12.9.14

Contratos incompletos e as primárias do PS


No passado Sábado, 6 de Setembro, publiquei no Público um artigo com o título acima. Reproduzo aqui esse texto. Aproveito para lembrar que, contrariamente ao que constava na publicação, eu não sou "autor da moção de António Costa"; fui, simplesmente, coordenador da redacção da moção.


CONTRATOS INCOMPLETOS E AS PRIMÁRIAS DO PS

As Grandes Opções de Governo apresentadas por A. Costa e A. J. Seguro trouxeram novas chaves de leitura às Primárias do PS. Não estando em curso uma refundação programática, encontramos aí pontos de convergência, a par de diferenças assinaláveis entre as duas moções. Não podendo analisá-las aqui, sugiro a leitura de ambas e sublinho outro aspeto da questão.

As moções são uma espécie de contrato entre forças políticas e os cidadãos. Ora, para perceber o que está em causa é importante reconhecer que todos os contratos são incompletos. Para ser completo, um contrato deveria estipular ex ante um conjunto completo de regras comportamentais de aplicação ex post capazes de resolver exaustivamente todos os problemas que pudessem surgir na implementação. No mundo real, todos os contratos são incompletos: porque nunca podemos antecipar completamente a estrutura das questões que podem surgir no futuro, certas regras darão resultados inesperados e serão mudadas, circunstâncias novas exigirão normas novas, surgirão diferentes interpretações dos compromissos assumidos e novas preferências dos agentes. Só uma visão mecanicista do mundo social poderia convencer-se de que basta um contrato (um programa) para firmar uma relação sustentável numa comunidade política. A necessária relação de confiança tem de ser suportada, além disso, no método e na história pública dos seus portadores.

E, aí, o que António Costa (AC) apresenta ao país é muito distintivo.

Primeiro, quanto ao método. Já foi assinalado que um dos pilares da estratégia de AC é um Programa de Recuperação da Economia, focado em atividades económicas priorizadas pela sua elevada capacidade de promoção do emprego, impacto positivo nas relações económicas com o exterior e reforço de uma economia ambientalmente sustentável. O que tem sido menos sublinhado é que, na proposta de AC, a recuperação da economia aparece claramente articulada com a construção de uma sociedade decente. Daí a atenção detalhada à dignificação do trabalho, à revalorização da concertação social, ao relançamento da negociação coletiva sectorial, ao combate decidido à precariedade no trabalho, à recuperação da estabilidade das prestações sociais, a uma estratégia de combate à pobreza infantil e juvenil. Como socialista, entendo que esta articulação faz toda a diferença.

Ainda quanto ao método: é notório o desassombro com que AC coloca de forma nova o problema da governabilidade à esquerda, mas tem sido menos escrutinada a sua proposta de uma Agenda para a Década. Não falo aqui pelo conteúdo, mas pela dinâmica implícita. Assumido que a próxima legislatura será de rutura com a atual governação, há que assumir também que o país precisa de convergências estratégicas a mais longo prazo, nas quais se revejam duradouramente a esmagadora maioria dos portugueses. Sem isso nunca seremos capazes das transformações mais pesadas e demoradas, como a qualificação das pessoas, das organizações e do território. E, corolário, o país precisa de ultrapassar o clima político de confronto permanente, civilizar os debates, reconhecer que as divergências são mais salutares numa democracia assente numa rede de convergências fundamentais, partilhadas à esquerda e à direita. A proposta de uma Agenda para a Década, como método político, fará toda a diferença, permitindo encontrar uma nova combinação entre mudança e estabilidade numa democracia madura.

Para o contrato político proposto conta igualmente a história pública dos seus portadores. Deixemos o falso pudor: é preciso comparar os protagonistas. AC foi o ministro do Simplex: será preciso sublinhar a importância de termos governantes que, em lugar de desorganizarem o Estado, sejam capazes de o modernizar na ótica do serviço às pessoas e às atividades? Como presidente da CML, a partir de uma manta de retalhos política (lembrar como estava dilacerada a área política do PS, e como estava em dificuldades a câmara, aquando da sua primeira eleição), AC construiu uma maioria alargada e plural, que tem dado à cidade uma governação responsável e progressiva. Em Lisboa se tem mostrado como, mesmo em tempo de crise, a governação pode respeitar a cidadania. Será preciso sublinhar a importância de políticos capazes de agregar vontades diversas para fixar e prosseguir objetivos comuns?

Quando, no início dos anos 1990, governava Cavaco Silva, o excesso de zelo do SEF provocou o escândalo Vuvu Grace (a jovem zairense que chegou ao aeroporto da Portela para visitar o marido com a filha de 6 anos, sendo ambas retidas por não terem bilhetes de regresso), AC não virou a cara. Como advogado, interpôs uma (bem sucedida) providência cautelar. Como deputado, nesses anos em que o cavaquismo dava todos os sinais errados (desalojados de Camarate, dentistas brasileiros, recusa de asilo pedido por razões humanitárias), AC foi um dos que lançaram as bases para uma pacificação da questão da imigração, designadamente através de um aturado esforço de mobilização das comunidades imigrantes para a participação política. Sabemos, olhando para países europeus onde a imigração é fator de graves dissensões, a importância de ter havido entre nós essa coragem e visão. Será preciso sublinhar a importância de termos estadistas que compreendam os grandes desafios do mundo atual e lhes respondam com inteligência global, como António Costa está de novo a fazer, nesta matéria, com a sua proposta de uma carta de cidadania lusófona?

Por tudo isto, digo: percebemos melhor o que está em causa nas primárias do PS se tivermos presente que todos os programas políticos são contratos incompletos, cuja compreensão cabal implica incluir na equação o método e a história pública dos seus portadores.

Porfírio Silva
6 de Setembro de 2014
in Público