fazer, especialmente com robôs reais! Há muita coisa que não se pode experimentar ao nível que me interessa (tendencialmente, populações de agentes encorpados, naturais e artificiais, heterogéneos e em grande número), porque não é fácil nem barato ter um grande número de robôs, nem é fácil fazer o controlo básico dos mesmos, especialmente se os queres a interagir com humanos. Do ponto de vista institucionalista não me interessam muito, por exemplo, os problemas de navegação ou de manipulação, mas sem isso é difícil fazer experiências de mais alto nível que tenham sentido. Por vezes temos de passar para a simulação, mas aí perde logo grande parte do realismo e facilmente atiras problemas para baixo do tapete.
Este parece-me, aliás, um problema mais geral. Acho que a “propaganda científica” (divulgação, para ser mais simpático) dá aos leigos uma imagem demasiado cor de rosa do que já se pode fazer, certamente para atrair o interesse das pessoas e o apoio à robótica, mas com potenciais efeitos perversos. Foi-me contado no Japão que, após as complicações com a central nuclear de Fukushima, a Honda recebeu uma quantidade enorme de mensagens protestando por eles não mandarem o robô ASIMO, um humanóide muito popular, para os locais contaminados, em vez das pessoas. Qualquer técnico sabia que isso não era possível, nem útil, mas o público tinha sido induzido em erro. Ao mesmo tempo, claro que havia imensa robótica envolvida na situação, mas as máquinas que interessavam naquele cenário não eram humanóides nem nada que se parecesse. Quer dizer: a percepção pública está contaminada por uma comunicação errada, que distorce a compreensão dos avanços reais e das dificuldades. Há imensa interferência dos algoritmos na vida real, mas em aspectos menos vistosos: por exemplo, a negociação automática já é responsável por cerca de metade da actividade nos mercados financeiros electrónicos globais, de tal modo que em muitos casos não é possível saber se estás a negociar com pessoas ou com computadores, mas isso tem menos impacto no imaginário das pessoas porque não envolve robôs fantásticos. Acho que é preciso reconverter o imaginário popular para o tornar mais compatível com o que os cientistas realmente pensam seja realista ou irrealista.
Achas que o ir além da simulação, o procurar situações realistas (preocupações naturais em investigação em engenharia), são mesmo importantes para a filosofia? Isto é, o desenvolvimento de ideias filosóficas depende deste tipo de concretização?
É provável que a maioria das pessoas acreditem que em filosofia o pensamento é “livre”, no mau sentido: pode pensar-se o que se quiser, desde que não se entre em contradição. Eu acredito, pelo contrário, que a maior parte dos cenários teoricamente concebíveis (acerca de como funciona o mundo) não passam de cenários; acredito na importância da contingência: há imensas coisas que podiam ser de inúmeras maneiras diferentes, mas na realidade são apenas de uma determinada maneira. Assim sendo, creio que qualquer ideia acerca do mundo só tem a ganhar se aceitar confrontar-se com a prática, com o teste do material. Claro que não pretendo reduzir a filosofia à experimentação, até porque a filosofia tem, com a sua especulação ordenada, contribuído para incentivar a exploração de caminhos muito úteis à ciência. Mas acredito que todo o pensamento ganha em encontrar espaços onde a experiência o pode colocar em causa. Há imensas soluções que parecem funcionar em simulação, mas passam mal o teste de serem aplicadas no real físico. Julgo ser um enorme privilégio para um filósofo ter um espaço de investigação onde se procurem dar concretizações “de engenheiro” a pelo menos alguns aspectos das suas ideias filosóficas.
Para terminar, gostaria de saber como vês, dessa tua posição que me parece de charneira, o relacionamento humanidades / ciências. As dificuldades de comunicação entre as duas culturas apontadas pelo C. P. Snow há meio século continuam actuais? Como tem sido a tua experiência?
A comunicação continua a ser difícil, não só entre as humanidades e as ciências, mas mesmo entre diferentes disciplinas científicas. E acho que a situação só tem vindo a piorar. O enorme terreno da investigação é cada vez mais dividido em talhões diferentes, cada vez mais especializados, com linguagens cada vez mais divergentes. Estando a trabalhar numa zona de fronteira tenho tido a experiência, por exemplo, de como é difícil escrever um artigo usando ao mesmo tempo conceitos da filosofia, das ciências sociais e das ciências da computação, porque o resultado é de difícil leitura para toda a gente. Tal como é difícil fazer passar projectos que se coloquem nessa intersecção. Julgo que se trata de um problema grave, porque a excessiva especialização e a separação das linguagens limita até certo ponto a exploração de abordagens alternativas. Creio que as dificuldades de comunicação entre as duas culturas de Snow é um problema que não está em vias de se resolver, mas de se agravar. E, falando agora contra a minha dama, vejo com preocupação que haja muita gente das Humanidades pouco consciente da utilidade e da beleza da investigação científica. Mas também me preocupa que alguns espíritos mais científicos revelem um certo desprezo por disciplinas como a filosofia. Felizmente, há, em todos os lados, quem quebre barreiras, mas a lógica das organizações e das carreiras joga a favor de um certo fechamento dentro das especialidades, desincentivando os cruzamentos mais sistemáticos. O que é uma pena.