24.10.19

De uma legislatura para outra




No seguimento das eleições de 6 de Outubro para a Assembleia da República, começa amanhã a XIV Legislatura, pelo que hoje é o último dia da legislatura que foi marcada por uma maioria de esquerda plural na Assembleia da República.

Sim, uso intencionalmente o termo “marcada”: a legislatura foi mesmo marcada por esta solução política, contra a tentativa da direita para negar legitimidade à acção concertada de deputados do PS, do BE, do PCP e do PEV para, em conjunto com o Governo do PS, prepararem, debaterem, modificarem e aprovarem os documentos estruturadores das políticas públicas. A legislatura foi, para muitos portugueses, marcante – por ter mostrado que os partidos de esquerda podem cooperar para dar boa governação ao país e para responderem aos (a alguns dos) anseios dos cidadãos.

Sim, uso intencionalmente a expressão “maioria de esquerda plural”: a legislatura funcionou efectivamente com base numa cooperação estruturada entre todos os partidos com representação parlamentar que se reclamam da esquerda, constituindo os deputados desses partidos a maioria que garantiu o rumo durante quatro anos. Alguns detestam a expressão “maioria de esquerda”, porque acham que o PS devia ser “charneira”, mas isso não retira nada ao facto de que tivemos uma legislatura construída à esquerda e de que sem esta maioria não teríamos podido fazer o que fizemos. Outros detestam a pluralidade à esquerda, porque acham que só é de esquerda quem pensa alinhado pelo seu diapasão, e tratam as diferenças políticas e ideológicas como traições ao catálogo, mas isso não retira nada ao facto de que as esquerdas monolíticas só existem em ditadura e em democracia só uma esquerda plural pode ser vencedora.

A consequência do funcionamento desta maioria de esquerda plural, que conteve um mecanismo de concertação parlamentar e um governo do PS, foi constatada pelo Secretário-Geral do PS logo na noite das eleições: os portugueses gostaram da “Geringonça” e querem a continuidade dessa dinâmica. Isso tem sido repetido sucessivamente por António Costa desde então, sem contradição com o facto de que as modalidades concretas de funcionamento quotidiano têm de mudar por força das novidades. Entre essas novidades conta o facto de ter desaparecido a pressão presidencial para a existência de “papéis passados” e de o PCP ter entendido que, sendo assim, as “posições conjuntas” tinham passado à história – e de, nestas circunstâncias, o PS ter tido de assumir sozinho a responsabilidade por não aceitar uma forma desequilibrada e amputada de “Geringonça”, como queriam os que acabaram a pressionar para alguns terem “casamento” e outros “união de facto”.

O que o Governo do PS e a maioria da esquerda plural conseguiram para o país em apenas quatro anos mudou o nível de exigência dos cidadãos face à política e, especialmente, face ao PS. Agora, as pessoas querem ainda mais e melhor: que foi o que dissemos na campanha que íamos fazer. O PS saiu mais forte destas eleições, tendo sido o único partido de esquerda a merecer um reforço no juízo da cidadania. Esse novo patamar de exigência é o desafio central da legislatura que começa e temos, no programa eleitoral apresentado aos portugueses, a grande ferramenta para alcançar esse desiderato: prosseguir o trabalho em prol de uma sociedade decente, na medida em que as políticas públicas (e o partido, como força social) para isso possam contribuir.

À esquerda, começaremos a falhar este desafio se promovermos leituras erradas do processo político dos últimos anos. Ainda hoje, num jornal diário, um intelectual da nossa praça, que se reclama da esquerda, escreve que “a ‘Geringonça’ foi para António Costa uma aliança táctica, não uma opção estratégica”. É difícil cometer maior injustiça do que a que essa afirmação encerra. Basta lembrar que António Costa, ainda antes de ser líder do PS, quando se candidatou às Primárias, derrubou o muro do “arco da governação”, explicando claramente que não aceitava a “reserva” da governação ao PS, PSD e CDS e sublinhando que os partidos à nossa esquerda podiam e deviam poder ser parte das responsabilidades de dar um rumo à governação do país. Esquecer o significado dessa ideia política, esquecer que começou aí a possibilidade desta esquerda plural, é padecer de uma falta de memória e de uma distorção de visão que não pode dar qualquer contributo positivo para o que falta fazer. Só podemos ver tendências (politicamente) suicidas naqueles que enchem a boca com a esquerda e a colaboração à esquerda para, na prática da luta política, tomarem como seus principais alvos outros partidos da esquerda que deu rumo ao país nos últimos anos.

Perante isto, termino uma legislatura e começo outra com a seguinte ideia: cabe ao Partido Socialista a grande responsabilidade de assumir o património de quatro anos de esquerda plural bem-sucedida no parlamento e no governo, onde todos preservam a sua identidade e, ao mesmo tempo, se fazem capazes de distinguir o principal do menos importante, em ordem à capacidade política para construir respostas aos problemas do país.

Claro que, como sempre, continuo a defender o diálogo parlamentar alargado para encontrar soluções para problemas de médio e longo prazo que, por exigirem continuidade das políticas para além da legislatura, não podem sofrer mudanças bruscas de rumo de quatro em quatro anos. Isso significa, designadamente, que não dever abandonar-se o diálogo parlamentar com o PSD – coisa que sempre defendi e que sempre esteve claro nos textos programáticos do PS nos últimos anos.

De qualquer modo, isso não pode enganar-nos: o PS não vai com todos. Por uma razão muito simples: o PS representa uma ideia acerca da responsabilidade das políticas públicas que a nossa direita não partilha, minada como está por individualismos vários e por preconceitos profundos contra o papel do Estado, dos serviços públicos e dos seus trabalhadores. As batalhas pela igualdade, e contra a determinação do futuro de cada um pela condição social de partida, continuam a separam-nos profundamente da direita em políticas decisivas (por exemplo, em matéria educativa). Por essa razão, temos de procurar na esquerda plural os interlocutores privilegiados para continuar o nosso trabalho. Continuando a trabalhar para continuarmos a ser os melhores garantes de que o diálogo produz resultados políticos palpáveis à esquerda. Para isso, temos de ser, no PS, os menos sectários de todos, os melhores negociadores de todos, os mais imaginativos a transformar pedras em pães, os mais abertos ao diálogo – e aqueles que mais persistentemente se preocupam com a melhoria das condições de vida de todos os portugueses, num quadro de estabilidade e sustentabilidade.

Trata-se, “apenas”, agora em condições diferentes, de continuarmos a ser os mesmos que fomos na anterior legislatura.


Porfírio Silva, 24 de Outubro de 2019

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