15.10.20

Obrigatoriedade da aplicação Covid?

Dediquei, anteriormente, algum tempo a analisar a questão das aplicações de rastreio de contactos em tempos de Covid: vários textos neste blogue, alguns capítulos no meu livro Emergência e Democracia - Ciência, política e sociedade em dias críticos
 
Está, agora, no debate público, por iniciativa do Governo, uma nova questão: deve introduzir-se um elemento de obrigatoriedade no uso da aplicação pública portuguesa, a Stayaway Covid?

Um elemento fundamental deste debate diz respeito à forma como tal obrigatoriedade  pode - ou não -  ser implementada sem ferir os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que são constitucionalmente protegidas por serem fundamentais ao Estado de Direito democrático. Sendo esta a dimensão que mais está, hoje, presente no debate público, não vou agora alongar-me sobre as fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade de tal passo. Opto, nesta circunstância, por suscitar duas outras questões, importantes para gerir democraticamente uma pandemia que afecta a nossa vida em comum.

Em primeiro lugar, importa evitar a ideia de que pode existir uma varinha mágica tecnológica para enfrentar a pandemia. O fascínio pela tecnologia, que se torna uma doença social quando favorece o enfraquecimento do laço social, afogando a comunidade sob o peso do individualismo, abre caminho à ilusão de que um smartphone com uma app pode fazer milagres para enfrentar uma ameaça disseminada na comunidade. Não pode. O essencial da resposta à pandemia diz respeito a um pacote de comportamentos, ao nível micro das relações de uns com outros, onde o que nos salva é o cuidado concreto com os seres humanos cuja vida se faz em interacção connosco. E mutuamente, claro, porque a dinâmica da reciprocidade é básica aqui. A aplicação Covid pode ajudar: é mais uma ferramenta que complementa o rastreio (manual) tradicional. Pode ajudar, sendo uma entre várias ferramentas. Torná-la, em algum modo, obrigatória, cria a ilusão de ser uma super-ferramenta, cria a ilusão de uma varinha mágica universal - que não é nem mágica nem universal. E, por isso, é um erro grave na estratégia de construir uma resposta democrática à pandemia. Até porque só uma resposta democrática pode ser sustentada. 
 
Em segundo lugar, a explosão de conflitualidade social, distribuída em inúmeros pequenos focos, em cada bairro deste país, que resultaria de um controlo efectivo do uso da app por parte dos agentes da autoridade, é um caminho que temos absolutamente de evitar. Mesmo que cada agente das forças de segurança só viesse a intervir quando munido de um mandato judicial para cada acto de inspecção de um telemóvel, e descontando o delírio de verificar em cada caso se aquela máquina pode ou não correr a aplicação (para determinar se multa ou não multa), toda a operação de controlo de uma máquina que se tornou parte da organização pessoal da vida de cada um (como se tornou o telemóvel para muita gente), por um polícia ou guarda, redundaria numa cadeia infindável de conflitos potencialmente explosivos. Se, antes, fomos capazes de fazer uma aplicação moderada do estado de emergência, mesmo sob a pressão presidencial para um estado de excepção inédito, temos, agora, de evitar qualquer sinal de que vamos viver em ambiente de quase-emergência não declarada. Até porque, quanto mais difícil é a situação, mais precisamos de confiança popular nas autoridades (a todos os níveis) - mesmo para que todos os escalões de responsabilidade possam exercer em pleno as suas funções e cumprir as missões necessárias para vencermos este desafio.
 
Finalmente, nada disto tem a ver com alguma desinformação que por aí anda acerca do funcionamento da Stayaway Covid. Por exemplo, quando alguns continuam a falar como se esta aplicação fizesse geolocalização, coisa que não faz. Laboramos, aqui, em assunto demasiado sério para tolerarmos ligeirezas. 

 
 Porfírio Silva,15 de Outubro de 2020
 
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