9.1.19

Acesso ao ensino superior.




Teve lugar, a 7 de janeiro, a primeira sessão da Convenção Nacional sobre o Ensino Superior, onde participei, na qualidade de Deputado do PS, como orador no painel sobre acesso ao ensino superior. Retomo aqui o essencial da minha intervenção nessa ocasião.
No tempo disponível, abordei, e abordarei aqui, basicamente duas questões: a questão do acesso como uma questão de democratização da educação; a questão do acesso como elemento da articulação necessária entre ensino secundário e ensino superior.

1. A questão do acesso ao acesso ao ensino superior como uma questão de democratização da educação

Nos anos da democracia, o país evoluiu muito na democratização do acesso ao ensino superior, mas o alargamento da base social de recrutamento de estudantes para o ensino superior continua a ser um caminho onde mais passos têm de ser dados.

Fundamentalmente, e para encurtar razões, o que nos leva a dizer que há muito caminho para andar é o seguinte: a condição socioeconómica de partida pesa excessivamente na possibilidade real de uma pessoa vir ou não a ser estudante do ensino superior; nas condições atuais, o mercado de trabalho absorve muitos jovens que deveriam continuar o seu percurso de qualificação, mas que são desencorajados de prosseguir estudos pelo esforço de financiamento associado e face à perda de rendimento que isso significa no imediato (apesar dos ganhos a mais longo prazo) – sendo que esse esforço financeiro recai principalmente sobre as famílias, num país que está entre aqueles onde os apoios do Estado têm um peso relativamente modesto nos rendimentos dos estudantes; sabendo-se, ainda, que as dificuldades financeiras continuam a ser motivo para a interrupção de estudos no ensino superior.

Importa, pois, reforçar significativamente a ação social, direta (bolsas) e indireta (alojamento, cantinas, saúde, desporto, creches), até sermos capazes de garantir que ninguém deixa de aceder e ter sucesso no ensino superior por falta de condições de financiamento.

Para democratizar o acesso ao ensino superior, além de amortecer o peso da condição socioeconómica de partida nas decisões das famílias e dos estudantes acerca do prosseguimento de estudos, será preciso dar especial atenção a certos públicos. Face ao histórico (à sua sub-representação entre os estudantes do ensino superior), é razoável falar dos diplomados das vias profissionalizantes do ensino secundário e dos adultos como “novos públicos” do ensino superior.

Quanto aos diplomados do ensino secundário que seguiram vias profissionalizantes, é sabido que, embora representem hoje uma percentagem significativa dos jovens que poderiam prosseguir estudos numa universidade ou num politécnico, muito poucos o fazem – enquanto uma expressiva maioria dos diplomados do ensino secundário em cursos científico-humanísticos prosseguem os seus estudos.

Precisamos transformar radicalmente esta realidade desigual. Não se trata de fazer juízos de valor acerca da opção por seguir esta ou aquela via de ensino. Trata-se de respeitar as escolhas que são feitas pelos jovens e suas famílias, nas circunstâncias concretas que são as suas, e de investir na valorização de todas essas oportunidades educativas. Por isso saudamos que se tenha, recentemente, eliminado a discriminação que afetava os alunos do ensino profissional de nível secundário no acesso ao ensino superior. Importa, contudo, sublinhar que não cremos que isso se deva fazer criando percursos tendencialmente estanques, como poderia acabar por resultar da proposta de criação de um percurso, dito natural e coerente, que encaminharia os diplomados dos cursos secundários profissionalizantes para os cursos politécnicos, o que, segundo os seus proponentes, seria operacionalizado pela criação de uma via de acesso ao ensino superior própria desse percurso. Somos favoráveis à diversificação de vias e de percursos, valorizando todos, mas sempre alimentados por vasos comunicantes, que permitam a reorientação do caminho à medida da evolução dos próprios estudantes – recusando, em absoluto, qualquer regresso ao passado no que tange a criar barreiras intransponíveis entre diferentes vias.

Outro dos “novos públicos” que precisam ser atraídos para o ensino superior são os adultos. Comparativamente com outros países do nosso espaço, a média de idades dos estudantes do ensino superior em Portugal é baixa e a percentagem dos que entram no ensino superior com menos de 25 anos é muito alta. De facto, o nosso ensino superior ainda é demasiado para jovens.

Ora, quando a aceleração das mutações no mundo do trabalho indica que os trabalhadores precisarão cada vez mais, não só de aumentar as suas qualificações, mas também de as atualizar mais frequentemente – o ensino superior tem tudo a ganhar em se sintonizar com essa necessidade social tornando-se mais atrativo para os adultos.

O concurso de acesso para maiores de 23 anos tem de ser dinamizado. Para isso, é preciso, nomeadamente, garantir que as provas de avaliação de capacidades se foquem nas condições necessárias e suficientes para uma frequência bem-sucedida do ensino superior e renunciem a serem uma espécie de revisão da matéria dada no ensino secundário. E têm de ser criadas novas oportunidades de acesso, inclusivamente para formações mais curtas e capazes de responder diretamente a necessidades mais imediatas.

Se o ensino superior deve ser capaz de captar indivíduos que já estão a trabalhar, tenham anteriormente frequentado o ensino superior ou não, é preciso saber valorizar os adquiridos da sua experiência profissional – e, aí, há resistências que não são fáceis de vencer.

Essa captação só pode acontecer se as instituições do ensino superior forem capazes de adaptar a oferta. Por um lado, adaptar-se a diferentes necessidades, como as necessidades próprias de situações de requalificação, de mudança de perfil de competências – que podem responder também a desempregados. Por outro lado, adaptar-se às condições de potenciais estudantes com uma vida profissional exigente, que podem passar, por exemplo, pela questão dos horários (pós-laborais, aos fins de semana) ou por combinações ajustadas de ensino presencial e de ensino a distância.



2. A questão do acesso como elemento da articulação necessária entre ensino secundário e ensino superior

O ensino secundário como parte da escolaridade obrigatória é uma realidade recente – e que ainda não foi completamente consolidada na sociedade.

Temos ainda uma situação difícil no ensino secundário do ponto de vista do sucesso das aprendizagens.

No ano de 2016/2017, a taxa de retenção e desistência no 3º ciclo do ensino básico era de 8,5%. Nos cursos científico-humanísticos do ensino secundário era de 17,5% (27,5% no 12º ano). Uma diferença importante, que identifica dificuldades no ensino secundário. No mesmo ano, a taxa real de escolarização no ensino secundário era de 78,5% (o que quer dizer que mais de 20% das pessoas em idade de completar o secundário ou não completam o 12º ano, ou o terminam fora da idade de referência, passando, provavelmente, por alguma experiência de insucesso). Embora estejamos, para estes e outros dos indicadores relevantes, no melhor momento da década, tendo realizado recentemente novos progressos, vemos razões para nos esforçarmos mais no tocante ao sucesso dos alunos do ensino secundário.

Não procuramos explicações únicas para este fenómeno. Contudo, um dos problemas identificados consiste na pressão colocada pelo acesso ao ensino superior. O quotidiano do ensino secundário é largamente dominado pelo grande objetivo de entrar para o ensino superior, com os exames a comprimir todo o trabalho das escolas, de professores e alunos e famílias. Essa pressão retira espaço à procura de soluções alternativas para a promoção do sucesso das aprendizagens.

Face a esta realidade, algumas propostas pretendem desvincular os dois processos, de conclusão do ensino secundário e de formação da classificação de acesso ao ensino superior. Como corolário, a seleção seria transferida para as instituições do ensino superior.

Esse caminho acarretaria vários problemas, com o risco de afetar a equidade do processo. Desde logo, desvalorizaria o peso da avaliação contínua. Atualmente, o método de cálculo da classificação relevante para acesso ao ensino superior transporta uma contribuição importante da avaliação contínua (por via do método de cálculo da classificação final do curso). Transferir simplesmente a seleção para as instituições de ensino superior poderia mudar isso radicalmente. Além disso, colocar cada instituição a organizar o seu processo de acesso, além do obstáculo prático (obrigar o mesmo aluno a realizar várias provas, para diferentes instituições que estivessem no seu leque de interesses), permitiria que certas instituições adotassem estratégias de elitização (tentando tornar-se “escolas de topo”, em homenagem aos rankings e ao “prestígio da dificuldade de acesso” como marketing, em lugar de jogarem na consolidação global da oferta nas diferentes instituições).

Portanto, identificamos um problema (a ligação entre a conclusão do secundário e o acesso ao superior) mas não adotamos como resposta que sejam as instituições sozinhas a assumir a seleção à entrada. O Concurso Nacional de Acesso (CNA) contém um forte elemento de equidade: qualquer aluno, de qualquer região, pode concorrer a qualquer curso/instituição, com os mesmos requisitos e, portanto, em condições relativamente homogéneas.

Somos, pois, pela manutenção de um concurso nacional de acesso – mesmo que, como diremos à frente, ele deva ser enriquecido. Contudo, somos, também, complementarmente, favoráveis à criação de mecanismos de atração para o ensino superior que aproveitem o melhor da experiência dos Cursos TeSP (Técnicos Superiores Profissionais), que, apesar da sua especificidade (até por serem cursos não conducentes a grau), mostram as vantagens de estratégias de construção de parcerias de base territorial entre diferentes tipos de instituições, afinadas para a satisfação da procura social, com o acesso organizado através de concursos locais a ser uma ferramenta dessa dinâmica.

Não podemos, portanto, cair no erro de separar ainda mais o ensino secundário do ensino superior. Precisamos, bem pelo contrário, de construir uma participação mais substantiva das instituições de ensino superior no processo de seleção, em cooperação com o ensino secundário. Precisamos de enriquecer o processo de seleção, mesmo sem excluir um concurso nacional. Precisamos de processos mais ricos de produção de evidências, que valorizem mais dimensões (inspirando-se no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória). Há muitas dinâmicas que têm lugar no ensino secundário, que contribuem para o enriquecimento das aprendizagens, e deviam ser tidas em conta no acesso – mas não o são. Pensemos, apenas e por exemplo, nas olimpíadas de matemática, ou de física, ou de química; no programa de ensino experimental das ciências; no parlamento dos jovens; nos clubes de leitura das escolas; nos prémios literários; nas atividades associativas, dentro e fora da escola, … A participação dos alunos nessas atividades devia ser tida em conta. Temos, ainda, de começar mais cedo a recolha de evidências: não no fim do 12º ano, mas durante o 12º ano, e mais cedo, durante o 10º e o 11º ano.

Esses processos mais atentos, mais ricos, mais diversificados e mais atempados de recolha de evidências devem permitir desenvolver métodos de recrutamento de estudantes para o ensino superior que sejam capazes de identificar os fatores que transportam potencial de futuro. Há estudos que mostram que certas escolas com ensino secundário são especialmente eficazes a colocar alunos no ensino superior, mas que essas escolas não são necessariamente as mais eficientes a preparar alunos para percursos de sucesso no ensino superior. Aqueles processos mais ricos de recolha de evidências devem permitir distinguir entre, por um lado, a preparação que permite obter mais umas décimas num exame e, por outro lado, a preparação para um sucesso sustentado em todo o percurso no ensino superior – e, depois, na vida ativa.

É na conjugação destes fatores que devemos procurar um sistema de acesso ao ensino superior que liberte o ensino secundário da excessiva pressão dos exames, valorizando um leque mais vasto de capacidades, tornando mais assídua a ligação entre diferentes níveis de ensino, na construção de processo mais ricos de recolha de evidências sobre os alunos que, simultaneamente, valorizem o trabalho contínuo durante o secundário e sejam mais fiáveis na identificação de fatores relevantes para percursos escolares de sucesso no superior – em vez de detetarem apenas a capacidade para transpor a barreira específica dos exames.

(texto publicado no Acção Socialista Digital, edição de 8 de janeiro de 2019)

Porfírio Silva, 9 de Janeiro de 2019

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